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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
19/02/2015 25/12/2014 4 / 5 3 / 5
Distribuidora
Warner
Duração do filme
132 minuto(s)

Sniper Americano
American Sniper

Dirigido por Clint Eastwood. Roteiro de Jason Hall. Com: Bradley Cooper, Sienna Miller, Luke Grimes, Jake McDorman, Cory Hardrict, Kevin Lacz, Navin Negahban, Keir O’Donnell, Sammy Sheik.

Uma das coisas fascinantes acerca da Arte é a possibilidade de admirarmos uma obra por seus elementos técnicos/criativos/narrativos/etc e, ao mesmo tempo, desprezarmos profundamente a mensagem que estes transmitem. No extremo desta dicotomia, há clássicos como O Nascimento de uma Nação e O Triunfo da Vontade, claro, mas, de certo modo, inúmeros outros filmes usam a linguagem de forma intrigante para levar o espectador a se identificar com personagens e situações que normalmente desprezaria (pensem em Scarface, A Queda, Taxi Driver e tantos outros). Assim, não é espantoso que este Sniper Americano tenha me agradado tanto embora, política e moralmente corrompido, traga como protagonista um psicopata que insiste em tratar como herói.


Roteirizado por Jason Hall a partir da autobiografia de Chris Kyle, o sniper com maior número de alvos derrubados na História do exército norte-americano, o longa acompanha a trajetória do sujeito (vivido por Bradley Cooper) desde a infância influenciada por um pai autoritário, passando por seu alistamento ao se ver revoltado com o ataque ao World Trade Center e seguindo-o por várias temporadas no Iraque até voltar aos Estados Unidos e enfrentar, ao lado da esposa, as consequências do estresse provocado pela guerra.

Claro que um conhecimento mínimo acerca da História recente já permite ao público identificar um problema na descrição acima: o Iraque nada teve a ver com o ataque às Torres Gêmeas, como todos sabemos, e, assim, já de imediato ficamos presos a um “herói” cuja motivação para atuar na invasão de um país parte de pretextos falsos. A questão é: Kyle acreditava nos motivos por trás da guerra? Sim, sem dúvida – como tantos outros soldados. No entanto, menos fácil é perdoar o fato de que o filme também parece acreditar – ou, no mínimo, evita questioná-los. Mais grave, porém, é constatar que, apesar de tudo, Sniper Americano indubitavelmente trata seu protagonista como um herói, jamais colocando a moralidade de suas ações em dúvida e, com isso, contribuindo para transformar em ícone alguém que não merecia sequer ser tratado como anti-herói.

Pois se é compreensível entender a paixão patriótica dos soldados num contexto pós-11 de Setembro (principalmente se lembrarmos que eram alimentados com as mentiras do governo Bush), menos aceitável é abraçar um sujeito que, repetindo o credo ufanista do “somos o melhor país do mundo”, não hesita em classificar os iraquianos como “selvagens” e que simplesmente atribui a morte de um companheiro ao fato de este ter questionado a validade ética da guerra. Esta visão xenofóbica e belicista, diga-se de passagem, é ecoada pelo roteiro de Hall, que trata todos os personagens iraquianos ou como terroristas em potencial ou como vítimas incapazes de se defenderem sozinhas. Como se não bastasse, aparentemente todas as mais de 160 pessoas mortas por Chris Kyle mereceram a bala que destroçaram seus corpos – e, em certo momento, quando um superior diz que a viúva de uma vítima afirmou que esta carregava apenas um Corão, o atirador descarta a alegação com impaciência e tudo fica por isso mesmo.

Aliás, a psicopatia de Kyle é tamanha que, ao ser questionado por um psicólogo sobre possíveis cicatrizes deixadas pelo massacre que promoveu, o sujeito afirma orgulhoso que só lamenta não ter “salvado mais norte-americanos” – leia-se: não ter matado mais “selvagens” –, demonstrando não ter aprendido absolutamente nada com sua experiência. (E basta ler a biografia do atirador para constatar que ele era ainda pior na realidade, chegando a revelar que, ao ter seu recorde ameaçado por um outro sniper, subitamente contou com a “sorte” de ver vários “vilões” surgindo em sua mira, o que no mínimo sugere um impulso preocupante de aumentar sua marca a todo custo).

E é aí que a discussão sobre Sniper Americano se torna interessante, já que, mesmo desprezando profundamente o protagonista e o que representa, me vi constantemente numa posição de identificação com suas lutas e dilemas – algo que se deve ao talento narrativo de Clint Eastwood e à performance carismática de Bradley Cooper. Em primeiro lugar, Eastwood é inteligente o bastante para reduzir a questão da invasão ao Iraque a uma questão pessoal, o que diminui o caráter político do filme (algo que, sim, podemos condenar do ponto de vista moral, mas que é eficiente como narrativa). Ao personalizar a luta de Kyle, criando vilões bem identificados (como o sniper que persegue o “herói”), o longa tem mais facilidade para envolver os espectadores que certamente protestariam contra a ideologia do atirador – e não é à toa que o “vilão” principal é um sujeito barbudo que se veste sempre de preto e mal diz uma palavra, mantendo o público afastado e impedindo que o enxerguemos como um ser humano complexo e com motivações próprias. Assim, não é de se espantar que o clímax da obra, que não hesita nem mesmo em acompanhar em câmera lenta a trajetória de uma bala, provoque uma catarse no espectador, já que é realmente empolgante.

Desde que esqueçamos o que representa, claro. (E Eastwood torna isto mais fácil ao manter o iraquiano fora de foco na mira, completando sua desumanização.)

Além disso, o cineasta cria sequências de ação realmente tensas e envolventes – tanto ao diminuir o ritmo da narrativa para que acompanhemos Kyle, sozinho, observando os arredores com uma respiração ansiosa e pesada, quanto ao mergulhar os personagens (e o público) em uma tempestade de areia que confere um tom claustrofóbico e opressivo à sequência final. Enquanto isso, Cooper, exibindo um prognatismo similar ao de Kyle e um físico imponente de soldado, encarna o atirador como um homem determinado e dedicado aos companheiros, sendo habilidoso também ao evocar sua inquietação ao retornar aos Estados Unidos (algo que o belo design de som ressalta, por exemplo, através de estalos súbitos e do apito de pressão escapando em certo ponto). Por outro lado, os demais personagens pouco mais são do que caricaturas, desde a esposa sofrida vivida por Sienna Miller até o soldado que compra um anel para a noiva e anuncia que irá se casar assim que retornar da guerra – um clichê mortal em filmes do gênero.

Completando a visão simplista do personagem – e, sim, do filme – ao dividir a humanidade entre “lobos, ovelhas e cães de guarda” (ignorando, por exemplo, a frequência com que os primeiros se apresentam como os últimos), Sniper Americano convenientemente esquece que tudo o que enfoca parte da invasão de uma nação por outra sob falsas alegações. E se o estresse pós-traumático experimentado por Kyle e outros soldados norte-americanos é um elemento dramático eficiente, ao menos estes podiam retornar para seus países e sair da zona de guerra.

Desta forma, Sniper Americano emprega as habilidades de seus realizadores para glorificar um homem que escolheu ir a outro país e matar mais de 160 de seus habitantes com seu rifle, ignorando que há uma outra história ali para ser contada: a de um homem que, vendo sua nação ser destruída por um exército invasor, decidiu lutar para defendê-la, concentrando-se especialmente num soldado inimigo que se orgulhava em atingir, protegido pela distância, outros cidadãos que tentavam libertar o próprio país, incluindo mulheres e, sim, crianças.

Ora, se dirigiu Cartas de Iwo Jima, por que Eastwood não poderia completar a tarefa e comandar um Sniper Iraquiano? Taí uma outra sessão dupla que mereceria aplausos e nos livraria um pouco da culpa de aplaudir um filme ótimo, mas moralmente apodrecido como este.

20 de Fevereiro de 2015

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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