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Pela Janela: a busca por novos espaços de pertencimento Brasil em Cena

Pela janela, primeiro longa da cineasta Caroline Leone, conta a história de Rosália (Magali Biff),  uma operária de 65 anos que dedicou a vida ao trabalho em um fábrica de reatores da periferia de São Paulo. Ela é demitida, e, deprimida, é consolada pelo irmão José (Cacá Amaral), que resolve levá-la a Buenos Aires em uma viagem de carro. Na viagem, Rosália vê pela primeira vez um mundo desconhecido e distante de sua vida cotidiana, iniciando uma jornada de libertação e transformação interior.

Às vésperas da estreia do filme no circuito brasileiro, Caroline falou ao Cinema em Cena sobre as inspirações de Pela janela, a opção pelo roteiro minimalista e a intenção de discutir questões como a visão utilitária da sociedade sobre os cidadãos. "O filme também tem a intenção de criticar o conceito de que a gente é o que a gente produz, o que a gente consome", disse a diretora. Acompanhe a entrevista:

De onde nasceu a ideia para o roteiro de “Pela Janela”?

A ideia nasceu de uma viagem que eu fiz, aos 20 e poucos anos, para a Argentina. Voltei de lá de ônibus, onde conheci uma mulher de 60 e poucos anos que estava voltando com o marido. Eles tinham ido levando um carro para Buenos Aires, porque o marido era motorista e fazia esse tipo de serviço. Ela era costureira, nunca tinha saído do próprio bairro, e de repente se viu em uma viagem longa como aquela. O que mais me chamava a atenção nessa nossa conversa era a sinergia que foi brotando entre nós, de perceber como a gente se enxerga de fora, em uma viagem. Como a Rosália, do filme, essa mulher ficou sozinha em Buenos Aires e aquilo era algo impensável para uma mulher daquela geração: sair sozinha, ir a um restaurante sozinha, deixar uma vida de trabalho para subsistência e se aventurar em uma viagem. Escrevi um argumento a partir dessa experiência e guardei. Anos depois, fui fazer um trabalho em uma fábrica no bairro de Pirituba, em São Paulo, e conheci a coordenadora de produção dessa fábrica, que estava na mesma função havia trinta anos. Achei que as duas histórias se relacionavam, que as duas eram personalidades complementares, e decidi juntar as duas na personagem da Rosália.

Como foi transcrever essa história, que começou com a inspiração de uma conversa, em um filme quase minimalista, muito mais baseado em gestos e sensações que em diálogos?

Foi muito difícil, porque o desafio era achar o coração de cada cena e contar o máximo com o mínimo, para deixar tudo muito fluido, muito pulsante, e não esmiuçado no sentido narrativo tradicional. A ideia era que ele fosse um filme sensorial, “mergulhante”, no sentido de levar o espectador junto nessa viagem. Eu pensava que, quanto mais junto eu conseguisse chegar da realidade, sem artifícios de roteiro para entendimento daquelas situações, melhor. A ideia foi usar os fundamentos do cinema – a montagem, o som – para fazer isso, proporcionando uma jornada empática do espectador com aquela personagem. Os diálogos já eram bem sucintos, no primeiro roteiro, mas ainda assim nós suprimimos vários trechos, nesse esforço de tornar o filme ainda mais sensorial. 

Esse conceito também foi utilizado para “limpar” as atuações dos dois personagens principais, especialmente a Rosália, que é absolutamente contida?

Também, no esforço de “limpar” todas as muletas que o ator carrega. Não acho que a ideia era criar um Rosália contida, mas chegar à essência dela. Há um paralelo evidente no filme, com a imagem recorrente de uma panela de pressão, que está totalmente relacionada à personalidade da Rosália. Essa mulher que faz a viagem é uma engrenagem que vai se umedecendo. E esses elementos aparecem de maneira muito forte durante o filme.

A primeira parte do filme, quando Rosália exerce sua rotina na fábrica e em casa, sugere claustrofobia e escuridão, mas ali ela está segura. A segunda, na estrada, mostra espaços abertos e luz, e ali ela está perdida. Qual foi a sua intenção com isso?

Essa leitura era necessária para se entender o impacto da saída dela daquele cotidiano. Há um momento em que ela consegue se desprender disso, na visita às Cataratas, mas até então ela se mantém presa a várias amarras daquela vida anterior, como o hábito de arrumar as camas nos hotéis em que se hospeda. O filme também tem a intenção de criticar o conceito de que a gente é o que a gente produz, o que a gente consome. Essa mulher trabalhava porque precisava, e o trabalho acabava sendo seu único espaço de pertencimento no mundo. Isso seria um tema atual em qualquer época, mas acabou ganhando maior atualidade à medida em que se discute o tema da reforma da previdência no Brasil. Foi uma coincidência infeliz.

O filme foi feito todo em locação?

Sim, começamos no bairro de Pirituba (São Paulo), saímos pela rodovia Castelo Branco, atravessamos todo o Paraná, cruzamos a fronteira por Foz e Puerto Iguazu, passamos por Missiones, Corrientes, Federacion e chegamos a Buenos Aires. Embora passe por todos esses lugares, não é um filme turístico. Foi um grande desafio filmar em um local como as Cataratas, que é essencialmente turístico, mas de uma forma que ele fosse coadjuvante na narrativa.

“Pela janela” utiliza muitos elementos sonoros na narrativa. Como foi essa construção?

Esses elementos são totalmente não realistas, mas parecem. Por exemplo, para construir o som da água, nas Cataratas, nós usamos camadas de sons da fábrica, de fogo, sons gravíssimos e agudos de água, sons de vento. Há sons da fábrica, no começo do filme, que se repetem na sequência final, no terminal de ônibus. Foi um grande trabalho de pós-produção.

E a montagem, quais foram suas opções nesse sentido?

A montagem é completamente hipnótica. Usamos uma lente que é muito próxima ao olho humano. O fotógrafo passou o tempo todo com a câmera no ombro. Mesmo os planos estáticos têm mínimo movimento, o que reforça a sensação de estar junto da cena. Também a altura dos planos é quase sempre a de alguém na mesma altura dos personagens. A ideia, tanto no som quanto na montagem, era usar as ferramentas cinematográficas para construir essa sensação. A iluminação também foi toda natural. Tínhamos uma equipe pequena e a ideia foi ter essa equipe sempre junta, para reforçar o clima intimista com os atores.

Vocês fizeram ensaios?

Sim, durante um mês. Antes disso, a Magali (Magali Biff, protagonista) trabalhou na fábrica, fazendo laboratório. Depois, ensaiamos passagens com ela e com o Cacá Amaral de cenas que não entraram no filme. Eram situações pregressas dos personagens, com base em improvisos, para aumentar o background daqueles personagens e também sentir como era a interação dos atores, além de deixar as cenas do roteiro “frescas” para quando eles chegassem nos locais de filmagem.

Antes de dirigir, você já tinha uma longa carreira como montadora. Qual a influência dessa atividade na direção?

A montagem é uma das grandes mágicas do cinema. Para mim, ela é a alma do cinema e, no meu caso, foi uma escola por me permitir trabalhar com o material bruto de outros diretores, entender como construir narrativas, como se desvencilhar e não ter apego com certos elementos do filme e de como conseguir contar tudo com o mínimo. Por exemplo, eu gosto muito de elipse, e usei muito isso no filme, como na cena da demissão da Rosália. Naquela sequência, minha intenção era “vamos cortar no ponto em que ela entendeu o que vai acontecer”. A frase literal não precisava ser dita. O que precisava era o espectador viver com ela essa demissão, nessa busca pela empatia com a personagem.

“Pela janela” ganhou o prêmio FIPRESCI, da crítica internacional de cinema, no Festival de Rotterdam, que também foi vencido por “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho. O que representou essa premiação?

Fazer cinema é uma guerra. E muito solitária. Só de ter o filme selecionado para o festival já me deixou muito feliz e não me senti mais tão sozinha. E a segunda etapa foi ganhar o prêmio, que é um reconhecimento da crítica internacional. A menção deles, na entrega do prêmio, foi maravilhosa. Quando eles começaram a ler as justificativas para a premiação, ninguém ainda sabia quem era o vencedor, e eu lembro de ter pensado: “nossa, eu tenho que ver esse filme!” (risos)

Leia, ao final deste artigo, a opinião do crítico Pablo Villaça sobre Pela Janela, escrita durante o Festival de Gramado de 2017.

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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