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INTERESTELAR e a inconsistência tonal Anatomia de um Filme

Alguns filmes falham apesar de todas as suas qualidades, e outros funcionam mesmo com várias fraquezas. O aspecto que eleva um longa ou o chuta de um penhasco nem sempre é óbvio. Cada texto da coluna Anatomia de um Filme, idealizada e escrita por André Navarro, analisará detalhadamente uma obra, usando-a como fio condutor para falar sobre diversos aspectos do Cinema. Nesta primeira edição falaremos sobre a inconsistência tonal de Interestelar e como o tom de um filme é uma ferramenta narrativa essencial.

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Em certo momento de Interestelar, o fazendeiro Cooper (Matthew McConaughey) está dirigindo um carro com seus filhos, Murph (Mackenzie Foy) e Tom (Thimotée Chalamet), no banco de trás. De repente, um drone passa voando baixo. Cooper, querendo recuperar as baterias solares da máquina, imediatamente começa a persegui-la em alta velocidade através de uma densa plantação de milho. Em seus olhos, há mais do que pragmatismo. Há fascínio. Deslumbramento.

Cooper lamenta com seu sogro, Donald (John Lithgow), a morte da exploração espacial, evocando em seu diálogo a imensidão do universo e os mistérios que este contém como sendo a chave para a continuação eterna da espécie humana. A Terra, cada vez mais incapaz de sustentar vida, precisa ser abandonada em favor de novos habitats, e quando Cooper é convidado a explorar o universo por si mesmo, ele próprio admite que isso o excita – mesmo que signifique se distanciar de seus filhos por um longo tempo.

No segundo ato do filme, este mesmo Cooper olha pela janela da espaçonave Endurance e observa – pela primeira vez em sua vida - um buraco de minhoca orbitando Saturno. O físico Romilly (David Gyasi) aponta e diz, excitado, “Lá está ele! O buraco de minhoca!”.

Cooper pede que Romilly se acalme, olha de novo para o portal para outra galáxia e, levemente confuso, comenta, “Parece uma esfera”.

Eu tentei lembrar a cena anterior onde Cooper é injetado com morfina, mas não há nenhuma. Ele realmente olha para o magnífico fenômeno capaz de transportá-lo centenas de milhões de anos-luz em questão de minutos e seu primeiro comentário é que parece uma esfera. Mas não é só: em outro momento, tentando solucionar como entrar na mesma órbita que um planeta em torno de um buraco negro, ele diz, “Eu poderia dar a volta naquela estrela de nêutrons” como quem sugere pegar uma rua para evitar engarrafamento.

Já no terceiro ato do filme, vemos Cooper ensinando a uma máquina a importância do Amor enquanto ambos se encontram dentro de um buraco negro feito de estantes.

Este não é um filme consistente.

 

01.

O início de Interestelar planta muitas sementes não só narrativas como emocionais, ambas com grande eficácia. O futuro distópico da história é apresentado de forma clara e adequadamente assustadora, e os elementos que se tornarão cruciais mais tarde no filme são introduzidos cedo. Mas o que faz com que o primeiro ato realmente funcione é a conexão emocional que o diretor Christopher Nolan consegue construir entre o filme e o espectador.

Ao longo do primeiro ato, as ações de Cooper são alicerçadas no amor que sente pelos seus filhos. A narrativa não recorre ao sentimentalismo barato para expressar isso. O carinho de Cooper é percebido na sua voz ao falar com Murph e Tom, no bom humor com que os educa, na preocupação constante com o futuro deles. E quando descobre a base secreta da NASA e é convidado para ser o piloto de uma expedição para outra galáxia, ele sofre com o dilema de se afastar de seus filhos mesmo que seja para dar a eles um futuro melhor.

A conexão entre Cooper e Murph, especialmente, é desenvolvida com uma sensibilidade digna de Steven Spielberg, o diretor originalmente cotado para dirigir Interestelar. Quando o primeiro ato chega ao fim, a ideia de Matthew McConaughey e (a talentosíssima) Mackenzie Foy não serem pai e filha na vida real parece impensável. São os breves momentos, como aquele em que vemos Cooper deixando a filha trocar a marcha do carro enquanto ele dirige, que constroem um relacionamento forte e tocante. Em uma das melhores cenas do filme, Murph quer acompanhar o pai em uma viagem de carro. Diante da recusa dele, ela se esconde sob uma coberta no banco de passageiros, sendo percebida pelo pai já na estrada. Embora sinta que é irresponsável levá-la, Cooper não consegue conter sua satisfação com a companhia de Murph. O plano se demora no sorriso dele antes de cortar. É o momento-chave do relacionamento entre os dois, e Nolan sabe disso.

O tom do primeiro ato é sentimental na medida certa, conquistando a simpatia do espectador por Cooper, seus filhos, seus desejos e seu dilema. A exploração espacial, cujo progresso na vida real ainda segue lento, é retratada como uma necessidade não só absoluta como, também, inspiradora. Apesar de uns pequenos tropeços aqui e ali - algumas cenas, como a da escola, tentam passar informação demais e não conseguem fazer isso com naturalidade – os primeiros vinte e cinco minutos de Interestelar constroem alicerces narrativos e emocionais que poderiam ter sustentado um grande filme.

Porém, quando Cooper encontra a base secreta da NASA, Interestelar sofre uma rachadura que só faz crescer: o protagonista descobre, em questão de uma hora, que a NASA sobreviveu ao colapso da civilização; que eles têm naves espaciais em funcionamento; que há um buraco de minhoca orbitando Saturno; que eles enviaram expedições para outra galáxia através desse portal; que eles descobriram planetas com potencial de sustentar vida; e que querem Cooper como piloto da próxima expedição.

E ele reage a tudo isso calmamente.

Não que ele precisasse desmaiar ou algo assim, mas quando você vai de “a exploração espacial morreu” para “a exploração espacial está viva e mandou seres humanos para outra galáxia”... É, ok, desmaiar teria sido plausível. Porém, Cooper reage de forma pragmática, fazendo perguntas e ouvindo as respostas enquanto já pensa em outras perguntas.

Depois dessa queda, a narrativa recupera seu elemento emocional quando Cooper implora à Murph que se despeça dele, já que a garota fica furiosa com a decisão do pai de ir na próxima expedição. “Não me faça ir embora assim,” ele pede, sem ser atendido. Chorando enquanto dirige para longe de casa, ele esperançosamente ergue a coberta no banco de passageiros, mas, desta vez, Murph não está escondida ali.

É um final perfeito para um primeiro ato que consegue estabelecer o que está em jogo tanto em nível geral quanto pessoal.

Na cena seguinte, Cooper sai do planeta com toda a emoção de quem está indo para a Estação Espacial Internacional entregar uma pizza. Cooper, que mais cedo disse nunca ter voado mais alto que a estratosfera. Ele está entrando em órbita pela primeira vez, mas age como se fosse a centésima. Sim, o professor Brand (Michael Caine) recita um poema inspirador enquanto a Endurance sai da órbita da Terra, e nesse momento o compositor Hans Zimmer carrega na trilha sonora, mas esses elementos colidem com a aparente indiferença dos personagens à grandiosidade do que estão fazendo.

Isso é um exemplo da inconsistência tonal que discutiremos. A partir deste momento no filme, o protagonista e os outros astronautas demonstram apenas duas emoções na maior parte do tempo: urgência e urgência contida, com uma ou outra piadinha aqui e ali. O próprio Nolan parece estar lutando contra a ideia de fazer o espectador perder o fôlego; quase sempre ele mostra a Endurance através de câmeras coladas à fuselagem desta, relutando em mostrar as paisagens celestiais que a envolvem. Quando o cineasta finalmente cede, ele filma o universo de forma silenciosa e estática. Já vi viagens de ônibus retratadas de forma menos seca. Se as imagens espaciais de Interestelar tiram o fôlego, isso é mais mérito do espaço (e dos artistas que o recriaram) do que de Nolan.

E mesmo diante das vistas mais belas, os personagens não reagem à altura. Ou não reagem, ponto. Só a Dra. Brand (Anne Hathaway), em certo momento, sussurra um “uau” (olhando para Terra). Todo o fascínio que víramos em Cooper mais cedo é abandonado, deixando-o unidimensional em seu pragmatismo. Há um breve resquício de deslumbramento quando o vemos observando a Terra cada vez mais distante através da janela da Endurance, mas Nolan retrata isso com um plano aberto que sequer mostra o rosto do personagem. Ele posteriormente diz em uma mensagem para os filhos que “a Terra parece incrível daqui” da mesma forma que alguém diria “tá um baita calor hoje”.

O primeiro ato inspira o desejo de explorar novos horizontes, desejo este compartilhado por Cooper, mas quando essa exploração acontece, é retratada como se fosse rotineira.


"Nhé"

E para entender como isto prejudica o filme, especialmente em longo prazo, é preciso falar um pouco do que é inconsistência tonal.

 

02.

Esse termo, “inconsistência tonal”, carrega uma conotação vagamente negativa, mas é uma ferramenta narrativa essencial. O tom de um filme cria uma atmosfera, uma emoção dominante no espectador, que indica a intenção do cineasta a respeito do tema explorado. Na maior parte do tempo, é subconsciente: uma combinação de fatores que, sem chamar atenção para si mesmos, compõem um todo.

Por exemplo, em certa cena de Alien, testemunhamos uma tentativa de assassinato que, para variar, não é cometida pela criatura-título. Ao invés de mostrar a sequência com uma trilha sonora urgente e ação desenfreada, o cineasta Ridley Scott faz o contrário disso: a trilha sonora parece não ter percebido que a ação começou. Mesmo quando a vítima é jogada contra uma parede, a música permanece contida. E o assassino, ao invés de matar a vítima enquanto esta se encontra desacordada, fica contemplativo e cheio de maneirismos tão bizarros que criam tensão. A serenidade com que a cena é filmada cria uma profunda sensação de isolamento, como se o universo não desse a mínima para o fato de que a personagem em questão está para ser assassinada. A tensão resultante é muito mais eficaz do que o tom bombástico e urgente que um diretor menos talentoso do que o Ridley Scott daquela época teria adotado. Além disso, o comportamento bizarro do assassino dá indícios de sua verdadeira natureza (que até então desconhecemos), criando um mistério incômodo que deixa a cena ainda mais perturbadora.

Nenhum dos elementos que compõem esse tom inquietante chamam atenção para si mesmos como artifícios: eles contribuem de forma homogênea para um todo que é difícil de decifrar e, portanto, profundamente incômodo em nível subconsciente. Alien é quase que inteiramente feito de terror subconsciente, aliás: o filme é cheio de simbolismos não só sexuais como de abuso sexual, sem que a narrativa jamais verbalize isso. A cabeça do Alien é um pênis gigante cuja boca contém outro pênis com o qual ele empala as pessoas. O terapeuta de H.R. Giger provavelmente o considera um dos pacientes que não conseguiu salvar.

O controle do tom de um filme é essencial para comunicar ideias ao espectador sem a necessidade de verbalizá-las. O Lobo de Wall Street, por exemplo, foi criticado por “glorificar” as ações desprezíveis de seus personagens. Mas não é isso que Scorsese faz: ele retrata os corretores de Wall Street como as criaturas patéticas que são, convidando-nos a rir deles, mas também esfrega na cara do espectador que eles seguem impunes pelo que fazem. Scorsese buscou irritar o público ao não punir seus personagens, porque isso seria desonesto; eles não foram punidos na vida real.

Ainda assim, o cineasta busca deixar clara sua opinião, e para isso ele faz uso de um breve choque tonal. Em um filme que até então se comportava como uma comédia absurda, subitamente um personagem soca uma mulher na barriga. E Scorsese retrata isso de maneira seca, sombria, sem qualquer resquício de humor. Nesse momento, ele diz para o espectador, “É, estamos rindo bastante juntos, então aqui está o seu lembrete de que esses personagens são monstros.” Depois disso, a comédia absurda volta, mas agora sob uma luz diferente.

É isso que a inconsistência tonal faz: “acorda” o espectador, fazendo-o refletir sobre o que está vendo. A principio, o choque em si pode parecer um erro do cineasta, especialmente em um filme que já é ruim até aquele ponto. Mas se o longa é bom, se nós gostamos dele, procuramos achar um motivo que justifique a inconsistência.

Onde os Fracos Não Tem Vez, por exemplo, cultiva uma tensão crescente típica de um filme de ação (e neste caso, um filme de ação excelente), mas quebra o tom ao fazer com que um clímax aconteça fora de quadro. O longa simplesmente pula a cena em questão sem nunca mostrá-la. Diante disso, o espectador pode ter duas reações:

 

1) “P#%$ QUE PARIU, CA&%$LHO, QUE DESGRAÇA DE FILME”

2) “Ué, por que eles pularam essa cena?”

 

Porque queriam que você fizesse essa exata pergunta e buscasse a resposta no resto do longa. Cormac McCarthy se utilizou desse artifício no livro que deu origem à adaptação, e os irmãos Coen se mantiveram fiéis à ideia, usando o tom de filme de ação para pegar o espectador de surpresa e fazê-lo pensar sobre os temas da narrativa.

Agora imagine as consequências desastrosas de um choque tonal mal realizado ou, pior, sequer percebido pelo cineasta.

 

03.

Depois de um primeiro ato sensível e inspirador, Interestelar perde interesse em praticamente qualquer coisa que não inclua personagens preocupados discutindo com urgência o que estão fazendo ou irão fazer a seguir, tanto entre os astronautas quanto entre os personagens que ficam na Terra. As conversas tendem a ser tensas e/ou expositivas, enquanto os momentos mais intimistas são tão inertes que quase se pode ouvir Nolan bocejando fora de quadro. Em certo momento, o astronauta Romilly (David Gyasi) desabafa que está perturbado pelos poucos milímetros de parede que estão entre ele e o espaço. Cooper comenta que alguns dos melhores iatistas do mundo não sabem nadar e oferece ao colega seus fones de ouvido, que tocam sons da natureza, para acalmá-lo. A cena é tão corriqueira que eu devo ter me esforçado mais para descrevê-la do que Nolan para dirigi-la.

Um tom de urgência só funciona quando nos importamos de fato com os personagens. O filme sabota a si próprio ao não dedicar mais ao desenvolvimento dos seus, até nos aspectos mais básicos. A Dra. Brand (Anne Hathaway), ao menos, destaca-se como geralmente antipática e possivelmente apaixonada por um astronauta que está em um dos planetas visitados por expedições anteriores. Pronto. É isso. Os outros dois astronautas estão lá para preencher espaço até que morram dramaticamente (mas sem fazer qualquer falta até mesmo aos outros personagens). Ninguém na nave parece se importar seriamente com ninguém. O ator David Gyasi até consegue dar a Romilly indícios de uma personalidade peculiar, com sua cadência vocal e seus maneirismos, mas o roteiro simplesmente não se interessa por ele. Com personagens tão rasos, o tom de urgência prematuro torna-se artificial e cansativo.

O que é uma pena, porque o compositor Hans Zimmer faz um trabalho soberbo, investindo em uma trilha sonora original em sua combinação de estilo e gênero cinematográfico: o desgraçado consegue fazer um órgão funcionar como principal instrumento em cenas de ação. Ele tenta sustentar o fascínio do primeiro ato, a grandiosidade, o sentimentalismo, mas Nolan simplesmente não se interessa. Os dois só se encontram em sintonia durante os momentos mais tensos.

A recusa dos personagens em mostrar qualquer deslumbramento diante do que veem chega a ficar engraçada depois de certo tempo. Quando eles estão se aproximando do portal para outra galáxia, Nolan finalmente o mostra em toda sua majestade, mas os astronautas agem como se estivessem estacionando um carro em uma vaga apertada. O portal se transforma em um gigantesco túnel hiperespacial - vou repetir isso: o portal para outra galáxia se transforma em um gigantesco túnel hiperespacial - e eles continuam sem demonstrar grande interesse. Só quando uma figura fantasmagórica entra na nave, a Dra. Brand - e apenas a Dra. Brand - fica emocionada. Depois descobrimos o que é essa figura, mas na hora é como se o próprio universo estivesse tentando desesperadamente impressionar algum deles. E, claro, quando os astronautas chegam à outra galáxia e veem corpos celestiais orbitando um colossal buraco negro, a reação deles é um breve “chegamos” seguido de uma discussão sobre qual planeta irão visitar primeiro. Não estou exagerando. O astronauta Doyle (Wes Bentley) literalmente diz “chegamos”. Só.


"Cara, ir para outra galáxia toda semana cansa, viu?"

Comparemos esta chatíssima frieza ao tom adotado por um dos filmes de ficção científica mais subestimados dos últimos anos: Europa Report. O título brasileiro do longa é Viagem à Lua de Júpiter, mas vamos ignorar isso, ok? Ok. Europa Report é um filme found footage que já deixa claro desde o início que algo deu muito errado na expedição espacial retratada pela narrativa, mas depois disso nos apresenta aos astronautas sem pressa: vemos a preocupação que demonstram uns com os outros (uma preocupação que chega a traumatizar um deles) e a importância das funções que cada um desempenha. O fascínio deles com o espaço é apresentado de forma sensível e equilibrada: em certo momento, o astronauta James Corrigan (Sharlto Copley) parece uma criança na Disney enquanto explica para a câmera como funciona a gravidade artificial da nave. Em outro, Katya Petrovna (Karolina Wydra) se mostra maravilhada ao dar os primeiros passos na superfície de Europa.

O próprio diretor Sebastián Cordero, mesmo preso às limitações do found footage, consegue tirar o fôlego na sequência de pouso, quando vemos - através da câmera externa da nave - a cápsula espacial dos astronautas se alinhando com a superfície de Europa e começando a descida. Em um toque de fotografia absolutamente brilhante, o mecanismo de força centrífuga da nave passa na frente da câmera regularmente durante a cena, dando uma escala ainda maior ao que está acontecendo, e a trilha sonora de Bear McCreary consegue ser igualmente evocativa sem apelar para excessos.

Na ausência desse tom, que é ao mesmo tempo intimista e grandioso, Interestelar perde impulso até que os astronautas cheguem ao primeiro planeta. A partir daí, o filme se recupera ao criar uma situação que finalmente faz jus ao tom de urgência: os astronautas precisam pousar em um planeta no qual uma hora corresponde a sete anos na Terra e, ao chegar lá, ainda descobrem que a superfície é regularmente varrida por imensos tsunamis. É uma sequência extremamente tensa, bem construída e com planos abertíssimos que mostram a imensidão do perigo que correm os astronautas. E é graças às sementes emocionais do ótimo primeiro ato que a tensão funciona: Cooper corre o risco de perder anos e anos da vida de Murph se demorarem demais a sair do planeta. Nós sabemos que ele não vai morrer, ainda estamos na primeira hora do filme, portanto a verdadeira tensão da cena reside na possibilidade muito maior dos astronautas se atrasarem. Mas embora seja extremamente eficaz nesse quesito, a cena também demonstra o fracasso do filme em nos interessar pelos seus personagens coadjuvantes, já que um deles morre sem que isso faça muita diferença para os outros ou para o espectador. Especialmente porque o tonto fica parado esperando uma onda gigante varrê-lo ao invés de entrar na nave.

Depois dessa sequência, Cooper e Brand voltam à nave e reencontram Romilly vinte e três anos mais velho (e inexplicavelmente lúcido depois de décadas de solidão), mas novamente nem os personagens e nem Nolan se importam com isso por mais de cinco segundos. O filme se apressa em direção à cena em que Cooper assiste a vinte e três anos de mensagens enviadas da Terra pelos seus filhos.

E esta é, sem dúvida, a melhor cena de Interestelar. É, sem tirar nem pôr, perfeita. Um raro momento que remete aos alicerces emocionais do primeiro ato, e fazem com que este volte a ter alguma relevância para a narrativa. Durante essa cena, fica claro que a história ainda tem fôlego o suficiente para ser excepcional.

Infelizmente, logo depois disso, os personagens discutem qual será o próximo planeta a ser visitado e a Dra. Brand defende usar o Amor ao invés da Ciência para fazer a decisão.

É absolutamente constrangedor. O problema nem é, necessariamente, o que ela está tentando dizer. Afinal, em outro filme de Nolan, O Cavaleiro das Trevas, Batman diz para o Coringa, “Esta cidade acabou de te mostrar que está cheia de pessoas dispostas a acreditar no bem.” Soa pavoroso no papel, mas funciona no longa porque as cenas anteriores expressaram esse exato argumento de forma convincente, e o Coringa responde com um cinismo tão absurdamente teimoso que Batman suspira, desistindo da discussão. E se essa reação divertida dele tivesse sido removida, e só a solenidade exagerada tivesse ficado, a cena não teria funcionado tão bem.


Batman, suspirando

E isso é porque o tom de um filme é guiado não só pela fotografia, pela música, pela duração de um plano e o corte para outro: é também guiado pelas emoções demonstradas por seus personagens nas mais diversas situações. E personagens que só sabem pensar na próxima tarefa enquanto ignoram todo o resto, inclusive um ao outro, não contribuem para o envolvimento do espectador.

Esse tom só acentua a pieguice do monólogo da Dra. Brand. É o tipo de discurso que até poderia funcionar se fosse reescrito para ser falado com mais incerteza, uma série de pensamentos desconexos ditos com um grau de constrangimento. Ao invés disso, Brand diz categoricamente que “O Amor é a única coisa que somos capazes de perceber que transcende as dimensões do espaço e do tempo.” Eu já estava esperando Andrew Lloyd Webber entrar em cena com um violino e começar um número musical.

E a partir desse momento, Nolan não volta a recuperar sua noção de ridículo.

 

04.

A ideia do hipercubo é genial.

Mesmo. Sim, eu falei dela com escárnio antes, mas a ideia é, por si só, genial. O filme é que não a utiliza bem. Já seria difícil, considerando o inerte segundo ato, porém torna-se impossível quando os personagens simplesmente se recusam a ficar calados. Imagine o final de 2001 – Uma Odisseia no Espaço se o astronauta Dave Bowman e o monólito discutissem tudo o que acontece como se estivessem narrando uma partida de futebol. Esse é o final de Interestelar.


"Você não entendeu ainda, Dave? Eu fui enviado por uma civilização alienígena para ajudar a evolução humana e..."

Mas essa avalanche de exposição começa no final do segundo ato com a introdução do Dr. Mann, possivelmente o pior personagem da carreira de Nolan.

O cineasta é criticado com frequência pelos seus diálogos expositivos. Eu tendo a não concordar com essas críticas. Os filmes dele costumam se basear em premissas complexas que requerem um grau de exposição para se tornarem suficientemente claras. Considerando a trama extremamente complicada de A Origem, o longa é brilhante com sua exposição na maior parte do tempo. Quando podem tirar folga da necessidade de manter o espectador informado, Nolan (e seu irmão e coroteirista habitual Jonathan) sabem sim escrever bons diálogos. É verdade que eles têm uma fraqueza por frases de efeito: em certo momento o robô CASE diz que uma manobra “não é possível”, e Cooper responde: “Não. É necessária”.

Porém, Interestelar também tem diálogos como: “Nós costumávamos olhar para o céu e nos perguntar qual é o nosso lugar nas estrelas, e agora olhamos para baixo e nos preocupamos com nosso lugar na lama”. Para não mencionar o ótimo “Você está dizendo que precisa de dois números para medir sua bunda, mas só um para medir o futuro do meu filho?”.

Mas ao fim do segundo ato, surge o Dr. Mann para dar razão aos críticos de Nolan. O cineasta obriga o pobre Matt Damon a recitar parágrafos e parágrafos sobre a natureza humana. Em mais uma inconsistência de tom, o filme traz seus temas filosóficos do nível subtextual para o textual em uma pancada só. O Dr. Mann submete Cooper a uma aula de antropologia enquanto eles andam pela superfície congelada do segundo planeta. E o pior é que Cooper não reage, apenas ouve silenciosamente sem estranhar o súbito interesse do Dr. Mann em fazê-lo entender o instinto de sobrevivência humano, o que deixa tudo ainda mais forçado. Um simples olhar de confusão já teria aliviado as coisas.

Em seguida, Mann tenta matar Cooper, e a luta que segue é encenada de forma terrivelmente artificial. É hilário ver o doutor explicando o porquê de estar traindo Cooper enquanto tenta chutá-lo de um penhasco. O protagonista consegue imobilizar Mann no chão, mas este começa a bater o visor do próprio capacete no visor de Cooper, tentando causar uma rachadura. Cooper, ao invés de se afastar, inacreditavelmente prefere dizer, “Dr. Mann! Há cinquenta por cento de chance de você matar a si próprio!” E o doutor, confirmando a fraqueza dos Nolan por frases de efeito, responde, “Essa é a melhor probabilidade que tenho em anos,” e quebra o visor de Cooper. Sendo que o Dr. Mann estava por baixo, com a gravidade agindo contra si e sem recuo para conseguir impulso.

Esse é o tipo de detalhe que faz uma cena de ação ficar falsa, e Nolan piora as coisas ao intercalar essa sequência com outra na qual Murph, já adulta, queima uma plantação de milho para enganar seu irmão. Se as duas situações não parecem combinar muito... é porque não combinam. Sim, intercalar as cenas mostra Cooper e Murph agindo simultaneamente para salvar o mundo, mas todas as outras cenas envolvendo Murph já fazem isso. Os dois personagens estão focados na mesma coisa e isso já está estabelecido. Tudo o que a montagem consegue com esse “vai e volta” é diluir ainda mais o impacto da luta entre os astronautas.

Com Cooper caído no chão sufocando, o Dr. Mann começa a ir embora, mas nããããããão, ele não poderia simplesmente ir embora, é claro que ele tem que virar para Cooper e dizer, “Você está sentindo? O instinto de sobrevivência? É isso que me motiva. É isso que motiva todos nós”. Só faltou o desgraçado pegar um datashow e projetar uma apresentação de Power Point.

A impressão que dá (e que posteriormente vira certeza) é que o filme está desesperado, sem tempo de incluir tudo o que gostaria dentro de duas horas e cinquenta de duração. Ao menos Nolan parece perceber o quanto o personagem de Damon é insuportável, e tem o bom senso de matá-lo em meio a um de seus intermináveis monólogos, mas isso não alivia o dano às cenas anteriores.

A sequência de ação após essa se revela bem mais eficaz: Cooper precisa acoplar com a Endurance enquanto esta gira fora de controle. Assim como fez na cena do tsunami, Nolan mostra a situação com um tom grandioso que não parece interessá-lo em cenas que não sejam de ação. O cineasta consegue nos fazer entender a complexidade da manobra de Cooper e conferir a ela verossimilhança, usando com brilhantismo as câmeras externas coladas à fuselagem da nave.

Poucos minutos depois disso, o astronauta cai em um buraco negro e descobre a importância do Amor.

Nesse intervalo de poucos minutos há uma avalanche afobada de explicações. Nolan parece tão apressado em chegar ao desfecho que a Endurance vai de um planeta até um buraco negro em alguns minutos, tendo anteriormente levado dois anos para ir da Terra a Saturno. O tom cada vez mais apressado e descontrolado denuncia um filme que já não parece mais ter domínio da complexidade galopante de sua narrativa. Nós vamos do retrato realista de uma dificílima manobra de acoplagem para um personagem caindo voluntariamente em um buraco negro e encontrando o quarto da filha representado ao longo de toda a sua existência por um hipercubo construído por seres humanos pentadimensionais do futuro. Um momento de calma entre essas duas cenas teria sido uma boa ideia. Ei, quando você faz um longa de duas horas e cinquenta, arredonde logo para três. A pressa da cena negligencia uma consequência importantíssima da cena anterior: a explosão de parte da Endurance acaba de vez com a possibilidade de Cooper voltar para Terra e reencontrar seus filhos. A reação dele? Nenhuma, claro. A Dra. Brand diz, “Sinto muito”, ele olha para baixo por dois segundos e o filme corta para próxima cena.

Ainda assim, Nolan consegue construir tensão na queda de Cooper dentro do buraco negro. Quando o hipercubo é revelado, o cineasta nos apresenta às complexidades deste gradualmente. Em um momento particularmente tocante, o protagonista vê a si mesmo indo embora do quarto da filha décadas atrás e grita desesperadamente para que não vá. A coragem de Nolan em introduzir um conceito ousado como esse no terceiro ato me surpreendeu positivamente.

Aí aquela droga de robô aparece e diz, “Eles construíram este espaço tridimensional dentro da dimensão pentadimensional deles para permitir que você entenda”. E logo em seguida uma avalanche de exposição ainda pior soterra a cena:

 

Cooper: “Tudo isto é o quarto de uma garotinha! Cada momento é infinitamente complexo. Eles têm acesso a tempo e espaço infinitos, mas não estão presos a nada! Eles não conseguem encontrar um período específico no tempo. Não conseguem se comunicar. É por isso que eu estou aqui, para encontrar um jeito, assim como encontrei este momento.”

TARS: “Como, Cooper?”

Cooper: “O amor, TARS, o amor! É como a Brand disse...”

 

... uau.

 

Começamos com um primeiro ato emocional, seguimos com um segundo ato frio e chegamos a um terceiro ato que vomita um arco-íris. Somos obrigados a ver Cooper - um personagem que ao longo de todo o segundo ato mal demonstrou emoção alguma além de urgência - flutuando com um sorriso bobão no rosto enquanto glorifica o Amor como a Solução Definitiva. Nolan felizmente conseguiu se conter o suficiente para evitar que McConaughey completasse com um “Alright, alright, alright”.

O cineasta não percebeu que o simples fato de Cooper e Murph estarem se comunicando através do tempo e espaço é a maior força da cena, o único elemento que de fato importa. Ele se obceca em explicar cada detalhe de sua estrutura narrativa e só enfraquece tudo cada vez mais, especialmente quando Cooper diz que os seres humanos pentadimensionais não sabem encontrar um momento específico no tempo. Então porque o buraco de minhoca surgiu em Saturno quando surgiu, caramba? E quer dizer que quando virarmos seres humanos pentadimensionais nós não vamos mais ser capazes de amar e vamos precisar voltar no tempo para pedir ajuda aos nossos antepassados? Quanto mais fundo se cava, mais ridículo fica, porque o brilhantismo do conceito não está na sua lógica.

O hipercubo é uma metáfora belíssima da conexão inquebrável entre Cooper e Murph, uma conexão que o filme estabeleceu tão bem. Isso é o que importa. Ver os dois finalmente se comunicando, depois de tanto tempo, tão longe, mas tão perto um do outro, seria uma catarse poderosa e tematicamente perfeita. Olhem a genialidade: Cooper saiu da Terra para garantir o futuro de seus filhos, mas não encontrou planetas habitáveis. A única chance que restou foi tentar descobrir se havia como sobreviver ao interior de um buraco negro a fim de achar a peça final da equação que Murph precisa resolver. Ao entrar no buraco negro, ele vê uma representação tridimensional do tempo, e a única coisa que permite que ele ache o momento certo e se comunique com Murph é a conexão entre os dois, a história que compartilham.

Tudo isso poderia ter sido passado sem um robô magicamente explicando tudo e depois servindo de ouvinte para que Cooper explique tudo também. Os detalhes mais específicos poderiam ter sido deixados à interpretação do espectador (assim como em 2001 – Uma Odisseia no Espaço), mas Nolan deu mais importância à absoluta clareza lógica e, com isso, destruiu a cena ao verbalizar tudo de maneira ridícula.

E aí vem o epílogo e taca fogo no que resta.

 

05.

Depois de aprender a importância do Amor, blábláblá, arco-íris, unicórnios e tudo o mais, Cooper é resgatado da órbita de Saturno e enviado para a Estação Espacial Cooper, que em uma divertida inversão de expectativa é batizada em honra à sua filha, não a ele. O protagonista é informado de que Murph, já idosa e à beira da morte, está vindo visitá-lo. Cooper não pergunta sobre seu outro filho, Tom. Sério. Ele simplesmente não pergunta sobre seu outro filho, que em sua perspectiva temporal estava vivo há menos de um ano atrás.

Finalmente, Murph chega, é colocada em seu leito de morte, e Cooper vai encontrá-la. Ele entra e vê sua garotinha já uma senhora de idade, cercada de seus filhos, netos e bisnetos.

A reação de Cooper? Se aproximar calmamente dela, segurar sua mão e trocar algumas palavras sorridentes. Ele nem a abraça, meu Deus. E Murph, embora emocionada, diz “Nenhum pai deveria ver seu filho morrer,” e pede que Cooper vá embora em busca da Dra. Brand, uma personagem com quem ele praticamente não teve uma conversa agradável ao longo do filme inteiro.

E ele vai.

Depois de tanto tempo separados, ele e Murph se contentam com dois minutos juntos. E mais uma vez, nenhum dos dois menciona o irmão de Murph. É perfeito para o tema desta coluna que ele se chame Tom, porque o filme diz “dane-se” para ele: Interestelar começa com um primeiro ato alicerçado em emoções e esperança, contradiz isso com um segundo ato frio cuja verborragia e pressa aumentam cada vez mais, contradiz isso com um terceiro ato incessantemente didático e constrangedoramente sentimental e contradiz isso com um epílogo que abre mão do sentimentalismo, justamente o sentimentalismo que o filme fez por merecer. É um zigue-zague tonal que não faz o menor sentido. A catarse emocional do protagonista é desperdiçada; ele esquece da existência de um filho e se satisfaz em passar dois minutos com o outro. E agora vai atrás de uma personagem que qualquer um poderia ir buscar. Fica subentendido, só para deixar as coisas ainda mais implausíveis, que Cooper e Brand tem algum interesse romântico um pelo outro.

Christopher Nolan, um cineasta cujo domínio de tom sempre foi eficaz, se mostra perdido, sem parecer compreender onde o centro emocional de seu filme está e como usá-lo para evocar no público, visceralmente, o que deseja expressar.

Mas em um breve momento, ele consegue. E é por isso que a cena em que Cooper chora ao ver mensagens de seus filhos diz mais sobre o amor do que todo o desfecho verborrágico de Interestelar.

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Sobre o autor:

É primariamente escritor e autor da tira em quadrinhos PITCH BLACK. Sua experiência com técnicas narrativas e cinematográficas vem do estudo téorico e da prática, tendo trabalhado como videomaker por vários anos. Também fez cursos com um tal de Pablo Villaça.

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