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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
27/01/2006 06/01/2006 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Duração do filme
164 minuto(s)

Munique
Munich

Dirigido por Steven Spielberg. Com: Eric Bana, Daniel Craig, Ciarán Hinds, Mathieu Kassovitz, Hanns Zischler, Ayelet Zorer, Geoffrey Rush, Gila Almagor, Michael Lonsdale, Mathieu Amalric, Lynn Cohen, Moritz Bleibtreu, Marie-Josié Croze.

Munique é o filme mais corajoso da carreira de Steven Spielberg. Se em Império do Sol, A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan ele contou histórias que, ambientadas durante a Segunda Guerra Mundial, nos forneciam personagens e situações com as quais podíamos nos identificar facilmente, desta vez o cineasta faz questão de pisar em campo minado, fugindo de uma postura moral claramente preta ou branca e mergulhando na área acinzentada que, afinal de contas, abrange a maior parte dos conflitos e atitudes da raça humana. Seria muito fácil para Spielberg, como `diretor judeu`, assinar embaixo de todas as ações de Israel, mas, para seu crédito, não é isto que interessa a ele, mas sim retratar a situação extremamente complexa envolvendo a eterna luta entre israelenses e árabes pela ocupação da Palestina. Com isso, o cineasta cria um trabalho moralmente denso e politicamente ambicioso que, ao final de suas quase três horas de duração, faz com que o espectador saia da sala angustiado e emocionalmente esgotado. Exatamente como deveria ser, considerando-se o assunto abordado.

Roteirizado por Eric Roth e pelo dramaturgo Tony Kushner a partir de um livro de George Jonas, Munique tem início na madrugada de 5 de setembro de 1972, quando oito integrantes do grupo palestino Setembro Negro invadiram a concentração olímpica, durante os jogos sediados na Alemanha, e tomaram nove atletas judeus como reféns (outros dois morreram durante o ataque). Confuso e sem saber como agir, o governo alemão tentou preparar uma armadilha para os terroristas e fracassou terrivelmente, resultando na morte de todos os atletas e de cinco dos palestinos. Sentindo necessidade de revidar o golpe a fim de não demonstrar uma fraqueza perigosa, a então Primeira-Ministra de Israel, Golda Meir, autorizou a organização de vários grupos clandestinos (mas apoiados pelo Mossad, o serviço secreto israelense) que passaram a eliminar alvos supostamente ligados ao massacre de Munique. E são justamente as ações de um destes grupos que acompanhamos no filme.

Abandonando qualquer tentativa de suavizar a narrativa para facilitar a experiência para a platéia, Spielberg adota, ao lado de seu diretor de fotografia habitual, Janusz Kaminski, uma estética `anos 70`, abusando dos grãos, da dessaturação das cores e dos zooms. Sem fazer concessões, o diretor recria a invasão do Setembro Negro e a posterior troca de tiros com a polícia alemã de maneira tensa e extremamente bem montada, alternando sua encenação com imagens de arquivo perfeitamente sincronizadas com a ação. Violenta e gráfica, a seqüência deixa claro, desde o início, que o cineasta que `higienizou` Guerra dos Mundos não fará o mesmo em Munique - que, inclusive, traz um assassinato particularmente chocante por sua frieza (você reconhecerá a cena quando vi-la). De fato, o único momento em que o Spielberg de meia-idade (o mesmo que apagou as espingardas de E.T.) dá sinais de vida é aquele que também é um dos mais tensos da narrativa – mas, infelizmente, o diretor se acovarda no último momento, evitando retratar um incidente que poderia servir de impulso para uma série de questionamentos morais por parte dos protagonistas.

Por outro lado, esta pequena covardia merece perdão, já que eventualmente o filme chega a abordar tais questionamentos por outras vias, quando Avner (Bana), o líder do grupo, começa a indagar se, de fato, os alvos perseguidos estavam ligados ao incidente em Munique. Enfrentando dificuldades naturais para assumir sua nova condição de assassino, Avner mostra-se claramente nervoso ao apontar sua arma para uma vítima – e sua insistência em perguntar se esta sabe porque ele está ali é uma maneira desesperada de buscar legitimidade moral para o que irá fazer. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que demonstram certa desconfiança com relação às provas oferecidas pelo Mossad, os assassinos começam a encarar o ofício de maneira mais segura, chegando a abandonar a lista original quando encontram indícios de que novos alvos podem ser interessantes do ponto de vista político – uma casualidade frente à morte que culmina até mesmo em um crime por motivos pessoais.

E esta é, aliás, uma das principais discussões propostas por Munique: a partir de que instante uma ação com `legitimidade` moral passa a ser condenável? Ou não há violência que seja justificável? E mais: se cada golpe desferido pelo inimigo for retribuído em intensidade maior, como este círculo vicioso poderá chegar ao fim? Aliás, não é verdade que Israel já bombardeara seus inimigos, causando a morte até mesmo de civis inocentes? Neste sentido, o massacre de Munique não poderia ser encarado já como uma retaliação? A verdade é que isso não interessa: a partir do momento em que o ciclo de violência tem início (algo que um personagem compara a um `diálogo`), torna-se quase impossível interrompê-lo – e é por isso que o título do filme surge em meio aos nomes de dezenas de outras cidades: em Munique ocorreu apenas um capítulo de uma história que já se passou (e ainda vai se passar) em várias localizações – e o plano final do filme é perfeito ao exibir um símbolo indiscutível da continuidade desta brutalidade. Seguindo esta lógica, o veterano montador Michael Kahn faz um belíssimo trabalho ao intercalar as imagens dos atletas judeus mortos com fotos dos futuros alvos do Mossad, estabelecendo uma equivalência de papéis entre eles: independente do que fizeram, todos serão vítimas de atentados terroristas.

Mas se há uma equivalência entre as vítimas do Setembro Negro e as do Mossad, o mesmo se aplica às duas organizações: quando vemos Avner na varanda de um hotel, esperando pelo momento de sinalizar o disparo de uma bomba, torna-se impossível não lembrar da imagem similar do terrorista na concentração olímpica. Da mesma forma, Spielberg encena um ataque do Mossad em Beirute de maneira parecida à introdução do filme, quando o Setembro Negro realizou seu ataque: em ambos os casos, vemos homens camuflados invadindo prédios com o propósito final de matar seus ocupantes. Além disso, há um brilhantismo inegável na decisão dos realizadores em incluir flashbacks do massacre de Munique ao longo de toda a projeção: inicialmente, as cenas parecem servir como impulso para que Avner continue a se lembrar do propósito nobre de sua missão; aos poucos, porém, as imagens se tornam tristes reflexos das barbaridades que o próprio protagonista está cometendo – e quando finalmente vemos um dos militantes palestinos com a face coberta de maquiagem preta, somos levados a confundi-lo com o próprio Avner, que acabara de usar disfarce semelhante. Assim, ao projetar o herói na pele de um dos terroristas, Spielberg transmite sua mensagem de modo inteligente e sutil.

Porém, Munique não é apenas um filme de idéias; do ponto de vista narrativo, o longa também funciona maravilhosamente bem. Ao encenar os ataques organizados pelo grupo de Avner, Spielberg mantém o espectador constantemente tenso através de recursos diferentes: às vezes, ficamos nervosos porque não sabemos o que os `heróis` farão; em outros, porque, ao contrário, sabemos de algo que eles não sabem. Como se não bastasse, o roteiro estabelece um clima conspiratório realmente eficaz: quem, por exemplo, está por trás das informações fornecidas ao protagonista através de seus contatos franceses (os ótimos Mathieu Amalric, de Reis e Rainha, e Michael Lonsdale, de O Dia do Chacal)? A CIA? O próprio Mossad? Ou ambos (a CIA informando o Mossad, que, por sua vez, repassa as informações para os franceses)? E quem contratou a assassina holandesa? E os americanos bêbados na rua, seriam agentes da CIA? O filme não se preocupa em responder estas questões, e nem deveria – na vida real, ninguém jamais seria capaz de esclarecê-las, tamanha a complexidade (e a promiscuidade) nas relações entre agências, agentes e governos.

Mas o elemento mais nobre de Munique é seu esforço em tentar retratar as motivações dos ativistas palestinos: em vez de tratá-los como terroristas frios e cruéis, Spielberg inclui uma cena que, apesar de implausível, serve para colocar Avner frente a frente com um integrante da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Na bela conversa que se segue, podemos compreender como a busca por um lar é incentivo suficiente para manter esta guerra sangrenta por décadas e décadas – e como, no fundo, reflete a própria trajetória pós-diáspora dos judeus até a fundação de Israel.

Protagonizado por um homem em conflito e cuja psique é destruída pela experiência de passar vários anos planejando a morte de outros seres humanos, Munique é um filme emocionalmente insatisfatório, mesmo frustrante. Mas, ao contrário do que podemos pensar inicialmente, esta frustração não é provocada porque não conseguimos estabelecer vínculos emocionais com o que está sendo narrado na tela, mas sim porque, em vez de nos identificarmos com o herói, de nos satisfazermos (ou não) com seus feitos, ficamos atordoados, angustiados e desesperançosos com relação ao mundo e à possível resolução de seus conflitos estúpidos e sangrentos.

Em outras palavras: o longa desperta, sim, vários sentimentos. A diferença é que estes não são os que normalmente poderíamos esperar como conseqüência de um filme de Steven Spielberg.
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27 de Janeiro de 2006

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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