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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
07/10/2011 01/01/1970 4 / 5 / 5
Distribuidora

Capitães da Areia
Capitães da Areia

Dirigido por Cecilia Amado e Guy Gonçalves. Com: Jean Luis Amorim, Ana Graciela, Robério Lima, Paulo Abade, Israel Gouvêa, Ana Cecília, Marinho Gonçalves, Jordan Mateus, Elielson Conceição, Evaldo Maurício, Heder Novaes, Edelvan de Jesus.

Não é fácil, a tarefa de tentar levar para as telas um livro como Capitães da Areia. Uma das maiores obras de nossa Literatura, o texto de Jorge Amado é denso em suas caracterizações e comentários políticos e sociais, sendo povoado por uma infinidade de personagens marcantes que, sem dúvida, permanecem nas mentes de leitores de várias gerações como figuras bem definidas que agora devem encontrar eco nos atores que os encarnam nas telas. Mais difícil ainda, imagino, deve ser assumir a tarefa de adaptar um clássico para o Cinema quando o autor da obra era seu próprio avô.


Pois Cecilia Amado, estreando aqui no comando de longas depois de uma considerável experiência como assistente de direção de filmes como Batismo de Sangue, Jogo Subterrâneo e Onde Anda Você, se sai admiravelmente bem na tarefa, criando um filme que, mesmo com problemas, honra os personagens de Jorge Amado ao mesmo tempo em que os apresenta em uma produção bem cuidada que prima pela fotografia memorável, pela direção de arte impecável e por atuações juvenis que surpreendem na maior parte do tempo. Co-autora do roteiro ao lado do experiente Hilton Lacerda (A Festa da Menina Morta), Cecilia traz para o Cinema com delicadeza os Capitães da Areia, grupo de crianças e adolescentes que, na Salvador da década de 30, vivem num trapiche abandonado e passam os dias percorrendo as ruas da cidade roubando e aplicando golpes que garantam sua sobrevivência. Liderados por Pedro Bala (Amorim), eles contam com um código de honra interno que estabelece um sistema de suporte mútuo e que acaba sendo abalado com a chegada de Dora (Graciela), uma órfã encontrada por Professor (Lima).

Substituindo uma trama definida pela simples observação da dinâmica entre seus vários personagens, Capitães da Areia fascina por trazê-los em um mundo que combina a religiosidade e o misticismo do candomblé com o pragmatismo imposto pela dura realidade na qual aquelas crianças vivem. Livres ao seu próprio modo, os Capitães se orgulham de sua independência ao mesmo tempo em que valorizam os laços estabelecidos uns com os outros – e, por isso, são perfeitamente capazes de brigar usando facas em um instante apenas para, no momento seguinte, sentarem lado e lado enquanto contam casos e riem uns dos outros. Não que o filme romantize suas existências áridas: dormindo no chão em um imóvel semidestruído que parece não ser capaz de abrigá-los da mais leve chuva, os garotos vivem com expressões cerradas que denunciam a amargura com que enxergam o mundo – e, justamente por isso, vê-los abrindo largos sorrisos em raros momentos de felicidade é algo que se torna tocante por expor a promessa frustrada que cada um ali representa ao seu próprio modo.

Neste aspecto, a escalação dos atores é fundamental – e Cecilia Amado se sai admiravelmente bem em suas escolhas (infelizmente, não consegui encontrar o nome do(a) diretor(a) de elenco para citá-lo(a) aqui): como Pedro Bala, o jovem Jean Luis Amorim consegue combinar a segurança de um líder experimentado com a ingenuidade emocional de um adolescente, ao passo que Robério Lima transforma o Professor em uma figura fiel ao amigo mesmo quando magoado ao vê-lo seduzindo sua amada Dora – e é fácil compreender porque ele é visto como um intelectual pelos companheiros. Por sua vez, Ana Graciela confere vulnerabilidade a Dora, além de evocar com talento a sexualidade latente da garota – e mesmo que falhe em momentos dramáticos (percebam sua falta de reação diante da briga dos Capitães ao vê-la pela primeira vez), acaba convencendo graças à naturalidade com que assume seu papel de “mãezinha” dos demais.

Mas o trio principal é apenas a cobertura do bolo, já que Amado e o preparador de elenco Christian Durvoort arrancam belas atuações de todo o elenco infantil secundário: como Gato, Paulo Abade exibe, mesmo tão jovem, a intensidade de um homem obcecado por sua companheira, ao passo que o pequeno Jordan Mateus é capaz de encarnar Boa Vida tanto como um garotinho irreverente quanto como um marginalzinho em construção. Finalmente, Israel Gouvêa ganha a chance (e faz jus a ela) de interpretar o mais atormentado dos Capitães: ressentido por ser tratado pelo mundo como alguém menor em função de sua deficiência e abrindo mão da possibilidade de uma vida de conforto apenas para honrar o acordo com os amigos, Sem Pernas mostra-se um indivíduo torturado que age com crueldade e raiva não por uma maldade inata, mas como mecanismo de defesa – tornando-se, no processo, o mais trágico entre os personagens. Em contrapartida, alguns dos quase figurantes pecam por interpretações caricatas que denunciam uma falta de cuidado da direção com os atores menos relevantes para a narrativa – algo que fica claro na gagueira de Zorra Total de Aurélio e na bondade histérica do padre José.

Estabelecendo-se como uma personagem tão importante quanto os próprios Capitães, a cidade de Salvador surge aqui como um ambiente romântico ao seu próprio modo, mas também palco de terríveis injustiças – e sua geografia particular, tão facilmente reconhecível, é empregada com eficiência ao lado da direção de arte do veterano Adrian Cooper para evocar a época e a atmosfera da história de Jorge Amado. Além disso, é louvável perceber que a diretora não se rendeu ao politicamente correto que domina as produções contemporâneas e que poderia levá-la a ignorar (ou minimizar) alguns componentes característicos daquele universo, como o fato dos jovens Capitães se entregarem à bebida, ao cigarro e ao sexo – e a transa de Dora e Pedro Bala é encenada com um equilíbrio preciso entre a doçura e a pura necessidade física.

Nem tudo, porém, funciona em Capitães da Areia: as cenas envolvendo o carrossel surgem como símbolos óbvios e, portanto, frágeis daquele universo infantil corrompido, ao passo que a trilha de Carlinhos Brown, embora eficaz na atmosfera lúdica de seus temas instrumentais, beira o constrangedor ao investir em canções que tentam comentar a narrativa e os personagens em determinados instantes. Da mesma maneira, embora seja bem sucedido ao construir figuras tridimensionais, o filme falha em seus aspectos emocionais, falhando em provocar impacto, por exemplo, com a morte de certo personagem.

Ainda assim, é incontestável que o longa de Cecilia Amado tenha conseguido transportar as criações icônicas de seu avô com sucesso para as telas – e ver os Capitães em pé, contra o vento, e emoldurados pelo céu azul da capital baiana é algo capaz de provocar arrepios até mesmo no mais cético dos espectadores.

E, quem sabe, também de despertar o interesse de uma nova geração de leitores pela obra magnífica do velho Jorge.

07 de Outubro de 2011

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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