Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
07/11/2008 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
113 minuto(s) |
Dirigido por Pablo Trapero. Com: Martina Gusman, Laura García, Rodrigo Santoro, Elli Medeiros, Tomás Plotinsky, Leonardo Sauma.
Cineasta em constante evolução, o argentino Pablo Trapero realiza, em Leonera, seu melhor trabalho – algo ainda mais impressionante se considerarmos que seu último longa foi o admirável Nascido e Criado, que, assim como seus outros três filmes (Mundo Grua, Do Outro Lado da Lei e Família Rodante), foi aclamado em festivais ao redor de todo o mundo. Demonstrando uma segurança invejável, Trapero cria, aqui, uma narrativa ambiciosa que, além de abordar de forma fluida vários anos da vida de sua protagonista, jamais apela para as convenções mais banais do subgênero “filme de presídio”, no qual parcialmente se insere, evitando até mesmo a onipresente câmera nervosa em momentos de maior tensão durante a (aí, sim, inevitável) seqüência da rebelião.
Co-produzido pelo brasileiro Walter Salles, Leonera tem início de forma curiosa, embalando seus créditos iniciais em uma canção lúdica que imediatamente entra em choque com o primeiro plano do longa, quando somos apresentados a Julia (Gusman), que, exibindo vários ferimentos e hematomas, logo descobre dois homens esfaqueados em seu apartamento: seu namorado (que morre) e o amante deste, Ramiro (Santoro). Enviada para uma penitenciária feminina enquanto espera pelo julgamento, Julia é beneficiada pela gravidez e, assim, ganha uma cela num pavilhão que permite que as prisioneiras mantenham a guarda dos filhos até os quatro anos de idade. Jurando inocência, Julia não consegue convencer Ramiro – que também está preso - a confessar a autoria do crime e, assim, torna-se mãe e vê o filho iniciar a vida atrás das grades, ao seu lado.
Sem jamais empregar os clichês dos “carcereiros sádicos”, das “prisioneiras cruéis” ou das “brigas no refeitório”, Leonera não se detém nem mesmo na questão da culpa ou da inocência de sua protagonista: responsável ou não pelo crime, Julia é obrigada a passar anos presa, vitimada por um sistema judiciário claramente deficiente (como o nosso), e, neste contexto, seu papel na morte do namorado é irrelevante – algo acentuado pelo fato dela realmente não se lembrar do que ocorreu na noite do crime. Em vez disso, o roteiro escrito por Trapero ao lado de três outros colaboradores investe no belo arco dramático percorrido pela protagonista, que, do ressentimento que nutre pelo bebê que carrega (numa cena chocante, que me fez desviar os olhos da tela, ela soca a própria barriga), passa a encarar o filho como seu único elo com a própria humanidade, deixando de ser uma possível assassina para tornar-se primordialmente Mãe.
Vivida por Martina Gusman (produtora executiva do projeto e esposa de Trapero) com um brilhantismo ímpar, Julia é uma mulher complexa que permanece imprevisível do início ao fim da projeção, embora eventualmente nos tornemos capazes de compreender ao menos a dimensão de seu amor pelo filho. Nutrindo um óbvio ressentimento pela mãe, a moça inicialmente se mostra compreensivelmente intimidada pela realidade que a cerca – e um dos grandes prazeres em observar a atuação de Gusman é perceber como ela gradualmente se torna mais segura e passa a se mostrar à vontade ao lado das companheiras de prisão. Da mesma forma, as mudanças físicas vividas pela atriz são impressionantes e, por mais que tenha admirado a performance de Sandra Corveloni em Linha de Passe, não sei como Gusman pode ter saído de Cannes sem o prêmio de atuação na bagagem.
Todo o elenco de Leonera, diga-se de passagem, merece elogios: como a jovem e bela mãe de Julia, a uruguaia Elli Medeiros cria uma figura que, embora se torne uma espécie de antagonista odiosa, ainda retém a humanidade por agir de acordo com aquilo que percebe como sendo melhor para o neto – por piores que sejam seus métodos. Enquanto isso, Rodrigo Santoro continua a demonstrar inteligência ao expandir sua carreira internacional através de papéis pequenos (mas importantes) em produções memoráveis, já que sua participação neste longa se mostra eficaz e intensa mesmo se concentrando em poucas cenas. Finalmente, a estreante Laura García surpreende pela riqueza de sua composição, transformando a presidiária Marta em uma figura forte e durona que, ao se aproximar de Julia, revela um lado doce e protetor, eventualmente se tornando o alicerce a partir do qual a protagonista reconstruirá sua vida.
A forte ligação entre as duas mulheres, aliás, é capturada com sensibilidade por Trapero que, não por acaso, mantém as duas em quadro, lado a lado, quando Julia é forçada a conversar com a mãe durante uma visita desta à cadeia. Da mesma forma, a impecável direção de arte se sai admiravelmente bem na difícil tarefa de criar um pavilhão que, mesmo mantendo as características opressivas e deprimentes de uma prisão, exibe certa leveza por ser também o lar de tantas crianças – e particularmente fascinante é notar como a cela de Julia se transforma ao longo do filme, surgindo como um espaço sufocante e triste e se convertendo aos poucos em um simulacro de lar que se mostra até aconchegante. E se as portas enferrujadas e paredes mofadas da prisão na qual Ramiro se encontra parecem tão reais por talvez pertencerem a uma penitenciária verdadeira (eu não duvidaria), a maquiagem empregada para criar a barriga de gestante de Julia merece todos os prêmios da categoria em função de sua absoluta verossimilhança (ao escrever sobre o filme, durante a Mostra de SP, comentei: “só posso acreditar que ela estava realmente grávida quando rodou as cenas iniciais, já que não creio que uma prótese poderia ser tão perfeita como a vista aqui”. Posteriormente, descobri, espantado, que se tratava realmente de uma prótese.).
Sem jamais martelar suas mensagens políticas e sociais, Trapero também acerta ao permitir que o espectador extraia sozinho os subtextos contidos em sua narrativa; e se o choro de bebê que ecoa durante o plano que revela a prisão não for suficiente para ilustrar o aspecto quase surreal de um sistema que leva crianças a crescerem como prisioneiras, o quadro que traz os pezinhos descalços dos filhos das detentas brincando nas grades das celas certamente cumprirá esta missão (isto para não mencionar a imagem tragicômica de um carcereiro que, fantasiado de Papai Noel, percorre o muro do presídio na noite de Natal). Além disso, o que dizer em defesa de um judiciário que mantém suspeitos presos durante anos enquanto aguardam julgamento?
Não há soluções fáceis para estas questões, claro, e o diretor não tenta oferecê-las; para Trapero, basta que testemunhemos a trajetória de Julia e tiremos nossas próprias conclusões. Esta abordagem fica clara, aliás, também em outra impressionante seqüência do longa, quando acompanhamos o longo trajeto da protagonista até a prisão que abriga Ramiro e que inclui até mesmo um processo de revista nas fraldas de seu bebê – um momento que rivaliza apenas com o incrível plano-seqüência (este, sim, certamente rodado numa penitenciária real) que segue Julia de sua cela até a saída do presídio para uma breve licença monitorada por uma policial, ilustrando simultaneamente a segurança do lugar e a naturalidade com que a garota já se movimenta ali (e que, por sua vez, remete a outro tenso plano-seqüência no desfecho do longa).
Empregando uma lógica visual claustrofóbica como a situação de Julia, Trapero mantém sua câmera próxima à ação, investindo em quadros fechados e raramente cortando para outros mais abertos (o plano geral que escancara a prisão durante a rebelião é um deles). E se esta estratégia já funciona muito bem para atirar o espectador naquele universo, os closes fechadíssimos adotados pelo diretor quando Julia se encontra numa solitária poderiam soar como exagero, mas acabam apenas reforçando a lógica do diretor. E quando a câmera finalmente permanece fixa, permitindo que (SPOILER!) a anti-heroína se afaste para reiniciar a própria vida, percebemos a diferença entre um desfecho em aberto que engrandece um filme e outro – como o de O Silêncio de Lorna, que estreou no Brasil na mesma semana que Leonera – que apenas frustra por sua fragilidade.
11 de Novembro de 2008
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