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Pendular - Entrevista com Júlia Murat Brasil em Cena

Cinema em Cena: O ponto de partida para a criação do roteiro de Pendular foi a performance Rest Energy, de Marina Abramovic e Ulay. Como foi o processo de concepção do roteiro?

Julia Murat: Logo depois que eu apresentei meu primeiro longa-metragem, Histórias que só existem quando lembradas, a pergunta que eu mais ouvia era: “qual vai ser seu próximo trabalho?” Acho que isso acontece muito com diretores após o primeiro filme. E é uma pressão difícil de lidar, especialmente quando o primeiro filme vai bem. Nessa época, eu estava começando a namorar o Matias (Mariani), que também é roteirista de Pendular, e estava pensando muito sobre amor, especialmente sobre a ideia do não dito, sobre entrar em uma relação intensa, com uma pessoa que já tem um passado construído, não é uma tábula rasa. Você já vem com um monte de referências, teorias, pensamentos. E como você vai entrar nessa relação encontrando o seu espaço e, ao mesmo tempo, permitindo que o outro tenha seu espaço? Eu acho que nós estávamos vivendo muito isso, e quisemos falar sobre isso. Eu propus para ele escrever esse roteiro, que levou quatro anos de maturação.

Cinema em Cena: O filme foi todo rodado em locação? O que é aquele lugar onde o casal passa a maior parte do tempo?

Julia Murat: Aquele imóvel era uma antiga fábrica de metal, em Benfica, perto de São Cristóvão, abandonado há trinta anos, com a densidade do abandono de trinta anos, o que tornou a locação muito difícil, porque, antes, tivemos de limpar dois andares desse prédio, para ter condição de filmar lá.

Cinema em Cena: Logo no início do filme, há uma cena na qual eles estão delimitando o espaço com uma fita, e muito rapidamente, fica nítido que ele invade o espaço dela. A ideia foi uma metáfora do universo feminino sendo invadido pelo homem?

Julia Murat: Não consciente. O que tinha era o desejo de trabalhar dois personagens em sua complexidade. E é obvio que, ao trabalhar a personagem de uma mulher, de uma maneira complexa, isso necessariamente é um jogo sobre gênero. Até porque não temos quase mulheres na direção e no roteiro, em geral as personagens mulheres não têm a mesma complexidade que os personagens dos homens. Então, ao propor essa personagem complexa, já está se falando de gênero. Mas não tinha uma proposta política, consciente sobre a discussão de gênero. No entanto, não foi à toa que definimos o personagem dele como escultor e o dela, como bailarina. Porque, aí sim, a questão do espaço estava colocada: ele, escultor, naturalmente precisaria de espaço, mas ela, trabalhando com o corpo, em movimento, também precisa de espaço, só que esse espaço dela não é visível. Isso eu acho que é metáfora do corpo feminino. A gente poderia ter feito o inverso, e não fazer o inverso, para mim, é fruto de uma questão de gênero.

Cinema em Cena: O filme usa basicamente sons diegéticos como trilha, valendo-se de música quase exclusivamente quando ela está no ambiente dos personagens. A intenção foi fazer o espectador mergulhar junto com o casal naquele universo?

Julia Murat: A ideia era até um pouco mais que isso. Tem um jogo, momentos em que a gente isola os personagens sonoramente, e tem momento em que a gente faz questão de apresentar o espaço externo através do som. Eu acho que a ideia era construir um espaço exterior, e o espaço exterior como algo opressivo, algo que se impõe ao interior, que eu acho que é um pouco do filme inteiro. É o espaço dele se impondo a ela, é o espaço dela se impondo à escultura dele. Mesmo que a gente opte por ficar só dentro daquele espaço, aquele exterior está quase sempre atacando, entrando, interferindo.

Cinema em Cena: Isso se relaciona com o objetivo inicial do roteiro, de falar sobre o não dito?

Julia Murat: Sem dúvida, e não é à toa que eles não têm nomes. O jogo do não dito é estar entrando pelas bordas, procurando espaço. Então, o som exterior entrando pelas bordas, invadindo pelas janelas, é um pouco metáfora dessa intenção inicial. Outro detalhe é a câmera no corpo, materializada junto com o corpo humano, também procurando as bordas do corpo. Eu não queria nunca, com exceção dos momentos em que a gente constrói espaço, como espaço claustrofóbico, ter planos gerais. Porque eu não queria justamente entender a cena como o todo, eu queria ver pedaços da cena. Como eu vejo pedaços do personagem, como os personagens se veem em pedaços, eles não se conhecem completamente, eu queria que a câmera fizesse a mesma coisa.

Cinema em Cena: Em vários momentos, o personagem aparece praticando algum tipo de jogo – de bola, game, o jogo no espelho do banheiro. Houve uma intenção de mostrá-lo com um caráter infantilizado?

Julia Murat: Não necessariamente infantilizado. Falando especificamente do vídeo game, no roteiro isso tinha toda uma explicação, que vinha na última cena e contava todo o passado dele. Só que, na montagem, a gente descobriu que não precisava falar. Justamente, porque quando a gente falava, a gente deixava de ter esse não dito, dando uma carga do passado a tudo que eles não tinham dito. E, ao tirar esse passado, a gente justamente conseguiu expor que a questão era o não conhecimento do passado, e não o passado em si.  É possível até questionar: se a gente tirou a explicação da história, porque as cenas do videogame ficaram? Porque, para mim, da mesma maneira que ela tem pensamentos que ele não consegue acessar, são momentos dela, como nos processos de criação com o corpo, as cenas do videogame representam a mesma coisa para ele. Um espaço de fuga também e que, para mim, também funciona como espaço de fuga do filme. É um momento em que o filme é cortado, interrompido, em que esse confinamento interrompido. Eu queria que o game representasse isso.

Cinema em Cena: Fazer amor e fazer arte: em alguns momentos, tem-se a impressão de que ambas exigem muito esforço dos dois personagens. Houve essa intenção?

Julia Murat: A vida dá trabalho para caramba, qualquer uma delas, seja a vida no amor ou a vida na arte. Tem que trabalhar para a coisa funcionar, não é natural, automático. É processual, não é um resultado que vem do ar. Eu acho que as cenas de sexo também demonstram, junto com o trabalho criativo deles, como eles vão se modificando. Não é o sexo pelo sexo, o sexo enquanto uma cena dramatúrgica, enquanto algo que demostra por um lado uma intimidade mas por outro uma modificação da relação.

Cinema em Cena: Existe um grande conflito entre eles, que é ter ou não um filho. E é ela quem resolve essa questão. Foi uma mensagem do tipo “o corpo é meu, quem tem que querer sou eu”?

Julia Murat: Eu acho que realmente é uma situação complexa, e que a atitude dela foi um tanto arbitrária, porque ela tomou a decisão sem ao menos conversar. É obvio que, em algum lugar, a decisão final é dela mas, na minha opinião, deveria ser uma decisão conjunta, com opinião final dela. É uma questão toda muito agressiva. Talvez, a origem dessa agressividade esteja em uma frase dele – “eu quero te dar um filho”. Eu acho que essa fala, sim, era uma decisão política muito consciente , à medida em que ele não fala “eu quero ter um filho”, que é muito diferente. E eu acho curioso, porque todos os homens que liam o roteiro não achavam essa frase estranha, enquanto as mulheres ouviam esse “eu quero te dar um filho” e se chocavam que um homem possa dizer isso e achar natural. Eu acho que esse foi o único momento que era conscientemente político, no aspecto do gênero.

Cinema em Cena: Voltando ao começo da nossa conversa: na performance da Marina Abramovic e do Ulay, ele está apontando uma flecha para o coração dela. Seu filme desconstrói ou reforça essa imagem?

Julia Murat: Eu acho que ele sai mais machucado que ela, sinceramente. Eu acho que ela sai mais empoderada no final.

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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