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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
15/02/2008 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
158 minuto(s)

Sangue Negro
There Will Be Blood

Dirigido por Paul Thomas Anderson. Com: Daniel Day-Lewis, Paul Dano, Ciarán Hinds, Kevin J. O’Connor, Dillon Freasier, Russell Harvard, Sydney McCallister, David Willis.

 

Em meu texto sobre Onde os Fracos Não Têm Vez, publicado há duas semanas, comentei que o Anton Chigurh vivido por Javier Bardem naquele filme poderia perfeitamente ser encarado como uma metáfora da brutalidade do Homem. Assim, é curioso que o Daniel Plainview encarnado em Sangue Negro por Daniel Day-Lewis também possua uma essência claramente simbólica, representando, com sua natureza impessoal, implacável e gananciosa, aqueles que se tornaram os vilões mais freqüentes na filmografia norte-americana contemporânea: as grandes corporações.

 

Surgindo em cena já praticamente como uma criatura nascida das sombras, Plainview revela-se fascinante desde o primeiro momento em que o vemos: trabalhando solitária e silenciosamente num poço fundo em busca de prata, ele já exibe sua tenacidade assombrosa ao adiar uma visita ao médico para cuidar da perna quebrada a fim de verificar, primeiro, o valor de sua descoberta. Anos depois, já estabelecido como um bem-sucedido explorador de petróleo, ele recebe a informação sobre a existência de uma imensa jazida sob o solo de uma pequena e miserável cidade, partindo para o local acompanhado de seu filho H.W. – e, ao longo das duas décadas seguintes, seguiremos sua trajetória movida pela cobiça e um profundo desprezo pela Humanidade.

 

Empenhando-se em exibir uma fachada de falsa cordialidade e sinceridade (algo que se reflete até mesmo em seu sobrenome enganoso, já que “visão franca” está longe de ser uma expressão apta a descrevê-lo), o sujeito traz na ponta da língua um discurso cuidadosamente ensaiado para iludir suas humildes vítimas – algo que o diretor Paul Thomas Anderson (que também escreveu o roteiro a partir de livro de Upton Sinclair) ilustra na seqüência em que intercala os rostos esperançosos daquelas pessoas com imagens que expõem as mentiras ditas por Plainview em uma reunião pública. Aliás, até mesmo H.W. surge como um recurso estratégico para que Daniel possa parecer mais humano e simpático.

 

Dono de uma filmografia curta, mas invejável em seu brilhantismo (Jogada de Risco, Boogie Nights, Magnólia e Embriagado de Amor), Anderson volta a exibir, em Sangue Negro, seu talento para o simbolismo e para opções narrativas intrigantes: se os sapos de Magnólia e os mosaicos de cores de Embriagado de Amor já haviam funcionado como atalhos geniais para o desenvolvimento e compreensão de seus personagens, aqui o cineasta investe nos acordes incômodos (mesmo desagradáveis, em certos instantes) da trilha sonora composta por Jonny Greenwood para ilustrar o tumulto interior de Plainview – que, assim como a música que o acompanha, é um sujeito intenso, insistente e desarmonioso.

 

Mas não só isso: apostando corajosamente numa introdução absolutamente silenciosa (a primeira fala surge com quase 15 minutos de projeção), Anderson retrata a personalidade anti-social de seu protagonista, que beira (e eventualmente alcança) a psicopatia, através da própria cor da substância que ele tanto cobiça – e não é surpresa que Plainview surja constantemente coberto de petróleo, numa exposição acidental, mas apropriada, de sua alma sombria. Visto constantemente em contraluz ou mergulhado em sombras (a fotografia de Robert Elswit é soberba), Daniel Plainview é uma criatura que vive no escuro, literal e metaforicamente – e o fato de optar por uma área de atuação tão competitiva apenas reforça os aspectos mais desprezíveis de seu caráter. Não é à toa que, logo no início, quando vemos um dos primeiros instrumentos de perfuração criados por ele, uma corda similar a uma forca aparece rapidamente diante da invenção, já que este campo de trabalho acabará por condená-lo a uma morte simbólica, afastando-o de vez do restante da civilização.

 

Diretor sempre elegante e com pleno domínio da linguagem, Paul Thomas Anderson mantém a narrativa sempre sob controle, revelando ao espectador apenas o que julga estritamente necessário e no momento mais adequado, sendo auxiliado, na tarefa, pelo montador Dylan Tichenor (que foi aprendiz em filmes de Robert Altman, mentor de Anderson, e vem fazendo uma carreira brilhante): observem, por exemplo, a cena em que Paul Sunday (Dano) entra no escritório de Plainview e repare que, inicialmente, vemos apenas os dois personagens. Quando Paul se aproxima da mesa, porém, uma terceira figura é revelada: Fletcher (Hinds), braço-direito do protagonista. Finalmente, quando o primeiro corte da cena acontece, a presença do pequeno H.W. é exposta num contraplano. Aliás, tecnicamente, Sangue Negro é impecável: a direção de arte concebe Little Boston como uma cidadezinha miserável e feia que encolhe ainda mais diante das enormes torres de perfuração construídas por Plainview, ao passo que os figurinos não apenas ajudam a reconstruir a época, como também revelam bastante sobre a personalidade dos personagens (exemplo: a ausência de cores marcantes; o corte opressivo e sem vida das roupas de H.W., e assim por diante).

 

Mas discutir Sangue Negro implica em falarmos de Daniel Day-Lewis: ator de talento inegável, ele cria mais um personagem intenso e inesquecível neste longa. Empregando uma voz grave e com elocução cuidadosa que remete ao John Huston de Chinatown (e é apropriado que este também tenha dirigido O Tesouro de Sierra Madre), Day-Lewis concebe um monstro que poderia perfeitamente rivalizar com o Chigurh de Bardem. Movido mais pelo prazer de conquistar o poder do que pela perspectiva de ser milionário, não é à toa que Plainview só se deixa excitar pelo trabalho (e a natureza fálica das torres de perfuração é, portanto, perfeita) – e sua obsessão pela vitória é a única coisa capaz de obrigá-lo a conviver com outras pessoas, já que seu objetivo declarado é poder comprar o direito de se isolar do mundo. À medida que o conhecemos, aliás, compreendemos que ele seria perfeitamente feliz se pudesse passar a vida cavando e perfurando na escuridão, movido pelo trabalho e pela satisfação de sobrepujar os demais.

 

Neste sentido, seu único contato real com a Humanidade (sua própria e o resto do mundo) é mantido através de seu relacionamento com o filho, que parece mantê-lo sob um frágil, mas claro controle – e é sua eventual incapacidade de comunicar-se com o garoto que finalmente o leva a dar os primeiros passos rumo à insanidade absoluta. Pois o fato é que pode até não haver carinho em sua dinâmica com H.W. (tampouco há agressividade; eles se comunicam com frieza), mas o afeto de Plainview pelo menino é inquestionável, mesmo que sua prioridade ainda seja o trabalho, a vitória. Ainda assim, há, em Plainview, um claro anseio por estabelecer algum tipo de relacionamento real com alguém, o que explica sua receptividade à presença de um parente desconhecido depois que descobre já não poder mais se comunicar com o filho.

 

Aliás, igualmente importante para que compreendamos o protagonista é sua relação com o pastor vivido com talento pelo jovem Paul Dano (Pequena Miss Sunshine): ambos são homens motivados por uma obsessão pelo poder, diferenciando-se apenas no meio que utilizam para alcançar este objetivo: se Plainview explora petróleo, Eli Sunday (“domingo”, o dia santo cristão) explora Deus – e seu desejo de ampliar a Igreja não se deve à sua crença, mas ao culto a si mesmo. O fascinante é que imediatamente os dois reconhecem a verdadeira face um do outro, o que torna sua rivalidade instantânea perfeitamente compreensível. Sim, seria fácil (e politicamente conveniente), para Plainview, permitir que Eli abençoasse sua torre de perfuração; isto, porém, seria conceder ao outro um poder que ele quer para si mesmo – e confesso minha curiosidade em saber o que ele sussurra para o pastor depois de seu batismo (uma verdadeira tortura psicológica à qual se submete por ganância), já que, assim como o cochicho de Encontros e Desencontros, seu conteúdo é mantido em segredo pelo diretor.

 

Culminando numa cena absurda que chega a beirar a comicidade ao enfocar o declínio absoluto de um personagem amaldiçoado pela própria natureza, Sangue Negro talvez provoque o mesmo tipo de reação que o desfecho de Onde os Fracos Não Têm Vez despertou em tantos espectadores – mas, mais uma vez, arrisco em defender esta conclusão como a mais apropriada do ponto de vista dramático e narrativo, já que encarar a fraude absoluta de um Deus que já considerava como superstição parece cortar a última e tênue ligação que Daniel Plainview mantinha com o mundo. E, portanto, é realmente uma pena que a legenda em português falhe ao não traduzir toda a ambigüidade de sua última e reveladora frase.

 

Que, como aquela dita por Tommy Lee Jones nos últimos segundos da obra dos Coen, funciona como um resumo perfeito da triste linha de chegada alcançada por seus destruídos personagens.

 

15 de Fevereiro de 2008

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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