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Festival de Cannes 2016 - Dias 01 e 02 Festivais e Mostras

Cannes está diferente este ano. Talvez seja o fato de a cidade estar mais chuvosa do que no ano passado, mas o mais provável é que esta diferença seja consequência da tensão que podemos sentir por todos os lados à medida que percebemos a presença maciça de agentes de segurança, policiais e viaturas, já que, preocupado com a possibilidade de um ataque terrorista durante um dos eventos mais prestigiados do mundo, o governo francês implementou um esquema rigoroso para (ao menos tentar) impedir uma tragédia.

Assim, é impossível entrar no Palácio dos Festivais sem passar por uma revista detalhada que inclui vistoria de qualquer bolsa ou sacola e que é seguida pelo inevitável detector de metais. Como a cada sessão é necessário sair e voltar ao Palácio, apenas no segundo dia teremos que passar por este processo ao menos seis vezes. Mas creio que este é um preço pequeno a se pagar pela segurança, não?

O fato é que a tensão acaba trazendo outros resultados e revelando o lado feio de muita gente. Ontem, na fila para a coletiva de Woody Allen e a equipe de Café Society, subitamente ouvi uma discussão atrás de mim e, ao me virar, notei que um jornalista xingava uma colega ao seu lado, acusando-a de ter furado a fila -  e embora eu não possa dizer se ela realmente o fez ou não, o que sei é que o sujeito logo expôs seu caráter ao dizer:

- De onde você é? Você não tem dignidade? Não tem vergonha? Responda: de onde você é? Eu aposto que não é europeia!

Xenofobia clara e repugnante.

Bom, felizmente esta postura não encontra reflexo nos filmes programados pelo festival, que até agora têm primado pela representatividade. Por enquanto, aliás, tenho conseguido escrever textos mais completos sobre quase todos, além de comentá-los brevemente no Snapchat (@pablovillaca), onde também tenho revelado os bastidores do evento.

Antes de passar para os textos mais breves que escrevi sobre dois longas, linko a seguir as críticas das produções vista até agora em Cannes:

Café Society, de Woody Allen

Sieranevada, de Cristi Puiu

Rester vertical, de Alain Guiraudie

Jogo do Dinheiro, de Jodie Foster

Eu, Daniel Blake, de Kean Loach

 

E agora, os restantes:

Omor shakhsiya, de Maha Haj:

 “É assim que você enxerga as mulheres?”, pergunta Maissa ao namorado dramaturgo após ler sua última peça. Incomodada com a visão que este tem acerca do sexo oposto (mesmo que jamais explique a ele ou ao espectador o que a incomodou), a moça ressente a distância emocional que o rapaz insiste em manter e vê, no texto, um indício preocupante de suas razões.

O grande problema é que Omor shakhsiya (ou Personal Affairs), filme no qual ela se encontra, é certamente tão ou mais sexista que a peça de seu par.

Supostamente interessado em investigar as relações entre homens e mulheres a partir de quatro casais (todos da mesma família), o longa do estreante Maha Haj não hesita em pintar todas as namoradas e esposas como criaturas irracionais, neuróticas, instáveis, agressivas e controladoras – e repetidas vezes vemos os pobres namorados/maridos tentando estabelecer alguma comunicação sem sucesso, já que ao menos três das quatro mulheres em algum momento se recusam até mesmo a responder seus parceiros (a quarta jamais aparece, dando o bolo no namorado que havia preparado um jantar para apresentá-la aos pais).

A pobreza do roteiro, aliás, encontra reflexo nos aspectos técnicos: a fotografia digital é lavada, sem personalidade, lógica ou valor estético, ao passo que a câmera se move frequentemente de forma deselegante e sem propósito algum apenas para marcar a existência de um diretor por trás de tudo.

Como se a tortura já não fosse suficiente, o longa ainda tenta criar momentos de humor que fracassam vergonhosamente – e se há algo difícil de aturar é um machista imaturo tentando fazer gracinha sem sucesso. Ou, neste caso, um filme inteiro.

 

Eshtebak, de Mohamed Diab

Ao longo da produção egípcia Eshtebak (ou Clash), dirigida por Mohamed Diab, lembrei-me várias vezes do húngaro Filho de Saul e do israelense Líbano, dois filmes que retratavam um conflito gigantesco e sangrento a partir de um ponto de vista limitado que nos prendia a um personagem (ou a um pequeno grupo deles) enquanto permitia vislumbres do caos que os cercava.

O contexto político da obra é recente: depois da revolução de 2011 que tirou o ditador Mubarak do poder depois de 30 anos, foi seguida por uma eleição que resultou na ascensão da Irmandade Muçulmana e culminou em outros protestos colossais que trouxeram a tomada do governo pelos militares, o Egito foi dominado por uma guerra civil que trazia, de um lado, os apoiadores da Irmandade e, do outro, aqueles que defendiam o Exército. E é num destes confrontos que Eshtebak tem início, acompanhando a prisão de dois jornalistas que, atirados num camburão pelos militares, tentam atrair a atenção de manifestantes pró-governo que acabam também sendo presos por engano - e não demora muito até que partidários islâmicos completem a lista de prisioneiros. Com isso, o apertado veículo passa a abrigar basicamente todos os lados da guerra, funcionando como um microcosmos que representa todo o país.

O curioso, porém, é que a narrativa jamais deixa aquele espaço: do início ao fim da projeção, permanecemos presos ao lado daquelas pessoas enquanto o caminhão é deslocado de um lado para outro, é cercado por protestos de ambos os lados e se vê sob o ataque de tiros, pedras e bombas. Claustrofóbico e angustiante, o longa aponta, pelas semelhanças e contrastes entre os personagens, o desperdício de potencial representado por uma disputa político-religiosa que separa iguais, provocando cisões familiares, prejuízos materiais e mortes.

E, assim, quando a partir de certo ponto nem mesmo os personagens conseguem mais identificar de que lado estão os manifestantes que os cercam, o filme estabelece a estupidez do ódio, que acaba por nivelar todos por baixo e permite, por eliminação, que os mesmos elementos de sempre se mantenham no poder.

 

E por enquanto é só.

Um grande abraço e bons filmes!

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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