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BLADE RUNNER: Chuva, morte e a escuridão ensurdecedora Frame Sonoro

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Se o futuro for igual ao retratado na Los Angeles de Blade Runner - O Caçador de Androides, então podemos nos preparar. A previsão é vivermos mergulhados em um oceano sonoro saturado, complexo e ameaçador, porém rico, desafiador e profundamente multicultural.

Lançado em 1982, com direção de Ridley Scott, hoje este cultuadíssimo e respeitado híbrido de ficção científica com filme noir é um exemplo perfeito do uso criativo do som como complemento de toda a beleza plástica e estética de suas imagens. E mais: o som aqui é o coadjuvante perfeito dos questionamentos, reflexões e dicotomias que o filme levanta: morte vs. longevidade, máquinas vs. humanos, sombra vs. luz, superpopulação vs. solidão.

Já viraram lenda e já geraram muita controvérsia, as diversas versões ou cortes que este filme sofreu neste período de mais de 30 anos desde o seu lançamento. Uma das que mais geram discussões acaloradas é em relação ao voice over (ou simplesmente "narração") do personagem Rick Deckard (Harrison Ford). Em seu livro Sound Design and Science Fiction, por exemplo, o autor William Whittington dedica um capítulo inteiro só para examinar a influência, os prós e contras da inserção dessa narração em diversos pontos do filme.

A versão que vamos analisar é a chamada "Final Cut", lançada em 2007 e que não contém o recurso da narração de Deckard. E, de maneira atípica, vou comentar alguns pontos da música composta por Vangelis. Isto porque ela casa de forma tão perfeita com a narrativa que é quase impossível analisar o filme sem citá-la.

E um outro detalhe importante: na versão lançada originalmente em 1982, só aparecia nos créditos o nome de Peter Pennell com a função de "editor de som". Acredito que ele deve ter sido o supervisor de som na época do lançamento. Para se ter uma ideia, nem os mixadores do filme foram citados nessa versão.

Já na versão de 2007, toda uma nova equipe foi contratada para trabalhar na restauração do som do filme, sendo Karen Baker Landers a supervisora desse trabalho. Como curiosidade, ela foi a responsável pelo excelente desenho de som do remake de Robocop, de José Padilha.

E este Blade Runner de 2007 foi lançado no formato 5.1, ao contrário da versão de 1982 que saiu somente em estéreo. Apesar de respeitar quase na totalidade do desenho de som do versão original, alguns detalhes foram acrescentados, além de uma nova mixagem (assinada por D.M. Hemphill e Ron Bartlett) agora se utilizando dos novos canais de som disponíveis.

Mas vamos ao que interessa:

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- Já nos créditos iniciais, a reverberação da música de Vangelis chama bastante a atenção: misteriosa, densa e profunda, além do contraste entre sons graves e agudos que, curiosamente, é um dos conceitos que vão acompanhar todo o filme. 

- Já no fantástico e inesquecível primeiro plano, nos é mostrada a paisagem aérea e imensurável da Los Angeles de 2019: labaredas imensas, naves entrecortando o céu, explosões em tubulações gigantes e luzes, uma mar de luzes. E a música de Vangelis ajuda a proporcionar um mergulho sensorial hipnotizante. São mais de 60 segundos acompanhando a câmera se aproximar das faraônicas instalações da Tyrrel Corporation.

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- A cena seguinte, do interrogatório de Leon Kowalski (Brion James), impressiona pela quantidade e complexidade de sons criados artificialmente dentro do escritório do personagem Holden (Morgan Paull): bipes, ruídos eletrônicos, vozes sintetizadas, mecanismos variados e um som grave onipresente. Nesta cena em particular, é de se destacar o momento em que o entrevistador, Holden, pergunta a Leon sobre o cágado virado de costas, no deserto. De uma maneira subjetiva, o som expressa o nervosismo/confusão de Leon: as vozes dos dois personagens começam a ter um acentuado efeito de eco. Ao mesmo tempo, um som de coração não humano começa a bater aceleradamente. Esses ecos e a batida artificial somem quando Holden tranquiliza Leon até a próxima (e fatal) pergunta em relação à mãe do entrevistado.

- Mais adiante, somos apresentados ao protagonista Rick Deckard enquanto ele lê um jornal na rua. É a primeira vez que estamos em terra firme, nas superpopulosas ruas de LA. O que impressiona aqui é a complexa textura sonora que Peter Pennell e sua pequena equipe conseguiram criar. É uma massa de estranhos dialetos misturados a passos, trânsito, anúncios em alto-falantes, neons, instrumentos musicais e... chuva, muita chuva. Pennell conseguiu o feito de criar uma ambiência rica, texturizada e que, ao mesmo tempo, não se torna caótica e/ou excessiva apesar da quantidade de elementos sonoros sobrepostos. Mérito também para os mixadores pelo absoluto controle que conseguiram manter sobre as diversas camadas de sons. Alías, a distribuição dessas ambiências nos canais surround chama a atenção pelo belíssimo resultado obtido (pelo menos nesta versão de 2007).

- Na primeira vez que vemos os replicantes Leon e Roy (Rutger Hauer) se encontrando em uma rua afastada, também é digna de nota a ambientação criada: uma pulsação grave, ritmada, pesada e onipresente, como se fosse um gigantesco coração mecânico. E o volume dessa pulsação aumenta consideravelmente assim que os dois se aproximam do laboratório do "designer de olhos" Chew (James Hong). É como se fosse um trágico prenúncio do resultado desse encontro.

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- Avançando um pouco mais, temos uma cena em que a replicante Pris (Daryl Hannah) é convidada a subir ao apartamento de J.F. Sebastian (Wiliam Sandeson). Enquanto eles vão adentrando no imenso prédio abandonado (curiosamente chamado "The Bradbury"), chama a atenção o uso intenso de reverberação em toda aquela estrutura: portas sendo abertas e fechadas, passos, elevadores, goteiras e as vozes dos dois personagens. Esses sons em combinação com os magníficos trabalhos de design de produção e fotografia tornam a cena toda, no mínimo, impressionante.

- Os brinquedos criados por Sebastian possuem um elaborado trabalho de design de vozes, misturando alteração de pitch, time stretch e sobreposição (como vocês já devem ter percebido, aqui no Frame Sonoro, eu evito ao máximo ficar entrando em terminologia técnica muito específica, por isso, paro por aqui).

- Agora, um exemplo pequeno, mas muito eficiente de um perfeito entrosamento de edição de som, mixagem e música: é a cena em que Deckard está em seu apartamento, sentado ao piano, bêbado. Temos a música (extra-diegética) permeando toda a cena e Deckard toca algumas notas ao piano (diegética) dentro do mesmo tom e mesmo ritmo. Fica tão perfeita a mixagem que fica difícil saber onde começa uma e termina a outra. Esse tipo de recurso volta a aparecer em uma cena um pouco mais à frente.

- Em seguida temos o momento em que Deckard tem a visão de um unicórnio correndo em uma floresta. O seu apartamento possui um som constante dos veículos aéreos que passam perto de sua janela. E quando o protagonista vê o unicórnio é simplesmente notável como os sons dos veículos se transformam na pesada respiração do mitológico animal. Infelizmente, esta cena em específico só aparece na versão lançada em 2007, estando ausente na versão original lançada nos cinemas em 1982.

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- A famosa cena da morte de Zhora (Joana Cassidy), uma replicante morrendo entre os manequins, chama a atenção de  como o desenho de som conseguiu aumentar, e muito, a dramaticidade de toda a ação. Quando Deckard está atirando em Zhora e a sua morte é mostrada em câmera lenta, impressiona a tomada de decisão dos mixadores de deixarem audíveis somente os sons que realmente importam para aquele momento, ou seja, a música, os tiros da arma de Deckard, os vidros se estilhaçando e a batida do coração artificial da replicante. E por este último sabemos exatamente o momento em que ela deixa de... hmmm... "viver".

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- Quando Deckard e Rachael (Sean Young) estão no apartamento dele, temos uma repetição, porém bem mais explícita, da fusão da música diegética com extra-diegética. É quando Rachael toca ao piano uns poucos acordes que se casam perfeitamente em termos de tonalidade e ritmo à música de Vangelis. E em relação a esta última, de tanto que já foi parodiada/satirizada, hoje em dia pode até causar risadas. É a famosa "Love Theme" que tem uma manjadíssima linha melódica de saxofone e que já foi utilizada até em propaganda de motel. Mas é notável como ela se casa perfeitamente com as imagens e o clima da cena.

- Voltando ao apartamento de J.F. Sebastian, temos o momento em que ele dorme em uma cadeira cercado pelas suas criações. A cena em si possui uma textura sonora formidável, misturando sons de brinquedos, relógios, equipamentos eletrônicos e, o mais interessante, sussurros constantes e fantasmagóricos.

Mais para o final, no clímax do filme, temos alguns momentos bastante interessantes em relação ao aspecto sonoro:

- A morte de Pris com seus horripilantes gritos sobrepostos e carregados de efeitos.

- Durante a caçada de Roy a Deckard no interior do "The Bradbury", a voz do replicante é distribuída magnificamente nos cinco canais de som de tal forma que se torna uma ameaça onipresente e constante.  

- Também chama a atenção a inserção de sons de alguns animais emitidos tanto por Roy, pelo ambiente em si ou pela música. Podemos distinguir uivos de lobos, arrulhos de pombos e um curioso som de enxame de moscas quando Deckard entra em um determinado cômodo.

Blade Runner acumulou diversos prêmios, elogios, homenagens e revisões nestes mais de 30 anos desde o seu lançamento. Além de ser considerado um dos três melhores trabalhos de Ridley Scott até o momento, já foi chamado de "sombrio", "depressivo", "arrebatador", "pessimista", "revolucionário", "hipnotizante". 

Ainda bem que não parece ser "profético"... Pois se o futuro for daquele jeito, é bom prepararmos nossos corações... E ouvidos!
 

PAULO DE TARSO é editor de áudio e mixador. Trabalhou no departamento de som dos longas Ensaio Sobre a Cegueira e Era Uma Vez. Dono do estúdio Lux Sonora - Pós-Produção de Som para Cinema e Publicidade, em Curitiba.
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