Seja bem-vindx!
Acessar - Registrar

O Som do Oscar 2012 - parte 2 Frame Sonoro

Na edição anterior, falei sobre A Invenção de Hugo Cabret e Drive. Seguimos, então, com mais um indicado ao Oscar deste ano.

Millennium - Os Homens que Não Amavam as Mulheres

Logo no início, podemos perceber a importância que o diretor David Fincher atribui ao desenho de som neste seu último trabalho. O nome do seu colaborador habitual nesse departamento, Ren Klyce, aparece já nos créditos iniciais. Aliás, essa prática ocorre desde Clube da Luta, de 1999, e é algo bem incomum dentro das produções made in Hollywood. Fincher é conhecido por estimular o uso do som como elemento narrativo, acompanhando todo o trabalho de pós-produção e contribuindo de forma positiva, mas deixando a criatividade para a sua equipe (ao contrário de, por exemplo, Michael Mann, que de forma ditatorial praticamente destruiu o trabalho de som de Inimigos Públicos).

Ren Klyce consegue com sua equipe criar uma pós-produção sonora de tal forma integrada às imagens que tornam este Millennium uma experiência cinematográfica única. Não é à toa que ele é hoje um dos nomes mais respeitados da indústria, mesmo sem ter recebido um único Oscar em sua carreira. O primeiro desafio de Klyce foi, a partir do filme montado, estabelecer conceitos sonoros distintos para os dois personagens principais. No primeiro e segundo ato, Mikael Blomkvist (Daniel Craig) e Lisbeth Salander (Rooney Mara) têm suas ações transcorrendo em paralelo, em localizações e situações bem distantes. E é notável como Klyce consegue criar ambiências específicas e particulares para cada um deles. Aliás, esse tipo de situação já havia ocorrido no trabalho anterior de Fincher, A Rede Social, só que não de uma maneira tão radical e envolvendo personagens tão longínquos e diferentes entre si.

Mas vamos ao exercício de tentar destrinchar um pouco as diversas camadas sonoras deste filme. Comecemos pelas ambiências: complexas, detalhadas, cheias de nuanças e sutilezas. Desde o já citado Clube da Luta, um filme de David Fincher não nos presenteia com ambiências tão ricas e orgânicas. Alguns exemplos:

- Os sons do frio cortante das paisagens suecas são absurdamente bem editados e desenhados. O vento, a neve, as árvores... Toda essa rica sonoridade contribuindo para passar a sensação gélida daquelas paragens. E tudo lindamente mixado e distribuído pelos cinco canais de áudio.

- Os interiores das casas, principalmente o chalé quase caindo aos pedaços de Mikael são um prato cheio para a equipe de som: frestas, janelas e portas com o vento fustigando lá fora. O desconforto e o isolamento do protagonista naquele lugar insalubre é muito bem realçado pelo som. Mesmo na mansão Vanger, uma estrutura suntuosa e imponente, podemos ouvir o vento batendo nas janelas.

- O pequeno apartamento de Lisbeth possui um outro perfil. Sua atmosfera sonora nos ajuda a conhecer um pouco melhor sobre a sua moradora e sua condição social. Os ruídos urbanos vindos da rua, a vizinhança barulhenta com suas TVs e rádios, os vozerios... Tudo indicando um apartamento com paredes finas e em uma localização não muito privilegiada. Até um trem passando nos arredores dá para ser ouvido. Numa certa cena, Lisbeth vai entrar no banheiro, mas seu movimento é interrompido por alguém batendo na porta. Ela nem chega a entrar no banheiro, mas já sabemos que ali existe uma torneira pingando. Tudo muito detalhado, muito rico, sutil e, o mais importante, ajudando a contar mais sobre os personagens e o mundo em que vivem.

Assim como em A Rede Social, existe uma cena em um clube dançante em Millennium, com a música explodindo nos alto-falantes. Mas ao contrário do filme anterior, aqui não há diálogos. O grande destaque é a maneira como a música foi mixada e “costurada” com o plano seguinte, quando Mikael vai para o apartamento de Lisbeth, onde irão se encontrar pela primeira vez.

Os sons criados pelas cenas de flashbacks também possuem um conceito totalmente diferente, com muita utilização de reverberação, cumprindo sua função de passar a sensação de distanciamento no tempo.

Já na área de efeitos sonoros, um dos destaques é o som da motocicleta de Lisbeth. É um ronco alto e muito expressivo, quase como se fosse a expressão da personalidade arredia e tímida, porém furiosa de sua dona. É impressionante como o som dessa moto influencia na cena final, no último plano, com Lisbeth indo embora.

Mas um dos pontos altos é a tentativa de assalto que Lisbeth sofre no metrô. Ali os sons dos trens assumem a narrativa: ora são estridentes, ora raivosos e dissonantes, eles praticamente acompanham toda a ação e “mudam” conforme o desenrolar da cena. Desde o momento em que ela percebe que sua bolsa foi roubada, a perseguição ao ladrão na escada rolante, a briga que segue e a fuga: o que temos ali é a pura utilização de um desenho de som narrativo e brilhantemente montado. 

Um outro aspecto a ser observado é a grande quantidade de sons off-screen. Desde um personagem que sai do quadro, vai até outro cômodo, abre uma garrafa de vinho e retorna, até o som das algemas que são ouvidas antes de serem mostradas por um dos personagens.

Na primeira cena de violência sexual, é simplesmente genial como o som da enceradeira foi inserido. De forma orgânica, ele dá ao público valiosas informações de tempo e espaço (a cena ocorre depois do expediente, não há mais ninguém nos escritórios), e também serve para acobertar a violência perpetrada contra Lisbeth. O mais notável, porém, é como a música de Trent Reznor e Atticus Ross se mescla ao ruído da enceradeira, utilizando de forma inteligente a mesma tonalidade e criando uma textura sonora tensa que ajuda a aumentar o desconforto das imagens mostradas na tela. A transição é quase imperceptível, mas o efeito dramático é eficiente e perturbador. Este é um ótimo exemplo de cena que foi escrita pensando no som como elemento narrativo. Mas eu não saberia dizer se foi ideia do roteirista Steven Zaillian ou do próprio diretor David Fincher.

Na segunda e na terceira cena de violência sexual, os sons dos gritos dos personagens são absurdos: viscerais e aflitivos, são terrivelmente perturbadores e elevam o desconforto da cena a um nível quase insuportável. Para entender a contribuição dos sons nessas cenas basta um exercício simples: assisti-las com o volume no zero. A diferença é (me desculpem o trocadilho barato) gritante.

Apesar de não ser tão genial como em A Rede Social (merecidamente vencedora do Oscar), a música de Trent Reznor e Atticus Ross cumpre muito bem a sua função em Millennium, acompanhando seus personagens nesta jornada de medo e violência. Existe uma integração pensada e muito bem resolvida com o desenho de som, vide o exemplo já citado da primeira cena de violência sexual. Mas o mais impressionante de tudo é este filme ter perdido o Oscar para A Invenção de Hugo Cabret. A trilha sonora de Millennium está anos-luz à frente do filme de Martin Scorsese. Tanto em termos de qualidade técnica quanto de conceito e opções estéticas.

Mas resta o consolo de saber que dentro do primeiro escalão dos diretores de cinema de Hollywood existe um (é injusto dizer isso, não é só David Fincher, não...) que estimula e valoriza a importância do desenho de som, sabendo que este é um elemento cinematográfico valioso e riquíssimo de possibilidades.

Confira o vídeo do site SoundWorks Collection, com depoimentos dos compositores Trent Reznor e Atticus Ross, do sound designer Ren Klyce e do re-recording mixer Michael Semanick sobre Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres.

--
EDIÇÕES ANTERIORES DA COLUNA 

Sobre o autor:

PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Você também pode gostar de...

Frame Sonoro
Precisamos falar sobre o som de PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN
Frame Sonoro
O Som do Oscar 2012 - parte 4: CAVALO DE GUERRA
Frame Sonoro
APOCALYPSE NOW e a invenção do sound design