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Aquarius: Sabotado por Ser Favorito Festivais e Mostras

Nenhuma forma de Arte é apolítica. Por mais vazia que possa parecer, uma obra sempre traz, em sua costura, ao menos o contexto cultural e político de seus países e realizadores. Tentar dissociar um filme de seus temas, preocupações e discussões é algo não apenas fútil, mas absurdo.

Por outro lado, quando a política interfere na produção e na distribuição artística, o quadro é outro: a manifestação pessoal do criador passa a ser delimitada não por seu talento ou por sua sensibilidade, mas pela vontade e pelos interesses de outros que nada têm a ver com seu processo criativo. Em outras palavras: é perfeitamente aceitável que um realizador crie uma obra para expressar, por exemplo, seu desprezo pelo governo de um país – mas é inadmissível que este tente prejudicá-lo por isso.

O mínimo que devemos esperar de um governo é que seja melhor e mais maduro do que seus cidadãos.

Não foi isso que vimos ocorrer nos últimos meses, contudo. Desde que a comissão formada pela “Secretaria” do Audiovisual (parte do “Ministério” da Cultura do atual “governo”) foi formada para selecionar o candidato brasileiro ao Oscar 2017, as coisas se revelaram no mínimo problemáticas: já de imediato, chamou a atenção a presença de um “crítico” de Cinema que, nos meses anteriores à sua indicação para a comissão, vinha atacando insistentemente um dos principais pré-candidatos à vaga e também seu criador – Aquarius e o diretor Kléber Mendonça Filho.

Sem ter visto o filme.

Como se não bastasse, o tal “crítico” (e coloco entre aspas porque estou alargando a definição para incluir pessoas que são constantemente criticadas pelos colegas de profissão por questões éticas e profissionais) não só tinha uma óbvia predisposição contra Aquarius, mas também um aparente conflito de interesses por estar no elenco do novo filme, ainda inédito, dirigido por um dos concorrentes avaliados pela comissão.

Sua presença era tão contestada que dois dos integrantes do comitê renunciaram durante o processo e três longas que concorriam com Aquarius retiraram suas candidaturas: Boi Neon, Para Minha Amada Morta e Mãe Só Há Uma.

Por outro lado, outros competidores viram no conflito uma forma de aumentar a visibilidade de seus projetos – e o diretor David Schurmann, preferindo ignorar o claro elemento político em jogo, logo escreveu um post em redes sociais dizendo sentir que seu trabalho estava sendo “prejudicado”.

Colocar-se como contraponto a Aquarius no debate rendeu dividendos e, nesta segunda-feira, o tal comitê anunciou o longa de Schurmann, Pequeno Segredo, como o concorrente brasileiro ao Oscar, dizendo enxergar no filme mais elementos que facilitariam uma indicação pela Academia.

Sério? Mais elementos do que o prestígio internacional alcançado por Aquarius nos últimos meses e que já o colocou no radar dos membros da Academia?

Ora, o trabalho de Kléber Mendonça foi exibido na Mostra Competitiva do Festival de Cannes, recebendo críticas incrivelmente positivas por parte da imprensa mundial e colocando Sônia Braga até mesmo na corrida como Melhor Atriz. Como se não bastasse, Aquarius venceu o prêmio de Melhor Filme nos festivais de Amsterdã e de Sydney, venceu prêmios de Melhor Atriz e Diretor no festival Latino-Americano de Lima e, de quebra, foi selecionado para participar não só do Festival Internacional de Nova York, mas também do Festival de Toronto – e este último é particularmente significativo de um ponto de vista estratégico, já que é considerado hoje como uma das paradas quase obrigatórias para qualquer produção que pretenda concorrer seriamente ao Oscar.

Pequeno Segredo reflete seu título, já que é um completo desconhecido no meio cinematográfico, não tendo passado por qualquer mostra ou festival – e não apenas aqueles de renome, mas qualquer um.

Isto, porém, nem é o pior. O mais estarrecedor é que Pequeno Segredo era – atenção – inelegível para o Oscar 2017. De acordo com as regras da Academia, os candidatos a filme estrangeiro devem ter sido exibidos em algum cinema de seu país de origem por ao menos sete dias consecutivos entre 1º. de Outubro de 2015 e 30 de Setembro de 2016.

E Pequeno Segredo, como comprovam o iMDB, o FilmeB e o release enviado pelos próprios produtores, tem data de estreia marcada para Novembro de 2016, o que só permitiria que competisse ano que vem.

   

Mas o que são regras quando todo o processo já se mostrou comprometido desde o princípio? Para contornar o “problema” (leia-se: sua clara inelegibilidade), o filme será exibido em algumas poucas telas em cinemas pequenos até o fim do mês.

Ah, sim: e como uma rápida visita à página do filme no Facebook comprovará, nosso agora candidato oficial está sendo celebrado por perfis fascistas e que declaram amor por figuras como Bolsonaro, Feliciano e companhia. Que maneira linda de iniciar uma trajetória rumo ao reconhecimento internacional, não? 

E o que ocorre com as chances de Aquarius agora?

Sua única possibilidade é a de concorrer de igual para igual com todas as principais produções de Hollywood, tentando uma vaga fora da categoria Filme Estrangeiro. Para isso, ele precisa ser exibido ao menos por uma semana em Los Angeles ou Nova York até o dia 31 de dezembro. Isto, porém, é o mínimo. Hoje em dia, para concorrer de igual para igual, uma produção deve investir no mínimo 1,5 milhão de dólares em uma campanha de divulgação – e por mais que os distribuidores de Aquarius acreditem no filme, este é um investimento arriscado e sem muita possibilidade de retorno, já que, mesmo que consiga alguma indicação, é provável que o aumento na arrecadação nas bilheterias norte-americanas não seja tão significativo, já que se trata de uma obra falada em português.

O pior é que, como consequência disso, torna-se muito difícil que Sônia Braga possa se mostrar competitiva como Melhor Atriz – o que é lamentável, já que ela já saiu de Cannes como uma pré-favorita a uma indicação ao Oscar até mesmo por já ser conhecida em Hollywood e contar com a narrativa do “comeback”, que os membros da Academia amam. (Não por acaso, haverá um evento especial no Festival Internacional de Toronto centrado em Braga.)

Aliás, não é difícil concluir que, paradoxalmente, um dos elementos que pesaram contra Aquarius foi justamente o fato de ter boas chances de ser indicado - o que poderia gerar um constrangimento ao "governo" como aquele ocorrido durante o Festival de Cannes, quando Kléber e sua equipe se manifestaram contra o que vinha ocorrendo no cenário político brasileiro.

Uma sabotagem ao nosso próprio cenário cinematográfico, portanto.

Tempos difíceis, estes em que vivemos.

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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