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A NOITE Cinemateca

Hoje quando acordei você ainda dormia. Pouco a pouco
acordando senti sua respiração leve. E através dos
cabelos que escondiam seu rosto vi seus olhos fechados e
senti uma comoção subindo a garganta. Tive vontade de
gritar e acordá-la, pois o seu cansaço era profundo e
mortal. Na penumbra, a pele dos seus braços e pescoço
era viva e eu a sentia morna e seca. Queria passar os
lábios nela, mas o pensamento de perturbar seu sono e
de ainda tê-la em meus braços me impedia. Preferia tê-la
assim como algo que ninguém tiraria de mim, pois só eu
a possuía. Uma imagem sua para sempre…


…Além do seu rosto, via algo mais puro e mais profundo onde eu me refletia. Eu via
você numa dimensão que englobava todo o tempo da minha vida. Todos os anos futuros
e os que vivi antes de conhecê-la, mas já pronto para encontrá-la…
 
A Itália é, sem dúvida, um berço de grandes cineastas. O país produziu um grande número de diretores geniais como Federico Fellini, Pier Paulo Pasolini, Vittorio de Sica, Luchino Visconti, Roberto Rossellini e, é claro, Michelangelo Antonioni. O último foi certamente um dos cineastas mais intrigantes e provocadores do cinema italiano. Dentre suas obras-primas mais conhecidas, estão Blow Up – Depois Daquele Beijo (1966) e a trilogia da incomunicabilidade, formada por A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962). O opus central da trilogia não compartilha a mesma fama e status dos outros dois filmes, considerados por muitos especialistas como as melhores realizações do diretor. Devo confessar, no entanto, que A Noite tem um espaço especial na minha memória afetiva. Ele foi o primeiro filme de Antonioni a que assisti e ainda me lembro do impacto, misto de estranhamento e fascinação, que ele teve sobre mim, ainda adolescente. E não estou sozinho nessa. Curiosamente, o filme também exerceu um grande fascínio sobre o grande Stanley Kubrick. Em 1963, quando uma revista americana de cinema pediu ao cineasta para listar os seus filmes favoritos, ele incluiu A Noite no seu top 10. A Noite foi premiado com o Leão de Ouro no Festival de Berlim em 1961.
 
…Este era o pequeno milagre de um despertar. Sentir pela primeira vez que você me
pertencia não só naquele momento, e que a noite era eterna ao seu lado…
 
A Noite focaliza algumas horas na vida de um casal, o espaço de uma tarde até o amanhecer do dia seguinte. Giovanni (Marcello Mastroianni) é um escritor em ascensão que acaba de lançar um livro. Lídia (Jeanne Moreau) é a sua esposa. O filme pode ser dividido em cinco partes, que correspondem a diferentes momentos da “via crucis” do casal. Cada estação dessa via crucis é marcada por pequenos acontecimentos significativos e simbólicos.
 
A “primeira estação” corresponde à visita que os dois personagens fazem a um amigo, vítima de um câncer terminal, no hospital em que ele está internado. Os protagonistas se veem assim diante da presença irremediável da morte. Esse encontro é particularmente doloroso para Lídia. Muito do estado meditativo da moça durante o filme pode ser atribuído a essa visita, ao que ela desperta na personagem. Talvez ela tenha se dado conta da efemeridade da vida, talvez ela se questione sobre o que foi feito de sua vida e sobre o seu futuro. Descobriremos também, ao final do filme, que ela tinha uma ligação especial com o doente. A bela interpretação do ator austríaco Bernhard Wicki (também foi um ótimo diretor), na pele do amigo internado, faz dessa cena um dos momentos mais tocantes do filme. Em seguida, enquanto Lídia espera o marido no estacionamento, este tem um encontro erótico com uma jovem ninfomaníaca que também está internada no hospital. Trata-se de uma cena perturbadora, tratada com um extremo requinte visual por Antonioni. Giovanni se dá conta do caráter doentio, selvagem e animalesco desse encontro. Deixar-se seduzir pela garota talvez seja uma maneira desesperada de se sentir vivo.
 
A segunda estação corresponde à festa de lançamento do livro de Giovanni e ao passeio de Lídia pelas ruas de Milão. Sentindo-se desconfortável na festa, Lídia escapa discretamente da confraternização e começa a andar pelas ruas da cidade. No caminho, ela cruza alguns homens desconhecidos e se mostra satisfeita em despertar o olhar deles (querendo se sentir viva, desejada?). Ela entra em uma propriedade após ouvir uma criança que chora e tenta consolá-la (o filho que ela nunca teve?). 
 
À medida que Lídia vai se encaminhando para os limites da cidade, novos encontros são realizados. Ao se deparar com a uma luta violenta, em uma várzea, a moça se desespera e tenta acabar com a briga. A reação de Lídia pode simbolizar a rejeição da personagem à luta pela sobrevivência. Lídia é um indivíduo da não-ação. Ela foge repetidamente de qualquer tipo de engajamento (ela não consegue ficar no quarto do hospital até o fim da visita, o mesmo ocorre na festa de lançamento do livro, ela não consegue consumar uma relação infiel, não consegue se separar do marido etc.). Quando um dos lutadores se mostra interessado nela, ela foge. No entanto, ela olha para trás, talvez desejando que ele ainda a seguisse. Por fim, ela encontra um grupo de garotos que soltam pequenos foguetes e fica completamente encantada com o espetáculo (um retorno ao estado infantil, ao deslumbramento?).
 
…No calor do seu sangue, dos seus pensamentos e da sua vontade, que se confundia
com a minha. Por um momento, entendi o quanto a amava Lidia e foi uma sensação tão
intensa que meus olhos se encheram de lágrimas…

Na terceira estação, marido e mulher vão ao um pub, onde assistem a uma erótica apresentação de uma dançarina/stripper/equilibrista. Impressiona o contraste entre a qualidade e sensualidade da performance e o profundo tédio e falta de excitação demonstrados pelos personagens. A quarta e mais longa estação, o momento mais célebre do filme, corresponde à festa de um milionário à qual os protagonistas vão depois de passar pelo pub. A mansão do milionário é recheada de uma elite bastante excêntrica. Antonioni, que se considerava um marxista intelectual, se diverte ao pintar esses indivíduos superficiais e ridículos, frutos do capitalismo. Assim como ocorre durante todo o filme, Lídia se encontra isolada, desconfortável em meio às outras pessoas. Ela tem consciência da sua solidão e da sua inadequação. A personagem passa boa parte da festa tentando fugir dos convidados. Giovanni não faz nenhuma questão de fazer companhia à esposa, abandona-a e encontra Valentina, a sedutora filha do anfitrião (vivida de maneira exemplar pela belíssima Monica Vitti, musa do diretor).
 
Fascinado pela jovem, Giovanni se entrega novamente aos seus impulsos adúlteros. A moça, que também se sente atraída pelo escritor, não demora a descobrir que ele é casado e passa a evitá-lo. Ela também se revela uma personagem melancólica e atormentada, a típica “pobre menina rica”. Dois jogos de gato e rato se instauram na festa: Giovanni “persegue” Valentina e um homem misterioso segue incessantemente Lídia. Após encontros e desencontros, Lídia, Giovanni e Valentina se reúnem num mesmo quarto, numa das cenas mais belas do filme. Na última estação, marido e mulher saem da festa já ao amanhecer. Trata-se do clímax do longa-metragem, o momento, onde finalmente certas verdades serão ditas, onde uma forma de comunicação pode ser tentada. O desfecho do filme é comovente, ainda que o destino dos personagens permaneça incerto.
 
…Eu pensava que isso jamais deveria ser como esse despertar. Senti-la não minha…
mas uma parte de mim. Uma coisa que respira comigo e que nada pode destruir, a não
ser a indiferença de um hábito que considero a única ameaça…
 
David Bordwell, grande historiador do cinema, disse certa vez que, nos filmes de Michelangelo Antonioni, "férias, festas e atividades artísticas são esforços vãos para esconder a falta de propósito e emoção dos personagens”. Ainda que possa ser discutida, a máxima do historiador toca numa questão importante a respeito do estilo do diretor. O cinema de Antonioni é um cinema de personagens e grande maioria deles se caracteriza por um certo vazio, um certo torpor existencial. Em A Noite, os dois protagonistas atravessam uma via crucis dominada pelo desolador sentimento do tédio, até que finalmente chegam a uma situação-limite, em que devem se confrontar com o destino de seu casamento decadente.
 
Dominados por esse torpor alienante, os personagens se mostram desapegados com a vida, com a existência, um com outro e até mesmo com as próprias escolhas. Temos a impressão que eles vagam sem direção, sem rumo, à espera de algo que os resgate desse torpor que os assombra e que pesa sobre suas existências. Mas eles não são imunes à dor, nem isentos de emoção, já que sofrem com a própria impassividade, como se estivessem desconfortáveis na própria pele. A incomunicabilidade que nomeia a trilogia se encontra na impossibilidade de expressar seus sentimentos, de distingui-los, de se conhecer e de se comunicar com o outro. Antonioni se interessa em mostrar a evolução desses personagens-fantasmas, sem consistência. O diretor italiano disse, certa vez, que o que acontece ao redor de seus personagens não tem importância. O que importa mesmo é o que se passa no interior deles. Segundo o cineasta, “as pessoas pensam que os acontecimentos de um filme são tudo o que o filme é. Isso não é verdade. Um filme é seus personagens, o que muda dentro deles”.
 
…Então, você acordou, e sorrindo, ainda adormecida me beijou, e eu senti que não
havia nada a temer. Que seríamos sempre, como aquele momento, unidos por algo que
é mais forte que o tempo e o hábito…

Não é difícil constatar que Antonioni é um cineasta pessimista. Ele tem uma visão decadentista do mundo e das coisas. Em A Noite, encontramos a obsessão do diretor pela decadência dos valores nacionais face ao capitalismo do pós-guerra e ao hedonismo de uma elite formada por seres atrofiados emocionalmente. Antonioni mostra o indivíduo perdido, desconectado de si mesmo em meio a um ambiente cada vez mais urbanizado, verticalizado (vide a bela sequência dos créditos iniciais) e tecnológico. Em certo momento do filme, um dos personagens diz que os hospitais estão cada vez mais parecidos com discotecas. Antonioni denuncia assim uma sociedade que é refém do prazer, de um tipo de prazer que só se adquire com dinheiro. 
 
Antonioni escalou duas lendas do cinema para viverem os dois papéis principais: os excelentes Marcelo Mastroianni e Jeanne Moreau. Os dois atores expressam brilhantemente a solidão, o desamparo e o tédio de seus personagens, seres amputados emocionalmente. A atriz francesa, principalmente, brilha ao captar a resignação, as dúvidas e a angústia de Lídia. E ela faz muito apenas com o olhar. No final das contas, A Noite é um filme sobre um casal que se distanciou tanto que eles nem mais se reconhecem. Eles esqueceram como se amar e a razão pela qual estão juntos.
 
Ao assistir ao filme, você corre o risco de ficar tão entediado quanto os personagens (como brincam alguns críticos). No entanto, talvez você descubra, como eu, um cinema extremamente refinado, inteligente, questionador e humano.
 
- De quem é essa carta? – É sua.
 
Saiba mais sobre a obra de Michelangelo Antonioni em nosso podcast dedicado ao cineasta. Clique aqui para ouvir.
 
Copyright Cinema em Cena 2012
LEONARDO ALEXANDER é crítico de cinema, criador e mantenedor do blog Clube do Filme, estudioso de Literatura e Cinema na Université Paris Diderot (França) e apaixonado pelo cinema clássico hollywoodiano. Na coluna Cinemateca, ele analisa obras, diretores e gêneros, além de dar curiosidades e informações sobre os grandes clássicos do cinema mundial.
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