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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
12/01/2007 01/01/1970 4 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
113 minuto(s)

Mais Estranho que a Ficção
Stranger than Fiction

Dirigido por Marc Forster. Com: Will Ferrell, Emma Thompson, Dustin Hoffman, Maggie Gyllenhaal, Queen Latifah, Tony Hale, Tom Hulce, Linda Hunt.

Há algo de especial em Mais Estranho que a Ficção: o filme tem suas falhas óbvias, um desfecho relativamente decepcionante e ao menos uma personagem completamente desnecessária (vivida por Queen Latifah), mas, apesar disso, consegue desenvolver sua história de forma sempre interessante e com uma sensibilidade que certamente surpreenderá aqueles que forem ao cinema esperando assistir a uma comédia (algo que este longa não é). Criando um universo que se move de acordo com suas próprias regras e mergulhado em auto-referências, Mais Estranho que a Ficção poderia perfeitamente figurar em uma antologia que contasse com obras como O Show de Truman, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças e Adaptação – e, mesmo que levemente inferior a estes títulos, o novo trabalho do diretor Marc Forster não faria feio ao lado dos “colegas”.

Escrito por Zach Helm, o roteiro conta a história de Harold Crick (Ferrell), um auditor da Receita Federal que, certo dia, passa a ouvir uma voz que parece narrar todas as suas ações e pensamentos. Levando uma vida entediante cujo momento mais dramático ocorreu ao ser abandonado pela noiva (que, é claro, fugiu com um atuário), Harold busca a ajuda de um mestre em literatura, pois acredita ser o personagem de alguma narração – que se torna bem mais tensa quando ele descobre que a “autora” pretende matá-lo brevemente. Infelizmente, ele tem razão: na verdade, a voz que o sujeito ouve pertence à célebre escritora Kay Eiffel (Thompson), famosa por suas tragédias e que não tem a menor idéia de que Harold é um homem real que pode escutá-la.

Utilizando a metalinguagem como base de sua narrativa, o filme consegue algo raro: fazer uso da narração em off com inteligência e de maneira sempre orgânica à trama. A partir do instante em que começa a ouvir a voz de Eiffel, o protagonista percebe que pode não ser dono de sua própria vida e, portanto, tenta assumir o controle da história – mesmo que isto se limite a trancar-se em seu apartamento numa tentativa desesperada de impedir que a trama continue a se desenvolver. E é um alívio que o roteiro jamais tente explicar a estranha ligação entre Harold e a escritora, já que isto não faria diferença alguma e poderia até mesmo enfraquecer o filme (já bastam os vários longas que usam desculpas esfarrapadas como biscoitos da sorte, maldições feitas por ciganas raivosas, frases ditas simultaneamente por dois personagens, etc). Aliás, até mesmo a natureza do professor de literatura vivido com brilhante ironia por Dustin Hoffman é deixada em aberto: por que, afinal de contas, ele acredita na história absurda de Harold e se dedica até mesmo a compilar uma lista de possíveis autores cujas vozes este poderia estar escutando? Simples: por que isto é necessário para que a trama caminhe e, afinal de contas, nenhuma explicação poderia ser realmente plausível, considerando-se o absurdo da premissa básica do filme – assim, para que inventar uma? Basta que o espectador compreenda e aceite a lógica interna da história para que tudo faça sentido.

Vale dizer, a propósito, que Mais Estranho que a Ficção demonstra ter uma confiança admirável na inteligência de seu público: além de apostar em nossa capacidade de não exigir respostas desnecessárias, ele não tenta martelar em nossa cabeça o tom de sua narrativa. Sim, é claro que sua premissa é divertida por natureza e que a presença de Will Ferrell tende a levar o espectador a assumir que o riso é a principal preocupação dos realizadores; ainda assim, o diretor Marc Forster conduz a história com calma, sem histrionismos, permitindo que mergulhemos sozinhos no clima de melancolia que atravessa o filme. Sem jamais se render ao óbvio, Forster opta por construir pequenos momentos de humor através de marcações inesperadas (como o movimento constante da cadeira que Ferrell ocupa em um ônibus), descartando sem pena outras piadas já prontas (quando o protagonista explica quem é para uma recepcionista, imediatamente esperamos um corte brusco que levará a um plano no qual ele é atirado para fora do prédio; em vez disso, ele sai calma e tristemente do edifício). Da mesma maneira, o cineasta encontra uma solução visual interessante para retratar a obsessão de Harold com a exatidão matemática, incluindo gráficos que ilustram os processos mentais do personagem – cujo apartamento, diga-se de passagem, é de uma impessoalidade atordoante, refletindo também a falta de calor humano da residência da escritora que o “criou” (um toque brilhante da equipe de direção de arte). Aliás, Forster continua a provar sua versatilidade, em nada lembrando o diretor responsável por filmes como A Última CeiaEm Busca da Terra do Nunca e A Passagem.

Enquanto isso, Will Ferrell também aproveita a chance de demonstrar sua capacidade de encarnar tipos mais sérios e transforma Harold Crick em um homem triste cuja introspecção é mais do que um traço de caráter; é uma armadura contra o mundo. Metódico e emocionalmente reprimido, o auditor é o tipo de homem capaz de guardar as meias cuidadosamente dentro dos sapatos antes de se entregar ao sexo – uma atividade que provavelmente não experimentava há anos. Já Emma Thompson abandona qualquer traço de vaidade ao viver Kay Eiffel como uma mulher cujo talento literário (e seus textos descritivos são, de fato, belíssimos) é inversamente proporcional ao seu traquejo social – e há algo de irônico na forma poética com que ela descreve o mais prosaico dos atos; é como se reconhecesse a falta de emoções na própria vida e as substituísse por um preciosismo estilístico belo, mas frio. E se Queen Latifah, como já dito, é obrigada a interpretar uma personagem que não faria a menor falta ao filme, Maggie Gyllenhaal confere energia e calor humano à confeiteira Ana Pascal – duas qualidades que a contrapõem diretamente a Harold. Finalmente, é sempre bom ver intérpretes como Linda Hunt e Tom Hulce em ação, mesmo que em cenas breves e pouco memoráveis.

Tematicamente rico, Mais Estranho que a Ficção é um filme que merece ser discutido após a sessão – e não é à toa que, em certo momento, o personagem de Ferrell assiste ao genial O Sentido da Vida, do Monty Python: afinal, em uma história igualmente ilógica, é isto que o sujeito está buscando. Centralizando a narrativa em torno de dois indivíduos que levam existências vazias, substituindo a convivência social por seus próprios universos particulares (a literatura e a matemática), o longa é um manifesto contra sonhos não realizados e um toque de despertar para pessoas que se esqueceram (ou que nunca conheceram) o prazer de viver. No entanto, ao mesmo tempo o roteiro nos apresenta uma questão ainda mais intrigante e que, de certa forma, se contrapõe à importância do indivíduo, o que não deixa de ser fascinante: ao estabelecer a eternidade da Arte e a efemeridade do Homem, Mais Estranho que a Ficção parece questionar o que é mais importante – um tema abordado tangencialmente pelo recente Filhos da Esperança. Se a morte de Harold Crick resultasse na criação de uma obra-prima que pudesse inspirar a Humanidade por séculos e séculos, não seria um sacrifício válido? Afinal, já que milhares de vidas são jogadas fora em guerras e outras tragédias sociais, como alguém poderia se negar a morrer em prol de algo realmente maior ou, digamos, espiritualmente mais elevado? É claro que, como indivíduos, queremos viver pela maior quantidade de tempo possível, mas o fato é que todos morreremos eventualmente – se pudéssemos escolher, assim, uma morte “lírica e significativa” (como descreve o personagem de Hoffman), não seria esta uma oportunidade a ser aproveitada?

E é aqui que sou obrigado a pedir que os leitores que ainda não assistiram a Mais Estranho que a Ficção retornem a este texto depois que o fizerem, já que uma análise completa do filme exige um comentário sobre o destino de Harold Crick. Portanto, vamos lá (último aviso!): ao constatar que a obra de Kay Eiffel só se tornaria completa com sua própria morte, Crick toma a decisão de permitir que isto aconteça, numa postura digna de uma alma repleta de poesia – e é comovente perceber que aquele homem tão apagado, racional e sem vida é capaz de compreender a necessidade do auto-sacrifício pela Arte (aliás, esta sua transformação representa a alma de Mais Estranho que a Ficção). Em contrapartida, fica claro que o roteirista Zach Helm, numa curiosa ironia do destino, colocou-se no mesmo dilema que sua personagem Kay Eiffel: seu afeto por Harold Crick não o deixa levar adiante o sacrifício que o próprio protagonista aceitara.

Infelizmente, esta fraqueza dos dois autores (o real e a fictícia) compromete a qualidade das duas obras (o filme e o livro-dentro-do-filme), já que nem sempre o desfecho mais satisfatório (leia-se: feliz) é o mais eficaz ou apropriado. O fato é que Harold deveria morrer – e por mais que o roteiro tente justificar sua salvação, o resultado decepciona por reconhecermos sua incompatibilidade com o restante da narrativa. Ao longo de Mais Estranho que a Ficção, lembrei-me várias vezes do roteirista Charlie Kaufman, cujos trabalhos certamente serviram de inspiração a Zach Helm. A diferença é que Kaufman não hesitaria em matar Harold Crick. Afinal, de que vale a felicidade efêmera de um personagem diante da importância de uma obra de Arte?

11 de Janeiro de 2007

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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