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Festival de Berlim 2017 - Dia #08 Festivais e Mostras

Um dos temas que discuto em meus cursos é como a familiaridade com o estilo de um diretor cria, no espectador, expectativas formais que moldam nossas relações com seus filmes já de imediato, desde o primeiro frame. De modo geral, nos preparamos para (re)encontrar certos elementos que, na obra de outro realizador, talvez provocassem incômodo ou surpresa.

Isto certamente se aplica à filmografia do sul-coreano Hong Sangsoo e a este seu novo longa, On the Beach at Night Alone (Bamui haebyun-eoseo honja), exibido na mostra competitiva do Festival de Berlim 2017. Assistir a uma obra de Sangsoo é esperar por longos planos estáticos com zooms ocasionais e panorâmicas pontuais, mudanças constantes de locações enquanto os personagens se entregam a conversas sobre suas vidas e, o mais importante, o momento no qual todos se sentarão em torno de uma mesa e se embebedarão com Soju.

Dividida em duas partes, a “trama” gira em torno da atriz Younghee (Kim Minhee, de A Criada), que viaja para a Europa a fim de encontrar o diretor com quem vem tendo um caso. Insegura acerca dos sentimentos do sujeito, ela conversa com amigos, visita uma praia e, quando a reencontramos na segunda parte e de volta à Coreia do Sul, seu relacionamento com o cineasta, que era casado, parece ter afetado sua carreira – e novamente a vemos discutir o assunto com diversos conhecidos.

A natureza repetitiva dos diálogos, que soam improvisados em diversos momentos, é uma das marcas de Hong Sangsoo, evidentemente, e tem o propósito duplo de conferir naturalidade às interações e refletir a lógica tão comum nos bate-papos que mantemos no cotidiano, que raramente seguem a estrutura cuidadosa de um roteiro. Além disso, ao debaterem questões como o amor e a solidão, não há como aquelas pessoas chegarem a uma conclusão de fato (que conclusões podemos tirar de tópicos como estes?), então é o processo em si que se torna relevante.

E é exatamente isso que esperaríamos da cadência típica deste cineasta profundamente autoral.

A seguir, assisti ao documentário sul-coreano Becoming Who I Was, que encaixei na programação apenas para tapar um buraco e que – talvez por isso – se apresentou como uma das melhores surpresas do festival. Dirigido por Moon Chang-yong e Jin Jeon ao longo de nove anos, o filme acompanha o garotinho Padma Angdu, nascido na Índia e que desde os 5 anos foi reconhecido por monges budistas como sendo um Rinpoche: a reencanarnação de um lama iluminado. No entanto, o monastério no qual seus discípulos se encontram fica no Tibet, que, em função dos conflitos com a China, é mantido fora do alcance do menino. Com o passar dos anos, Angdu vai se frustrando por não poder cumprir sua vocação.

Criado desde cedo por um budista tibetano que o educa, Angdu chega aos 11 anos de idade afirmando que está se esquecendo de quem foi na encarnação passada, o que impulsiona seu idoso mestre a decidir levá-lo em uma longa viagem rumo ao Tibet.

Além da dedicação demonstrada ao acompanhar por tanto tempo aqueles personagens, os dois cineastas revelam, graças à intimidade criada com estes, detalhes de seu cotidiano pobre, mas repleto de carinho. Da mesma forma, à medida que seguimos o garoto e o velhinho por uma jornada desgastante através de estradas estreitas e montanhas cobertas de neve, fica claro que todas aquelas dificuldades estão sendo enfrentadas também pelos diretores, mesmo que estes jamais tentem atrair a nossa atenção, compondo quadros cuidadosamente compostos que jamais sugeririam os sacrifícios feitos atrás da câmera.

No entanto, o melhor elemento do documentário é a maneira como estabelece a ligação entre Angdu e o mestre, que formam uma dupla tão perfeita do ponto de vista dramático que chega a ser incrível que não tenha sido obra de um roteiro ficcional.

Grande acesso aos personagens teve também o documentarista espanhol Fernando León de Aranoa, responsável por Política, manual de instrucciones, que revela os bastidores da criação do Podemos, partido criado a partir do movimento popular originado pela crise econômica e que surpreenderia nas eleições do país, até então polarizadas entre dois partidos.

Seguindo o primeiro secretário-geral do partido, Pablo Iglesias, e seu amigo (e, eu diria, principal ideólogo do Podemos) Iñigo Errejón, o filme vai desde a convenção de formação da legenda até as eleições gerais disputadas em 2015, enfocando dissidências quanto às posturas e sistema de funcionamento da sigla até a maneira como aqueles inexperientes políticos desenvolveram suas primeiras campanhas eleitorais.

Claramente simpatizante das posições ideológicas do Podemos, o diretor não permite, contudo, que isto o cegue para os óbvios problemas internos provocados não só pela falta de traquejo dos personagens, mas também por seus egos, o que leva o filme a fazer jus ao título e desempenhar, de certa maneira, a função de ilustrar os elementos fundamentais na formação de um partido que pretende realmente fazer alguma diferença.

“Nem sempre a gente sabe o que está filmando”, diz o cineasta João Moreira Salles em certo momento de seu novo documentário, No Intenso Agora. Aliás, chamar esta obra de “documentário” talvez não seja o mais apropriado; há momentos nos quais ela se encaixa nesta descrição, mas, na maior parte do tempo, o que Salles faz é um ensaio sobre História, política e juventude, começando a partir dos registros feitos por sua mãe durante uma viagem para a China, em 1966, e voltando seu olhar para os movimentos populares ocorridos ao redor do mundo em 1968.

Logo no início da projeção, o diretor recupera um pronunciamento feito por Charles de Gaulle pela televisão no último dia de 1967, quando deseja um ótimo ano para os franceses e prevê que este será tranquilo – uma expectativa arruinada cinco meses depois, quando protestos de estudantes universitários resultaram em brutalidade policial (isto não é exclusividade nossa) e inflamaram boa parte da população, culminando numa greve geral e um princípio de convulsão social.

Fascinado com a energia e mesmo a alegria dos jovens franceses, Salles parte de imagens de manifestações e outros momentos daquele período específico para refletir sobre como, para a maior parte daquelas pessoas, aquele viria a representar o instante mais feliz de suas vidas – e como elas certamente não se davam conta, no calor dos protestos, de como estavam criando e fazendo parte da História. Por outro lado, o cineasta tem uma mente arguta demais para se limitar a romantizar a época e seus acontecimentos, apontando a falta de preparo e/ou ambição dos jovens em seus objetivos, já que chegam a passar ao lado do congresso durante uma das marchas sem nem sequer cogitar invadi-lo. Além disso, por mais idealistas que muitos deles fossem, o fato é que problemas estruturais da sociedade francesa se encontravam tristemente refletidos nos protestos – algo que o filme expõe ao comentar a ausência de mulheres entre os organizadores e também a de negros. Do mesmo modo, é revelador como até mesmo os trabalhadores que se juntaram aos estudantes se referiam a estes como “nossos futuros patrões”.

No Intenso Agora, contudo, segue adiante e discute como, embora a empolgação do momento seja contagiante, o Sistema não encontra muitas dificuldades para eliminar o vírus da inquietação, sendo assustador reparar como já em julho a França retornara à normalidade (leia-se: com a elite reafirmando seu poder). Pois se a revolução pode ter início com uma velocidade descomunal, a normalização da opressão consegue ser ainda mais veloz – e Salles ilustra isto ao observar como em muitos dos países nos quais o status quo é questionado, a liberdade de expressão logo passa a ser eliminada sem que os cidadãos percebam.

Mas o interesse de João Moreira Salles não é apenas histórico; como cineasta, ele se mostra instigado a analisar as imagens que recuperou (numa excelente pesquisa, diga-se de passagem) de um ponto de vista semiótico. Assim, frequentemente ele repassa certos trechos para apontar elementos que se apresentam – mesmo que por acidente – como signos, como a maneira que uma babá negra se afasta automaticamente para permitir que apenas a patroa seja filmada com os filhos ou como a posição do líder estudantil Daniel Cohn-Bendit e a de um professor reforçam suas posições “hierárquicas” convencionais mesmo que estejam em processo de inversão.

Porém, a sequência mais brilhante de No Intenso Agora talvez seja aquela em que Salles, com sua narração sóbria (beirando a tristeza), analisa as imagens e a percepção histórica dos funerais de estudantes mortos em 1968 (Jan Palach na República Checa; Edson Luis de Lima no Brasil; Gilles Tautin na França) e disseca suas diferenças, que vão da dor pessoal à indignação, passando pelo aspecto simbólico que assumiam. Para completar, o documentário é hábil ao sugerir a ligação entre o suicídio de vários estudantes nos anos seguintes às suas revoltas e a frustração e o desapontamento que provavelmente os dominaram em suas vidas adultas.

Pois se há uma consequência direta da intensidade com que movimentos como os retratados pelo filme impactam seus protagonistas é o fato de que, tragicamente, o restante de suas vidas se tornará um contínuo anticlímax.

Já o último filme que vi no dia foi o terceiro ato das dez horas que compõem o melhor filme de todos os tempos: O Poderoso Chefão Parte III – e sobre este basta dizer que aqueles que não reconhecem sua genialidade não merecem falar comigo nem com meu anjo.

16 de Fevereiro de 2017

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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