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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
13/03/2009 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora

Dúvida
Doubt

Dirigido por John Patrick Shanley. Com: Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Viola Davis, Alice Drummond, Joseph Foster, Mike Roukis, Paulie Litt.

 

Quando Dúvida tem início, o padre Brendan Flynn, interpretado de maneira brilhante por Philip Seymour Hoffman, se dirige à sua congregação em um sermão sobre a triste solidão provocada por uma dor mantida em segredo. Emocionando-se claramente ao dizer aquelas palavras, o padre em alguns instantes parece mesmo estar abandonando a pregação e entregando-se a uma intensa confissão pública, como se estivesse prestes a revelar a natureza excruciante de seu próprio e doloroso segredo. Por outro lado, é perfeitamente possível que seu temperamento sensível seja o responsável por sua consternação e que esta seja disparada por sua empatia pela dor de seus fiéis. Uma dúvida, portanto, que faz jus ao título da produção.

 

Mas não a maior do roteiro, vale dizer. A grande questão apresentada pelo texto impecável do também diretor John Patrick Shanley (inspirado em sua própria peça) gira em torno da natureza da relação entre o padre Flynn e o jovem Donald Miller (Foster): depois de ver o sacerdote colocar uma camisa no armário do garoto, a inexperiente freira Irmã James (Adams) alerta sua superiora, a madre Aloysius (Streep), que imediatamente conclui que algo terrível está acontecendo, decidindo impedir que o padre continue a “fazer mal” aos alunos da escola comandada por sua igreja. Ambientada em 1964, a trama remete claramente aos inúmeros escândalos que atingiram os católicos nos últimos 15 ou 20 anos – e ao suspeitar de pedofilia, as duas irmãs agem como se simplesmente constatassem a concretização de um temor antigo.

 

No entanto, o caso apresentado pelo complexo roteiro de Shanley está longe de ser simples: nos poucos momentos em que vemos o padre a sós com Donald, seu comportamento soa impecável, já que seu carinho para com o menino não parece ocultar segundas intenções – e o olhar de admiração do garoto ao acompanhar os sermões do sacerdote tampouco parecem indicar um ressentimento que poderia surgir como conseqüência do abuso de poder e confiança. Em contrapartida, a Irmã Aloysius surge como uma mulher que sente verdadeiro prazer ao disciplinar (ou melhor: “disciplinar”) seus jovens alunos, parecendo estar sempre à procura de uma nova vítima. Rígida e conservadora, ela soa intolerante e preconceituosa – e, no entanto, há algo em sua inabalável convicção que acaba balançando também a confiança do espectador no aparentemente irretocável padre Flynn.

 

Interpretada por Meryl Streep como alguém que não parece enxergar prazer algum na vida (ao escutar o coral de alunos, ela parece apenas procurar uma nota dissonante), a Irmã Aloysius já entra em cena como uma figura repressora que, mais preocupada em punir os alunos do que em escutar o sermão de seu superior, conversa sempre com uma voz baixa e controlada que contrasta com a intensidade de seu olhar sempre acusatório. Capaz de demonstrar carinho por suas colegas de hábito (embora também seja rígida com estas, quando julga necessário), a Irmã é uma destas pessoas cuja incompreensão acerca da leveza e da alegria se manifesta até mesmo em suas falhas tentativas de humor (como Streep ilustra numa cena em particular) – e, para ela, gestos de carinho são tão suspeitos quanto uma agressão ostensiva. Sentindo-se amparada e justificada por sua vontade de defender sua Fé daqueles que a “mancham”, ela adota uma postura surpreendentemente maquiavélica ao declarar guerra ao padre Flynn – e, mais uma vez, Streep fascina ao segurar seu crucifixo, em um instante de raiva, como se estivesse empunhando uma arma.

 

Já Philip Seymour Hoffman, um dos poucos atores de sua geração capazes de contracenar com Streep sem serem completamente ofuscados, surge inteiramente mergulhado no papel já em sua primeira cena, quando seu gestual marcante e sua entonação precisa o tornam plenamente convincente como um padre experiente e envolvido com sua congregação. Além disso, seu sorriso benevolente ao observar os alunos da escola dirigida por Irmã Aloysius e seu interesse aparentemente genuíno no bem-estar das crianças logo conquistam o espectador, que, conseqüentemente, experimenta o impulso de logo desconsiderar as acusações da madre. E é aí que Hoffman, um ator inteligentíssimo, começa a plantar pequenas sementes de dúvida através de sutilezas brilhantes em sua composição: em certo instante, por exemplo, ele oferece uma explicação perfeitamente inocente para a acusação da Irmã Aloysius e, enquanto esta avalia o que foi dito, o padre lhe lança um olhar de soslaio, como se procurasse avaliar se a mulher acreditou ou não em sua justificativa – o que, claro, não deixa de ser suspeito. Da mesma forma, sua raiva ao descobrir que a Irmã entrou em contato com sua antiga paróquia parece desmedida, bem como sua insistência para que ela siga o “protocolo” da Igreja e não converse com as freiras da outra congregação. E o que dizer do fantástico momento em que, ao negar a acusação, ele sacode levemente a cabeça num gesto afirmativo, como se desmentisse a si mesmo sem reparar? Em contrapartida, é tocante, sua expressão de tristeza ao pedir que a Irmã esqueça aquele assunto – algo que se torna mais difícil para a freira ao reparar que o padre mantém as unhas compridas, flores em sua Bíblia e parece despertar a repulsa de um outro estudante.

 

E se o espectador, que conta com a vantagem de uma moderada onipresença (um paradoxo, eu sei, mas que se aplica ao filme), tem dificuldades para chegar a uma conclusão sobre a questão, é natural que a jovem irmã interpretada por Amy Adams se veja oscilando entre as duas figuras de autoridade que conduzem sua trajetória na Igreja: incorrigivelmente inocente (algo que a madre lhe lança no rosto como uma acusação), a Irmã James logo se torna contaminada pelo cinismo de sua superiora – e sua resistência a esta transformação torna a personagem trágica ao seu próprio modo. Enquanto isso, Viola Davis confere uma brutal intensidade ao filme em apenas duas cenas: mulher humilde e trabalhadora, ela é abordada pela Irmã Aloysius numa tentativa clara feita por esta última de transformar a mãe de Donald Miller numa arma contra o padre Flynn. Porém, o chocante pragmatismo da sra. Miller é algo que, de certa forma, se transforma na alma da narrativa, já que, para ela, nada se compara em importância à necessidade de ver Donald formado e rumo à faculdade – e a longa conversa protagonizada por Streep e Davis representa um tour de force inesquecível que acompanha o espectador para fora da sala de projeção.

 

No entanto, a riqueza temática de Dúvida não se limita apenas ao possível crime de pedofilia que move a madre, abordando também outros conflitos internos da Igreja Católica como, por exemplo, sua inata estrutura machista que aqui é ilustrada não só pelo contraste entre a descontração dos padres à mesa e a rigidez silenciosa das freiras, mas também na ótima cena em que o padre Flynn, sem nem mesmo reparar em sua atitude ofensiva, ocupa a cadeira da Irmã Aloysius ao visitar seu escritório, praticamente transformando-a (e à Irmã James) em uma serviçal ao exigir açúcar para seu chá. Além disso, o roteiro emprega, como possível motivação para a obsessão da madre, o conflito entre a tentativa do padre Flynn de modernizar a Igreja, empregando até mesmo canções seculares em suas festas religiosas, e o conservadorismo da Irmã Aloysius, que vê, naquilo, o princípio do fim.

 

Sem dirigir um longa-metragem desde sua estréia na função, em 1990, com Joe Contra o Vulcão, John Patrick Shanley se sai admiravelmente bem ao construir a tensão entre seus dois personagens principais: observem, por exemplo, como a Irmã Aloysius abre as persianas de seu escritório como se acendesse uma luz de interrogatório sobre o padre Flynn e reparem, nesta mesma cena, como o toque insistente do telefone funciona como um elemento adicional na construção da atmosfera de conflito. Da mesma maneira, os pequenos momentos de humor (geralmente envolvendo o carismático Paulie Litt, o Gorducho de Speed Racer) funcionam bem ao libertar pontualmente o espectador daquele tom opressivo. Em contrapartida, Shanley demonstra estar enferrujado ao insistir em quadros inclinados e ângulos baixos de câmera que surgem em momentos inapropriados, sem nada acrescentarem à narrativa. Já a direção de arte se destaca não só pelo cuidado com o realismo e a verossimilhança (reparem as paredes descascadas da sacristia), mas também pelo simbolismo ocasional, como o vitral que traz um imenso olho e que, enquadrado sobre a cabeça do padre Flynn, parece emitir um julgamento sobre o sacerdote.

 

Contando com diálogos cortantes e concebidos (e ditos) com elegância, Dúvida mantém a força de seu título até os segundos finais, já que as ações do padre Flynn e da Irmã Aloysius podem ser interpretadas de diferentes maneiras de acordo com as inclinações e observações de cada espectador. De definitivo mesmo, só a certeza de que, embora perseguir os criminosos que se escondem sob a batina e o manto da Igreja seja fundamental, é sempre terrível constatar como freqüentemente somos levados a testemunhar a destruição do espírito de caridade em nome de uma falsa e equivocada cruzada pela “virtude”. 

 

06 de Fevereiro de 2009

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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