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68a. Festival de Cannes: Dia 01 Assinantes

Como é bom ter colegas de profissão gentis.

Considerando a correria do Festival de Cannes e o fato de que jornalistas e críticos do mundo inteiro tomam conta da cidade durante o evento, seria muito fácil, para um marinheiro de primeira viagem (e eu nunca havia comparecido ao festival em 21 anos de profissão), ficar perdido diante de tantas informações e “macetes” fundamentais para aproveitar ao máximo a experiência. Por sorte, o que me faltava de vivência em Cannes acabou sendo contornado pela generosidade de meus colegas brasileiros, que me inundaram com dicas, sugestões e alertas – profissionais como Neusa Barbosa, Rodrigo Salem, Mariane Morisawa e Fabrício Duque (também conhecido como “meu marido de festival”, já que estamos dividindo o apartamento), além, claro, de meu velho amigo Francisco Russo, que fez uma verdadeira tour por todo o Palais des Festivals comigo e também pelas imediações deste. (E não posso esquecer de outro antigo e querido amigo, Marcelo Miranda, que me enviou várias outras dicas por email.)

Aliás, foi graças a eles que entendi, por exemplo, o sistema de “castas” de Cannes, que é determinado pela cor das credenciais: a amarela compromete a cobertura por ter acesso muito restrito às sessões; a azul permite mais acesso, mas exige longas esperas nas filas; a rosa acelera tudo; e as rosa-com-pastilha-amarela e branca são as mais cobiçadas e distribuídas para relativamente poucas pessoas. Como é meu primeiro ano, esperava a azul e temia a amarela – e fiquei com a rosa. Uma vantagem de ter tanto tempo de carreira, provavelmente.

Bom, mas vamos aos filmes do primeiro dia:

Standing Tall (La Tête Haute, França, 2015) – 4 estrelas em 5

Dirigido por Emmanuelle Bercot. Roteiro de Bercot e Marcia Romano. Com: Rod Paradot, Catherine Deneuve, Benoît Magimel, Sara Forestier, Ludovic Berthillot e Diane Rouxel.

La Tête Haute é um filme construído a partir de pequenos momentos, de reações sutis dos personagens e de planos-detalhe que, com sensibilidade, capturam um toque gentil aqui, uma mão que se abre lentamente ali ou um suspiro exausto dado acolá. É o retrato de um jovem que já nasceu condenado por suas circunstâncias e cuja raiva diante do mundo que lhe hostilizou desde a infância acaba se expressando através de um imenso impulso de autodestruição.

Dirigido pela atriz Emmanuelle Bercot sem qualquer traço de melodrama ou desejo de tornar a experiência do espectador mais fácil, o filme acompanha a trajetória de Malony (Paradot) desde os seis anos de idade, quando o descuido de sua mãe o levou ao encontro da juíza de menores Florence Blaque (Deneuve). Quando reencontramos o garoto dez anos depois, percebemos que o estrago já havia sido feito àquela altura e passamos a acompanhar suas entradas e saídas de centros de reabilitação pelos dois anos seguintes até o instante no qual ele já se encontra prestes a se tornar maior de idade e, portanto, um sério candidato ao sistema penitenciário.

A sequência que abre o longa, diga-se de passagem, é fundamental para sua eficácia: concentrando-se nos rostos das crianças e deixando os dos adultos fora de campo, Bercot imediatamente nos coloca na posição de identificação com os pequenos – especialmente por manter a câmera na altura de seus olhos e, assim, numa condição de fragilidade diante do mundo. Além disso, a câmera na mão, sempre parecendo em busca de uma reação espontânea, confere um tom documental à narrativa, aumentando a impressão de realidade daquela trágica situação. Com isso, ao reencontrarmos Malony uma década depois, não só já o conhecemos como tivemos nossos corações partidos por seu drama, o que nos torna mais compreensivos diante do jovem agressivo e raivoso que passamos a ter diante de nós.

Neste aspecto, La Tête Haute é uma evidência admirável da capacidade que o Cinema tem de despertar empatia e de levar o público a enxergar o mundo através dos olhos dos outros: se tudo o que os demais personagens enxergam são as ações estúpidas de Malony, o espectador tem acesso a momentos reveladores de vulnerabilidade, como ao chorar sozinho em sua primeira sentença no centro de reabilitação ou seu olhar quebrado quando, depois de só exibir seu lado explosivo, vê a mãe chorar e demonstra dor por ter provocado suas lágrimas. Da mesma maneira, ao mostrar rapidamente o bocejo da mãe do rapaz durante um encontro com a juíza, Bercot revela mais sobre o descaso que destruiu Malony do que se tivesse rodado páginas e páginas de diálogos sobre a questão.

A diretora, aliás, demonstra um talento invejável para ilustrar sentimentos complexos visualmente – como, por exemplo, no plano que traz dois companheiros de detenção do protagonista fumando entre lixeiras enquanto, no extremo oposto do quadro, o rapaz relaxa sob uma árvore iluminada pelo sol, demonstrando sua intenção (ao menos temporária) de se afastar dos erros passados. Claro que, para isso, também contribui imensamente a performance visceral e reveladora do estreante Rod Paradot, que, fisicamente remetendo a um jovem Brad Dourif, encarna Malony quase como um animal selvagem resistente ao toque humano e refratário até mesmo a demonstrações verbais de afeto. Capaz de explodir a qualquer sinal de estar sob julgamento (o que revela muito sobre sua personalidade), o garoto obviamente deseja melhorar, sendo sabotado pelo colossal depósito de raiva, decepções e bordoadas acumuladas ao longo de sua curta vida – e é por isso que é tão tocante acompanhar os esforços de Yann (Magimel, brilhante) para ajudá-lo, já que sua identificação com a história do outro é clara.

Pecando apenas por retratar o sistema penal francês como um mundo povoado exclusivamente por figuras benignas e pacientes – da juíza ao promotor, passando até mesmo pelo diretor de um presídio -, o filme ainda assim é fundamental ao demonstrar que todo esforço é válido no sentido de trazer os jovens de volta ao convívio social e que simplesmente despachá-los para uma penitenciária e considerar o assunto resolvido (como pregam os defensores da redução da maioridade legal) é apenas um modo de criar criminosos ainda mais raivosos e experientes.

Sim, é fácil julgar Malony (e tantos jovens como ele) e dizer que “no lugar dele, eu faria algo diferente e aproveitaria imediatamente a ajuda que me oferecessem”. Isto, no entanto, seria uma conclusão arrogante e egocêntrica, já que estaríamos aplicando nossa visão de mundo às circunstâncias do outro – uma visão construída com o privilégio de jamais termos tido que lidar com aquelas situações e com todas as profundas feridas emocionais por elas deixadas.

E o que La Tête Haute compreende é que, antes de tentarmos “consertar” alguém, é preciso convencê-lo de que, ao contrário do que tudo pode demonstrar, realmente nos importamos com sua felicidade, com sua vida e com seu futuro.

 

Our Little Sister (Umimachi Diary, Japão, 2015) – 2 estrelas em 5

Dirigido e roteirizado por Hirokazu Koreeda. Com: Haruka Ayase, Masami Nagasawa, Kaho, Suzu Hirose, Ryô Kase.

Pais e Filhos, que o cineasta japonês Hirokazu Koreeda lançou em 2013, era um filme belíssimo que trafegava confortavelmente entre as histórias de duas famílias para construir um drama eficaz e humano que jamais soava artificial. Infelizmente, em seu novo trabalho, Our Little Sister, ele não consegue alcançar resultado similar: embora centrado apenas na relação entre quatro irmãs que moram juntas, a narrativa agora surge difusa, frouxa e sem vida, empregando longos 128 minutos para aparentemente não chegar a lugar algum.

Escrito pelo próprio Koreeda a partir de um mangá de Akimi Yoshida (e nem consigo imaginar o quão aborrecido deve ser este mangá), o roteiro inicialmente nos apresenta às irmãs Sachi (Ayase), Yoshino (Nagasawa) e Chika (Kaho), que dividem um velho casarão que pertenceu aos pais desde que foram abandonadas por ambos – o pai foi morar com a amante e a mãe partiu para outro estado. Confortáveis em sua rotina, elas acabam recebendo a notícia da morte do pai (com um estranho desinteresse, diga-se de passagem) e, no enterro, conhecem a meia-irmã de 14 anos, Suzu (Hirose), que passa a morar com as demais. A partir daí, acompanhamos o ano seguinte enquanto as quatro...

... moram juntas.

E basicamente é isso. Sim, elas lidam com interesses românticos, com a doença de uma velha conhecida, com um reencontro com a mãe, mas basicamente tudo é encenado por Koreeda de maneira desinteressada e desinteressante. Resumindo-se a uma série de cenas mal conectadas que conferem um tom episódico à narrativa, Our Little Sister não consegue sequer justificar dramaticamente a entrada de Suzu na vida das irmãs – primeiro, porque o convite é feito de maneira abrupta e artificial (culminando num plano terrivelmente clichê que traz a garota correndo atrás do vagão no qual as irmãs se encontram); segundo, porque essencialmente nada muda com a chegada da menina, que imediatamente se adapta à dinâmica das demais.

Dependendo de forma incômoda de diálogos expositivos para explicar ao espectador as circunstâncias que levaram as irmãs a uma existência isolada dos pais, o roteiro ainda carece de um arco dramático identificável, limitando-se a utilizar as estações do ano  - e as consequentes alterações nas belas locações – para indicar a passagem do tempo, como se apenas o transcorrer do ano pudesse conferir alguma sensação de desenvolvimento à história.

Evitando se tornar um desastre completo graças ao carisma do elenco principal, o longa ao menos consegue estabelecer algum interesse graças à dinâmica entre as garotas, mesmo que suas personalidades acabem parecendo esquemáticas: Sachi é retraída e responsável; Yoshino é impulsiva e imatura; Chika é ingênua e alegre; e Suzu é uma mistura das três. Aliás, a decisão de ancorar o filme na irmã mais velha é um raro acerto do projeto, já que Haruka Ayase oferece uma performance suficientemente melancólica e relativamente multifacetada – e é uma pena, por exemplo, que Koreeda não dedique mais atenção à dinâmica entre ela e a caçula, já que, de certa forma, as duas são as que viveram experiências mais similares com o pai, perdendo boa parte da infância graças a este.

Em vez disso, o diretor opta por usar a trilha de Kanno Yoko para tentar criar atmosferas pontuais que a história sozinha não consegue: em certo momento, a música soa engraçadinha para trazer leveza; em outro, aposta em acordes tristes para ressaltar um instante doloroso – e, com isso, acaba forçando o tom em vez de simplesmente comentá-lo ou mesmo ressaltá-lo.

Concluindo a projeção com uma fala patética que ainda tenta mastigar a moral do filme para o espectador – como se houvesse alguma relevante -, Our Little Sister pode até oferecer a Koreeda a oportunidade de continuar investindo em histórias que lidam com dores e dilemas familiares, mas é o próprio projeto que acaba soando excessivamente familiar no processo. E da pior maneira possível.

 

Tale of Tales (Il racconto dei racconti, 2015) – 3 estrelas em 5

Dirigido por Matteo Garrone. Roteiro de Garrone, Edoardo Albinati, Ugo Chiti e Massimo Gaudioso. Com: Salma Hayek, Vincent Cassel, Toby Jones, John C. Reilly, Shirley Henderson, Hayley Carmichael, Stacy Martin, Bebe Cave, Christian Lees, Jonah Lees, Laura Pizzirani, Franco Pistoni, Guillaume Delaunay, Alba Rohrwacher.

Como seu próprio título já indica, o novo trabalho do italiano Matteo Garrone (Gomorra, Reality) é um filme que se propõe a narrar um “conto de contos”: inspirado em histórias concebidas por Giambattista Basile, o filme traz não apenas uma, mas três fábulas que, na melhor tradição dos irmãos Grimm, apostam num tom sombrio ao acompanhar personagens fantasiosos que, através de suas trajetórias, normalmente levam o espectador a encontrar alguma mensagem subjacente às aventuras apresentadas.

Saltando entre três reinos fictícios, Tale of Tales inicialmente nos apresenta ao rei e à rainha de Longtrellis (Reilly e Hayek), que sofrem em função da infertilidade. É então que um Necromancer (Pistoni) visita o casal e explica como podem resolver o problema: matando um monstro do mar, ordenando que uma virgem cozinhe o coração da besta e oferecendo-o para ser devorado pela rainha – o que acaba gerando não um, mas dois jovens (vividos pelos gêmeos Lees), já que um também é concebido pela virgem (Pizzirani). Enquanto isso, no reino de Strongcliff, o rei (Cassel) se entrega a orgias frequentes com todas as jovens sob sua jurisdição até que, ao ouvir uma bela voz, decide possuir também sua dona. O que ele não sabe, porém, é que ela pertence a Dora (Carmichael), cujo corpo demonstra todo o estrago da idade avançada e que vive com a irmão Imma (Henderson). Temendo a reação do monarca ao descobrir que se encantou por uma anciã, Dora se arrisca em um plano que traz consequências terríveis. Finalmente, a terceira história gira em torno do rei de Highhills (Jones), cuja filha (Cave) acaba sendo acidentalmente obrigada a se casar com um ogro (Delaunay).

Aliás, não sei se é preciso dizer que o longa acompanha três histórias, já que cada uma delas parece conter subtramas que tomam boa parte de suas durações, como o confronto entre o rei de Longtrellis e o monstro; a relação entre o rei de Highhills e uma pulga gigante (pois é) e um feitiço inesperado que afeta Dora após seu encontro real. Não é de se espantar, portanto, que o roteiro tenha sido assinado por quatro pessoas, já que a falta de foco das tramas é condizente com a contribuição de sensibilidades diferentes para o mesmo projeto. Além disso, embora consiga saltar de uma fábula a outra com certa fluidez, é impossível negar que, no fim das contas, o filme seja mesmo uma antologia disfarçada, já que o entrecruzamento de personagens é superficial demais para justificar se tratar de apenas um universo grandioso que traz várias aventuras simultâneas.

Não que isto seja um problema, pois não é (mesmo indicando o esforço fracassado de Garrone para evitar o óbvio formato de antologia) – e mais importante que isto é o fato de que Tale of Tales impressiona naquilo que é sua proposta principal: construir um universo fabulesco ambicioso. Neste sentido, o design de produção de Dimitri Capuani se mostra excepcional, desde as formações rochosas atípicas que ladeiam o rio no qual o monstro repousa até a imensa ponte que atravessa um lago e que, refletida na água e envolvida por neblina, resulta num daqueles quadros que poderiam facilmente surgir como ilustração de qualquer livro de contos de fadas. Da mesma forma, é importante perceber como os figurinos ajudam a estabelecer as relações entre os personagens, desde os vestidos da rainha vivida por Salma Hayek (sempre combinando vermelho e preto, já que é uma ameaça constante) até aquele usado pela princesa de Highhills durante a maior parte do tempo e que, acabando por se cobrir de sujeira e sangue, faz uma boa subversão da imagem clássica das princesas da Disney.

Dotado também de um senso de humor negro eficaz, o filme diverte com imagens absurdas como a “plástica” improvisada feita por Imma em sua irmã (e que consiste em cola e pele dobrada) e, claro, a primeira aparição do rei interpretado por Cassel, que não pretendo revelar para não estragar o ótimo efeito. Porém, Garrone também é eficiente ao criar planos memoráveis simplesmente do ponto de vista estético, como aquele que traz duas mulheres conversando em lados opostos de um abismo e um outro que acompanha os irmãos albinos sob a água.

Beneficiado por um elenco competente que confere vida a personagens que, mesmo unidimensionais, jamais deixam de ser interessantes, Tale of Tales ganha vida especialmente quando Vincent Cassel surge em cena como um monarca aparentemente insaciável em seu apetite sexual ou quando Toby Jones (cujo rosto parece ter sido feito para viver figuras fabulescas) se mostra encantado diante de seu novo bichinho de estimação.

Assim, é lamentável que o roteiro problemático falhe em oferecer uma conclusão razoável para qualquer das histórias principais, parecendo abandoná-las em pontos arbitrários e considerando-se satisfeito simplesmente por oferecer uma confluência de personagens. Com isso, a impressão é a de que, depois de investirmos duas horas naquele universo, somos atirados para fora de qualquer maneira – e se por um lado sentimos falta de sua riqueza visual, a partida de seus personagens não é algo que lamentemos de fato.

E este é um problema realmente difícil de ignorar.

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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