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Festival de Cannes 2019 - Dia #02 Festivais e Mostras

DIA 02

 

2) Para um observador casual, o rosto frequentemente impassível da jovem Kris poderia sugerir conformismo ou desinteresse diante das difíceis circunstâncias que a cercam – a mãe encontra-se presa, seu primeiro interesse romântico quer convencê-la a vender drogas e o vizinho ameaça matar seu cachorro -; esta percepção, contudo, estaria incorreta, já que, ao longo de Bull, logo se torna claro que aquela aparente impassividade disfarça um oceano de ressentimentos, frustrações e uma raiva que explodirá na primeira oportunidade que aparecer. Para azar – ou sorte – da garota (vivida pela estreante Amber Havard), antes que isto aconteça ela é flagrada depois de invadir com os amigos a casa do vizinho Abe Turner (Rob Morgan) para uma noite de festa, sendo forçada a recompensá-lo executando tarefas como limpar o imóvel, consertar o galinheiro e lavar sua caminhonete. Ex-peão de rodeio e agora atuando como salva-vidas ao ser responsável por afastar o touro colérico dos cowboys derrubados, Abe é um homem solitário, triste e afligido por dores provocadas por décadas de coices, pisoteadas e impactos, o que torna o interesse crescente de Kris por rodeios ainda mais surpreendente.

Basta uma rápida leitura do parágrafo acima para que lembremos de dúzias de filmes similares e possamos imaginar como a narrativa se desenrolará: a menina se abrirá um pouco ao mundo externo, o sujeito redescobrirá o prazer de viver, ambos aprenderão lições importantes e todos chegarão ao desfecho como pessoas melhores do que eram. De certa forma, Bull segue esta expectativa, mas atirá-lo numa pilha de títulos genéricos seria uma injustiça, já que se trata de uma obra delicada e bem mais atenta às sutilezas do comportamento humano do que boa parte das produções do gênero.

Dirigido por Annie Silverstein, que aqui faz sua estreia em longas de ficção, o filme se beneficia da experiência da realizadora em documentários ao imprimir nuances naturalistas ao universo que enfoca, tornando palpável o cotidiano daquelas pessoas, que, com isso, saltam da tela como figuras multidimensionais e instigantes. Este efeito é alcançado, por exemplo, através de breves instantes como aquele em que, durante uma visita da família, a mãe de Kris (Peggy Schott) atrai a atenção de uma companheira de cela, aponta para as filhas e move os lábios em silêncio, orgulhosa, indicando “são minhas garotas!” – o que sugere um grau de afeto entre elas que justifica a crença inabalável da protagonista na regeneração de uma mãe que insiste em frustrá-la. Do mesmo modo, depois que a vemos assistindo aos vídeos antigos de Abe durante uma aula, escondendo o celular atrás do livro didático, seus problemas recorrentes na escola são evidenciados quando a professora, ao dispensar a classe, diz apenas “Eu vi você, Kris, mas já nem me importo mais” – o que sugere a ausência cada vez mais preocupante de qualquer estrutura que possa evitar que a jovem se perca totalmente

E se algo fica claro para o espectador é que naquela comunidade pobre e sem perspectivas dos arredores de Houston, no Texas, as probabilidades apontam para o futuro de Kris uma gravidez precoce, a prisão ou o mergulho nas drogas. Não que a cineasta ignore os aspectos positivos do dia a dia daquelas pessoas, já que os próprios rodeios atuam como uma válvula de escape e uma oportunidade de convívio social importantes – e ao empregar rostos comuns, de indivíduos que realmente habitam aqueles espaços, Annie Silverstein traz autenticidade e um imediato comentário social à narrativa.

Enquanto isso, a novata Amber Havard, com seu olhar intenso e o cenho sempre severo, oferece uma performance cuja força surpreende por surgir de modo quase invisível e que se torna evidente quando, ao testemunharmos um raro sorriso tomar conta de sua expressão, subitamente a enxergamos como a adolescente que é em vez de como um projeto da adulta desiludida que se tornará. Ao mesmo tempo, o experiente Rob Morgan encarna Abe como um homem cujo cansaço é patente em seus olhos tristes e exaustos e que não consegue externar prazer nem ao executar o trabalho que insiste em identificar como sua única vocação. E testemunhar a transformação – não completa, pois Bull não é este tipo de filme, mas o suficiente para constatarmos o efeito que os personagens provocam um no outro – é constatar a chegada de uma diretora madura, humana e com muito a dizer.

 

3) Final da Copa de 2018. Milhares de pessoas tomam as ruas de Paris com o objetivo de assistirem à partida em locais de exibição pública na esperança de poderem compartilhar (esperam) a alegria de uma vitória com sabor de triunfo patriótico. E quando o título finalmente é confirmado – consagrando também o jovem atleta Mbappé, que, negro e filho de imigrantes, representa todas as contradições, conflitos e preconceitos do país – a população ocupa a larga avenida Champs-Élysées e é capturada através de uma teleobjetiva em um quadro fabuloso que traz a multidão com o Arco do Triunfo ao fundo.

E é sobre aquela imagem de bandeiras francesas tomando a capital francesa nas mãos do povo alegre que surge o título deste filme de Ladj Ly: Les Misèrables. E se a projeção houvesse terminado aqui, o diretor já teria oferecido material suficiente para que o espectador refletisse por horas.

Porém, é claro que ela não termina, sendo seguida por outros noventa e poucos minutos intensos e envolventes que, embora criem uma experiência notável, são amarrados por um epílogo que engasga justamente quando deveria exibir a voz mais firme.

Escrito pelo próprio cineasta, o longa acompanha uma galeria de personagens na vizinhança pobre de Gavroche (que deu nome ao garoto morador de rua presente no livro de Victor Hugo) e os três policiais da divisão de Narcóticos encarregados de patrulhá-la durante o dia: o explosivo Chris (Alexis Manenti), o imponente Gwada (Djibril Zonga) e o novato Laurent (Damien Bonnard), que, depois de trabalhar no interior, mudou-se para Paris para ficar perto do filho e se encontra prestes a ter um primeiro dia na função nova que se revelará também um dos mais difíceis de sua carreira. Gradualmente, o diretor nos apresenta a outras figuras-chave da trama: o “Prefeito” (Boris Gamthety), que controla a região cobrando proteção dos comerciantes locais; o jovem Issa (Issa Perica), que está sempre forçando seu pai a buscá-lo na delegacia; o tímido Buzz (Al-Hassan Ly), cujo drone é uma simples ferramenta de voyeurismo até registrar um incidente de violência; e Salah (Almamy Kanouté), que, depois de uma vida de crimes, converteu-se numa espécie de líder espiritual da região.

Com a câmera sempre em movimento enquanto segue os personagens em seus encontros, confrontos e fugas, Les Misèrables transporta o espectador para a lógica das ruas de Gavroche, retratando o medo dos garotos locais diante da brutalidade policial, mas também a tensão experimentada pelos oficiais quando cercados por uma multidão raivosa. Este equilíbrio é, por sinal, uma das forças do longa, que compreende como, em essência, todas aquelas pessoas são prisioneiras de um sistema desenhado para colocá-las em conflito umas com as outras enquanto aqueles que detêm o poder seguem ceifando tudo o que encontram à sua disposição. Neste sentido, é perfeito que a obra jamais vá além daquelas pessoas mesmo enquanto comenta as circunstâncias sociais e políticas que as colocaram ali.

Aliás, Ladj Ly traça um painel tão verossímil destes indivíduos que se torna impossível não crer que um vasto trabalho de pesquisa de campo precedeu a elaboração do roteiro, que é enriquecido por observações quase tangenciais feitas pelos personagens (como a imagem dos subordinados do Prefeito cobrando a proteção com maquininhas de cartão de crédito ou o comentário de Chris sobre como o Instagram se tornou uma ferramenta de investigação crucial, já que os jovens transgressores sempre cedem à tentação de divulgar seus feitos na rede). O mesmo, diga-se, se aplica a elementos daquela comunidade – como a prática do(a?) toutine, uma espécie de empréstimo sem juros feito a partir de uma vaquinha entre vizinhos, ou a divertida passagem na qual os garotos da vizinhança tentam fugir quando veem quatro integrantes da irmandade islâmica local se aproximando não por temerem qualquer violência, mas sim o sermão que sabem que receberão por terem se comportado mal.

Assim, é uma pena que o filme se perca em seu epílogo, que, num esforço para sugerir o poder não compreendido (ou exercido) das massas oprimidas caso queiram se erguer contra seus opressores, acaba se tornando ambíguo ao poder ser lido como uma lição acerca da necessidade de mantê-las oprimidas com o propósito de evitar a sublevação e o caos consequente. Além disso, ao trazer Chris gritando “Eu sou a Lei!”, numa citação clara de Louis XIV, o diretor/roteirista entrega um erro de compreensão fatal ao comparar o que enxerga como duas figuras de autoridade, mas que que se encontram em níveis completamente díspares de poder, já que o policial é uma mera ferramenta dos poderosos e em nada similar ao Rei-Sol.

Uma leitura trôpega que enfraquece a narrativa depois de uma introdução tão impactante.

 

4) Eu gostaria de ter mais o que dizer a respeito do canadense A Mulher do Meu Irmão (La femme de mon frère), mas prefiro empregar minha energia para falar de Bacurau em vez de discutir mais uma dessas comédias que confundem volume com timing cômico, obrigando o público a escutar personagens berrando durante quase duas horas como se isto fosse o ápice do humor.

 

5) A diferença de O Som ao Redor e Aquarius para Bacurau é a diferença entre um Brasil guiado pela inclusão social e o Brasil de Bolsonaro; entre um país parcialmente sabotado por uma classe média com orgulho ferido por ver diminuída sua autopercepção de “elite” e de um país presidido por alguém que enxerga minorias como inimigas que merecem a sarjeta e o cassetete. Enquanto nos dois primeiros filmes o diretor Kléber Mendonça Filho alfinetava a soberba de quem deveria se identificar com os mais humildes, mas insiste em se ver como igual dos poderosos, e apontava a teimosia como resistência, aqui a degradação da situação política e social da nação o leva a apostar na radicalização como única possibilidade viável. Antes, a raiva era subtexto; agora, discurso.

O mais fascinante nesta complexa experiência co-dirigida por Mendonça e Juliano Dornelles (designer de produção das obras citadas anteriormente) é sua paciência ao construir e revelar suas alegorias – e, não à toa, minhas anotações feitas durante a projeção trazem, por volta da marca dos 30 minutos, a indagação “o que é este filme exatamente?”. Aliás, o roteiro escrito pela dupla de diretores atira no lixo o conceito de “intriga de predestinação”, já que duvido que qualquer um seja capaz de antecipar na primeira metade do longa o que ocorrerá na segunda.

Abrindo a narrativa na órbita terrestre até chegar a um caminhão-pipa que leva água potável para a cidade-título, Bacurau já investe no simbolismo em seus primeiros instantes ao trazer o veículo atropelando vários caixões espalhados por uma estrada esburacada e passando diante de uma escola em ruínas antes de entrar no trecho final de terra que o conduzirá ao seu destino. Na boleia e ao lado do motorista encontra-se Teresa (Bárbara Colen), que está retornado ao lugarejo para o enterro de sua avó Carmelita (Lia de Itamaracá) – e um dos poucos tropeços do roteiro é introduzir a personagem de modo tão destacado, já que cria no público a expectativa de estar conhecendo a protagonista quando, na verdade, ela assumirá um papel periférico logo depois. O problema nesta estratégia é adiar sem necessidade a compreensão do espectador de que o protagonismo aqui pertence à própria Bacurau e ao seu espírito de resistência histórico (“histórico” no contexto de sua existência ficcional, obviamente).

Este espírito alcança forma, em parte, através de figuras como o ex-guerrilheiro Pacote (Thomás Aquino) e seu antigo líder Lunga (Silvero Pereira), a médica Domingas (Sônia Braga, cuja composição contrastante com relação a Aquarius expõe mais uma vez sua imensa versatilidade), o velho professor Plínio (Wilson Rabelo) e o naturalista Damiano (Carlos Francisco), entre outros. Aliás, a decisão de preencher a cidade com os rostos marcantes de atores não-profissionais confere personalidade e autenticidade ainda maiores a Bacurau, que é imaginada pelo designer Thales Junqueira como um minidistrito composto essencialmente por uma única rua de terra que abriga a maior parte dos casebres, a escola, a igreja (sempre vazia) e o museu – uma simplicidade que, de um ponto de vista estrutural, reflete a abordagem da montagem, que investe com eficácia em fusões, cortinas e fades para pontuar a transição entre sequências. Ao mesmo tempo, a excelente fotografia de Pedro Sotero se equilibra bem entre a plasticidade de passagens como aquela em que várias crianças testam seus medos à noite e a secura quente do cotidiano do vilarejo.

Igualmente admirável, vale apontar, é a fluidez com que a narrativa salta de um gênero a outro, de um tema a outro e de uma alegoria a outra de uma maneira que deveria resultar em caos, mas acaba por criar uma estrutura coesa na qual elementos conflitantes de complementam perfeitamente, equilibrando-se entre John Carpenter e Glauber Rocha, entre o naturalismo e o fantástico e entre o horror e a (quase) ficção-científica. Ambientado em “alguns anos no futuro”, Bacurau imagina um Brasil (oficialmente) dividido entre Norte e Sul e no qual este último – São Paulo, em particular – promove execuções públicas num reflexo do milicianismo que certo segmento da população já celebra de forma chocante em nosso presente.

O Sudeste, por sinal, é também a origem de dois personagens significativos que, vividos por Karine Teles e Antônio Saboia, desejam desesperadamente se enxergar como “parceiros” de um grupo de estrangeiros (europeus e norte-americanos, claro): “Somos de uma região rica, mais parecida com vocês”. Claro que, no grande esquema, pouco mais são do que peões de uma estratégia de dominância, manifestando aparente orgulho de onde vieram, mas mais do que dispostos a entregar nosso patrimônio aos estrangeiros (lembram de alguém assim?) – e que um deles seja “assessor do poder judiciário” é a ironia final que situa Bacurau em nosso trágico contexto histórico (bem como o fato de duas vítimas fatais deste contexto serem identificadas pelos nomes “Marisa Letícia” e “Marielle”. E não se preocupem, nada disso é realmente spoiler; aliás, eu argumentaria que o filme é imune a estes.).

O que Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles acabam por apontar com precisão é como, de modo mais ou menos descarado, o Brasil segue como vítima de um contínuo processo de colonização, seja esta territorial, cultural, institucional ou econômica. Uma colonização que não exige ação militar por parte dos invasores, já que contam, em sua tarefa, com o auxílio devotado de parte da classe política (o que também é refletido no roteiro).

Em certo momento desta excepcional obra, a personagem de Sônia Braga menciona como o Estado vem distribuindo para a população um “medicamento” tarja preta que, chamado de “Brasol IV”, tem o efeito suposto de atuar como anestésico, mas, na prática, acaba por mergulhar o povo numa postura de inércia.

Algo que a já mítica Bacurau contorna com sua valentia diante da opressão, sua persistência frente aos interesses externos e à determinação de um povo humilde que reconhece na união a única chance de combater os poderosos que o enxergam como um incômodo a ser eliminado.

15 de Maio de 2019

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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