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As Duas Irenes Brasil em Cena

As muitas Irenes

Estar diante das atrizes Priscila Bittencourt e Isabela Torres é uma experiência surpreendente para quem só as conhece do filme “As Duas Irenes”, filmado em 2015, que estreia hoje no Brasil. Basicamente, porque elas parecem ter trocado de papéis “na vida real”. 

A retraída Irene de Priscila, menina de 13 anos com cabelos castanhos na altura dos ombros, surge como uma adolescente loira platinada de 16, vestindo minissaia e botas de salto alto. A exuberante Irene de Isabela é agora uma jovem de 18 anos, piercings espalhados pelo rosto, à vontade em uma aparência despojada, quase unissex.  

Priscila nasceu em São Paulo, morou em Goiânia e hoje vive nos Estados Unidos, com os pais e com o irmão, onde cursa o equivalente ao Ensino Médio e frequenta cursos de interpretação. Isabela é de Goiânia, mas hoje vive em São Paulo, onde também faz curso de teatro. A ideia de “troca de papéis”, portanto, prevalece.

Priscila, Isabela, o diretor Fábio Meira e a atriz Inês Peixoto estiveram em São Paulo no começo desta semana, onde falaram ao Cinema em Cena.

Sem tempo nem espaço

Irene (Priscila Bittencourt), uma garota de 13 anos, de uma família tradicional do interior, descobre que seu pai (Marco Ricca) tem uma filha (Isabela Torres) de outra mulher (Inês Peixoto), com a mesma idade e o mesmo nome dela. Sem que ninguém saiba, ela decide procurar a garota e um mundo de descobertas se inicia. 

Escrito e dirigido por Fabio Meira, que estreia no formato longa-metragem com “As Duas Irenes”, o filme não é localizado no tempo ou no espaço. “Eu busquei essa condição por dois motivos principais. Primeiro, porque para mim a história é uma fábula. E também porque eu acho que essa sociedade patriarcal da qual nós ainda somos cúmplices é algo tão ultrapassado que o espaço dela é esse lugar anacrônico, um fim de mundo com costumes fora de época”, diz o diretor e roteirista.

A Irene que vai em busca da outra família do pai é a filha do meio em sua casa. A irmã mais velha, Solange (Maju Souza) está às voltas com os preparativos para seu baile de debutantes. A mais nova, Cora (Ana Reston) é o xodó da família. Irene, equilibrando-se entre as duas, parece invisível naquele ambiente, identificando-se mais com a empregada Madalena (Teuda Bara) do que com a mãe, Mirinha (Suzana Ribeiro). Quase mimetizada no seu entorno, Irene surge em um figurino em tom pastel, confundindo-se com o rosado das paredes da casa ou com os matizes terrosos das paisagens.

“É interessante porque eu não tinha pensado nisso, mas nos Estados Unidos surgiram algumas críticas sobre o filme destacando justamente esse aspecto, usando a expressão ‘papel de parede’ para descrever essa percepção”, comenta Fabio. “Para mim, era importante transparecer monotonia. Até encontrar a outra Irene e começar a se libertar, ela viveria em um ambiente onde não fosse facilmente percebida”, acrescenta o diretor.

Um filme de silêncios

A diferença clara no visual das duas Irenes era algo fundamental na concepção do filme, cuja direção de arte ficou a cargo de Fernanda Carlucci. “Como era um filme de muito silêncio, era importante caracterizá-las pelas imagens. Por exemplo, a Priscila tinha um cabelo loiro até a cintura, algo que não fazia sentido para uma filha do meio, introspectiva e ensimesmada. Cortamos e tingimos de castanho, que aliás é o tom do cabelo da Isabela, criando um visual bem ‘meio termo’: nem curto, nem comprido, nem claro, nem escuro. ”

O desafio de fazer um filme mais baseado em expressões e olhares, e menos em palavras, foi potencializado pela pouca idade das protagonistas – algo que nunca surgiu como um problema aos olhos do diretor. “Para mim, é um processo natural. Isso tem a ver com o tipo de filme que me interessa, permitindo uma lacuna que o espectador pode completar. Gosto de aportar o filme, sem dar respostas: ele continua vivendo em você depois de um tempo”, reflete o diretor.

Com as duas Irenes, de fato, foram processos diferentes. Priscila vivencia o mundo das artes desde os cinco anos de idade, transitando entre o teatro e a dança. “Minha família é muito artística, por isso minha mãe sempre me incentivou nessa área. Fiz balé por dez anos e também teatro, mas o cinema é totalmente diferente, porque ele obriga o ator a pegar tudo o que sabe fazer e jogar para o olhar”, diz Priscila.

Isabela, descoberta em uma agência de modelos, fez sua estreia em atuação no filme. “Nós trabalhamos antes com a Verônica Veloso, preparadora de elenco, e foi aí que eu realmente entrei na personagem, com vários exercícios, principalmente baseados no olhar”, lembra Isabela.

O diretor reforça a importância desse aspecto na composição do filme. “Tanto com a Priscila quanto com a Isabela, para mim era importante ver como as duas reagiam em silêncio. E, de fato, as minhas cenas preferidas de cada uma são cenas em que elas não têm texto e fazem brilhantemente. ”

O ponto de partida de “As Duas Irenes” era uma história ocorrida na família do próprio diretor. “Interessante que algumas pessoas da minha família, que estão vendo o filme agora, não sabiam que meu avô teve duas filhas, com mulheres diferentes, e colocou o mesmo nome nelas”, conta o diretor, citando a influência do dramaturgo Anton Thecov. “Ele aborda muito a questão das coisas que não são ditas, e que fazem os tabus perpetuarem. ”

Mulheres por toda parte

Inês Peixoto, no papel de Neusa, enxerga a personagem como parte desse silêncio. “Ela é uma mulher sofrida, mas ao mesmo tempo doce e amorosa, que aceita a situação provavelmente porque ama aquele homem e se adapta àquela vida”, comenta a atriz, integrante do grupo mineiro de teatro Galpão. 

Esse lugar “não dito” da personagem não a contém, no entanto, em uma condição de amargura. “Pelo contrário, ela é alegre, exuberante, solar e transmite isso à filha, e as duas acabam exercendo uma influência transformadora na outra Irene”, avalia Inês, que toca de fato o acordeão com o qual se acompanha durante uma canção do filme. 

“No Festival de Gramado, vivemos uma situação muito bonita, quando um ator mirim assistiu ‘As Duas Irenres’ e disse que tinha gostado principalmente porque era um filme ‘sem ódio’ e eu concordo. Embora seja uma situação que transparece o machismo e a submissão das mulheres, todos ali têm seus motivos e não são julgados por eles”, acrescenta Inês. 

Embora se chame “As Duas Irenes”, o filme não se resume à relação das duas irmãs. “Na verdade, o filme trata de identidade. Desde a infância, a gente se transforma muito, acho que isso acontece com todo mundo. Então, a Irene que vai em busca da irmã pode ser, ao mesmo tempo, várias Irenes, porque ela vai se transformar, e está se transformando intensamente naquele momento da vida”, diz Fabio. 

Duas protagonistas, a maioria de coadjuvantes, a diretora de fotografia, a diretoria de arte, a montadora: Fabio Meira cercou-se de mulheres para produzir “As Duas Irenes”. “Não foi intencional. Fui criado em uma família de mulheres muito fortes e interessantes. Isso é muito orgânico. Sempre convivi mais com mulheres do que com homens. Não escolhi essa equipe por ser formada por mulheres”, afirma o diretor. “As Duas Irenes é um filme feminista, mas de forma natural, sem querer ser panfleto. ” 

 

Confira abaixo o trailer de As Duas Irenes:

 

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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