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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
07/02/2014 01/01/1970 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Sony Pictures

Trapaça
American Hustle

Dirigido por David O. Russell. Com: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Jeremy Renner, Louis C.K., Alessandro Nivola, Jack Huston, Michael Peña, Elisabeth Röhm, Saïd Taghmaoui e Robert De Niro.

Em certos aspectos, Trapaça é um filme mais scorsesiano que O Lobo de Wall Street, com o qual compete no Oscar deste ano. Empregando múltiplas narrações em off, movimentos de câmera ostensivos que se aproximam de personagens ou objetos específicos, planos-sequência que nos apresentam ao universo da narrativa e uma trilha sonora repleta de músicas incidentais que ajudam a criar uma atmosfera de época, este novo trabalho de David O. Russell chega a empregar Robert De Niro em uma quase ponta que remete diretamente ao submundo da máfia que se tornou célebre na filmografia de Scorsese. No processo, Trapaça funciona não só por contar uma história interessante e povoada por figuras curiosas, mas também por representar um exercício de estilo que homenageia um dos melhores cineastas da História da Sétima Arte.

Iniciando com um letreiro irônico que informa ao espectador que “parte” da trama é inspirada em fatos reais, o roteiro de Eric Warren Singer (e reescrito pelo próprio Russell) se passa no final da década de 70, quando conhecemos o trapaceiro Irving Rosenfeld (Bale), que promete conseguir empréstimos generosos em troca de um pagamento de cinco mil dólares – empréstimos estes que jamais se concretizam. Envolvendo-se com a bela e igualmente trapaceira Sydney (Adams), ele acaba sendo encurralado pelo agente do FBI Richie DiMaso (Cooper), que obriga o casal a ajudá-lo em uma operação para prender outros estelionatários. Aos poucos, porém, DiMaso passa a mirar políticos e mafiosos, usando o bem intencionado prefeito de New Jersey, Carmine Polito (Renner), como seu alvo principal.

Obviamente se divertindo na recriação estilizada da época, Trapaça é o tipo de obra que leva o espectador a se lembrar, tempos depois, de seus figurinos, penteados e cenários – e Russell e a designer de produção Judy Becker não se intimidam em investir até mesmo em uma clara artificialidade pontual para ressaltar o estilo marcante dos personagens, que são apropriadamente vividos pelos atores com largos maneirismos que sacrificam a naturalidade absoluta em prol de uma composição mais técnica. Assim, Alessandro Nivola surge numa imitação parcial de Christopher Walken, Bradley Cooper cria um agente maníaco e Jennifer Lawrence protagoniza uma coreografia de “Live and Let Die” que representa um dos poucos momentos nos quais o filme parece perder controle do limite da artificialidade e fica perto de despencar no abismo da caricatura.

Caricatura esta que Christian Bale, numa demonstração fabulosa de seu talento e disciplina como ator, consegue evitar mesmo empregando uma composição física extrema – e é um espetáculo grotesco vê-lo, nos minutos iniciais de projeção, montando vaidosamente sua aparência ao empregar cola, peruca e o próprio cabelo para cobrir a careca enquanto sua imensa barriga parece querer chegar ao chão (uma cena que o desenho sonoro do longa se encarrega de tornar ainda mais incômoda através dos ruídos feitos pelo cabelo endurecido do protagonista). Ainda assim, Irving jamais se transforma num ser unidimensional definido por sua aparência ridícula: inteligente e inescrupuloso, ele se torna próximo do espectador não só por ser o primeiro a se apresentar como narrador, mas por exibir sua vulnerabilidade de forma tão honesta – e mesmo seu amor patente por Sydney e pelo filho adotivo atua para torná-lo humano e complexo. Além disso, Bale é hábil ao retratar não só o pânico crescente do personagem à medida que é obrigado a enganar pessoas cada vez mais poderosas, mas também ao sugerir sua culpa diante do que está fazendo com o nobre Carmine – e é revelador quando, em certo momento, ele fecha os olhos ao dizer mais uma mentira, como se precisasse excluir o amigo de seu campo de visão para criar coragem ao continuar a enganá-lo. Enquanto isso, Amy Adams converte Sydney na figura mais enigmática da narrativa, já que a moça salta do amor por Irving ao ressentimento, exibindo também raiva, medo e confusão sem que, contudo, nos deixe esquecer que a garota é tão inteligente e manipuladora quanto o parceiro – e provavelmente mais perigosa.

Igualmente complexo, por sinal, é o agente interpretado por Bradley Cooper: a princípio demonstrando um zelo admirável pelo trabalho e pelo objetivo de encarcerar malfeitores, o sujeito aos poucos revela suas verdadeiras motivações, que passam mais pela ambição carreirística do que pelo apego à Lei. Ao mesmo tempo, o agente DiMaso entrega certo despreparo para a função em momentos-chave, como ao mostrar-se afoito para empurrar o dinheiro rumo ao alvo ou ao permitir que Irving basicamente controle suas estratégias (além, claro, da falta de ética ao tentar envolver-se com uma criminosa sob sua supervisão). Assim, quando eventualmente ele aparece completamente descontrolado (algo ressaltado até mesmo pela distorção eletrônica de sua voz em certo instante e por um grito histérico em outro), constatamos a razão de Irving ao temer os impulsos de “justiça” do sujeito. Fechando o elenco principal, Jennifer Lawrence oferece uma performance curiosa, mas irregular – e parte da responsabilidade por isto se deve ao fato de que sua escalação é incorreta, posto que Rosalyn foi claramente concebida para ser vivida por uma atriz mais velha (ou, no mínimo, com rosto mais amadurecido) que os 23 anos da moça. Sim, Lawrence faz o que pode – e gosto, por exemplo, de como coça o nariz para sugerir o vício de Rosalyn -, mas em boa parte do tempo o que vemos não é a personagem e sim Lawrence interpretando uma criatura sem controle, culminando na já citada cena que, completamente deslocada, nos traz a garota dançando pela casa.

Eficaz ao pontuar sua trama de crimes e golpes com um senso de humor curioso, Trapaça tem seus melhores momentos ao mostrar, por exemplo, o inseguro Stoddard Thorsen do gênio Louis C.K. sendo intimidado pelo subalterno DiMaso e ao demonstrar como Irving é obrigado a lidar com a loucura da esposa ao fingir aceitar suas premissas insanas. Por outro lado, o terceiro ato incomoda por insistir em mastigar excessivamente suas explicações para o público, incluindo freeze frames desnecessários e um excesso de exposição que beira o ofensivo (a fala de Jack Huston em um carro, “Meu chefe sabe que você fez um favor”, é particularmente irritante – e não se preocupem, isto só será spoiler pra quem já viu o filme e conhece o contexto da fala). Para piorar, embora David O. Russell faça o possível para emular (bem) os traços estilísticos de Scorsese, aqui e ali ele se entrega aos próprios (e falhos) vícios de linguagem, como ao inexplicavelmente descer a câmera para mostrar as mãos dos personagens não em um, mas em dois momentos distintos – uma “marca autoral” que eu já havia apontado ao escrever sobre O Lado Bom da Vida.

Ainda assim, Russell (um diretor que, de modo geral, admiro) é bem sucedido ao construir uma narrativa movida por alianças ditadas mais por inseguranças amorosas do que pelas necessidades imediatas dos personagens e que, de quebra, ainda constrói um conflito interessante ao sugerir que, mesmo interessados em prender apenas criminosos reais, os “mocinhos” representados pelo FBI se tornam vilões em função de seus métodos, de suas ambições e por mirarem naquele que, vivido com sensibilidade por Jeremy Renner, é talvez o único sujeito realmente decente da história.

Com isso, Trapaça pode até ser uma espécie de Os Bons Companheiros versão light, mas não deixa de ser incrivelmente divertido.

07 de Fevereiro de 2014

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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