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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
06/03/2009 01/01/1970 4 / 5 4 / 5
Distribuidora

Watchmen - O Filme
Watchmen

Dirigido por Zack Snyder. Com: Jackie Earle Haley, Billy Crudup, Patrick Wilson, Malin Akerman, Matthew Goode, Jeffrey Dean Morgan, Carla Gugino, Stephen McHattie, Laura Mennell, Rob LaBelle, Robert Wisden.

 

Quando os críticos literários da revista “Time” publicaram uma lista dos 100 melhores livros em língua inglesa escritos desde 1923 (ano de lançamento da publicação), Watchmen foi a única graphic novel a romper a velha barreira que mantém os quadrinhos numa espécie de “subcategoria”, passando a integrar a relação para a surpresa até mesmo de seus fãs. A verdade, porém, é que a força da obra escrita por Alan Moore e ilustrada por Dave Gibbons é inegável: ambientada em 1985 numa realidade alternativa na qual os Estados Unidos venceram a guerra do Vietnã e Nixon encontra-se em sua quinta gestão como Presidente, Watchmen traz uma narrativa mergulhada na paranóia da Guerra Fria, já que um conflito nuclear com a União Soviética parece praticamente inevitável. É neste contexto que conhecemos os super-heróis do título, um grupo de homens e mulheres comuns que decidiram usar máscaras e capas para combater o crime, mas que acabaram sendo jogados na ilegalidade por um ato de Nixon, que queria desestimular o surgimento de novos “vigilantes”. No entanto, quando o Comediante (Morgan), um dos mais antigos integrantes do grupo, é assassinado, o violento Rorschach (Haley) decide investigar o crime por suspeitar que alguém está interessado em matar os super-heróis aposentados.

 

Abrangendo doze volumes, a obra de Moore (que não quis ser creditado no filme por abominar Hollywood) e Gibbons certamente apresentava obstáculos complexos para qualquer interessado em adaptá-la para o Cinema – e a boa notícia é que, apesar de alguns problemas aparentemente incontornáveis, os roteiristas David Hayter (X-Men e X-Men 2) e Alex Tse (em sua estréia na função) conseguiram conceber uma estrutura relativamente eficaz que abrangesse os principais elementos da trama original sem sacrificar excessivamente o ritmo da narrativa. E embora esteja longe de ser o “visionário” apregoado pelo marketing da Warner (que também tentou vender seu longa anterior como “revolucionário”), o diretor Zack Snyder se revela suficientemente inteligente para mais uma vez adaptar seu estilo às necessidades da história que irá contar, abandonando o excesso de estilização de 300 por uma abordagem mais realista (e vale lembrar que ele também comandou o ótimo Madrugada dos Mortos, que em nada se parece com seus projetos seguintes).

 

Este tom mais sóbrio empregado por Snyder em Watchmen é fundamental para a eficácia da história, já que uma lógica fantasiosa como a de 300 inevitavelmente impediria que a realidade decadente e depressiva do mundo concebido por Moore e Gibbons se tornasse palpável na tela. Neste sentido, aliás, o brilhante design de produção de Alex McDowell impressiona por respeitar as cores básicas e os cenários da graphic novel ao mesmo tempo em que confere a estes uma solidez característica, trazendo-os para o mundo real. Da mesma forma, os matte paintings (cenários de fundo) digitais da Nova York vista no longa constantemente impressionam por combinarem elementos históricos, como as Torres Gêmeas, e detalhes que indicam estarmos em um mundo alternativo, como zeppelins ou construções menos acuradas.

 

Esta lógica se aplica, também, aos figurinos de Michael Wilkinson, que flertam com o universo dos quadrinhos através de detalhes como o terno roxo de Ozymandias (Goode) ao mesmo tempo em que são usados como reflexo da personalidade de seus donos, como a armação dos óculos de Dan Dreiberg (Wilson), que é alterada para um modelo mais jovial quando o personagem se torna mais confiante. De maneira similar, Zack Snyder traz figuras reais para o filme a fim de ancorar a narrativa num fascinante limbo entre a ficção e o factual – e, assim, vemos versões de Truman Capote, Lee Iacocca, Annie Leibovitz, Henry Kissinger e Richard Nixon contracenando com as criações de Alan Moore (algo que ocorria em menor grau na graphic novel). Por outro lado, Snyder faz questão de salientar a natureza ficcional destas interações ao transformar estes personagens em pequenas caricaturas de suas versões reais – algo que chega ao extremo na pesada maquiagem dicktracyana utilizada para retratar Nixon, que surge com um nariz imenso que quase o converte numa espécie de Cyrano De Bergerac.

 

Snyder, aliás, se mostra bem mais contido em Watchmen do que em 300: evitando o excesso de planos em câmera lenta (embora estes existam), o diretor exibe o mesmo apuro estético que tornou seu experimento espartano tão fascinante em seus aspectos plásticos – e seu olhar para a composição de quadros e movimentos de câmera é admirável, ainda que, aqui e ali, ele exagere ao criar planos nos quais sua câmera atravessa desnecessariamente grades e outros elementos do cenário, como se quisesse apenas exibir seu virtuosismo técnico (da mesma maneira, a “ejaculação de fogo” é de uma triste obviedade e sinal de uma certa imaturidade de Snyder como diretor). Em contrapartida, ainda que homenageie os desenhos de Dave Gibbons ao recriar vários quadros da graphic novel, o cineasta surpreende ao incluir detalhes que mereciam ter figurado no original, como a imensa mancha de sangue sobre a neve que remete diretamente aos padrões do teste de Rorschach (que, não por acaso, inspirou o nome do personagem de Jackie Earle Haley).

 

Infelizmente, o diretor não exibe o mesmo discernimento ao trazer vários dos mascarados desafiando a gravidade em diversos momentos, já que isto trai o conceito de Moore, que intrigava justamente por envolver pessoas normais tentando agir como super-heróis (com a exceção óbvia do Dr. Manhattan, sobre o qual falarei em segundos). Porém, talvez o maior tropeço de Snyder como realizador resida em sua péssima seleção musical, já que chega a ser constrangedor ouvir canções como “Hallelujah” (que já deveria ter sido aposentada depois de Shrek, mas só se tornou mais freqüente no cinema) e “99 Luftballons” adocicando seqüências românticas – e o uso da belíssima “The Sound of Silence” durante o enterro do Comediante é absurdamente inapropriada em função do caráter do próprio personagem. Já a “Cavalgada das Valquírias”, de Wagner, não incomoda tanto por ser uma divertida (embora, mais uma vez, óbvia) referência a Apocalypse Now, ao passo que “The Times They Are A-Changing” revela-se a segunda melhor escolha no que diz respeito às músicas, ficando atrás apenas da brilhante utilização da trilha instrumental criada por Philip Glass (para Koyaanisqatsi) na cena ambientada em Marte.

 

Enquanto isso, do ponto de vista estrutural, Watchmen merece aplausos por condensar os 12 volumes da graphic novel em pouco mais de duas horas e meia de projeção, mantendo os principais elementos da extremamente complexa trama concebida por Moore. Ainda assim, confesso não saber se os “não-iniciados” conseguirão acompanhá-la com facilidade em uma primeira visita ao filme (que, de todo modo, merece ser visto mais de uma vez). Incluindo uma série de flashbacks em pontos-chave da narrativa (como o enterro do Comediante e o teste de Rorschach feito com... Rorschach), Hayter e Tse contornaram as principais armadilhas que uma adaptação como esta apresenta aos roteiristas, mas ainda assim falharam ao não evitar que, aqui e ali, a narrativa perdesse o ritmo ou mesmo soasse episódica. As seqüências em Marte, especialmente, soam quase como verdadeiros interlúdios, interrompendo o fluxo da história para que possamos acompanhar as divagações existencialistas do Dr. Manhattan – que, ainda assim, enriquecem inegavelmente o filme. Aliás, aplausos também devem ser dirigidos à corajosa decisão de alterar elementos importantes no terceiro ato da trama, encontrando uma solução que (heresia?) considerei mais orgânica e intrigante do que aquela vista no original. Para finalizar, Snyder exibiu um senso de humor sutil e carregado de ironia ao incluir, entre os vários monitores acompanhados por Ozymandias, uma cena de Código de Segurança, que, dirigido por Sidney Lumet em 1964, trazia um desfecho bastante similar ao de Watchmen graphic novel e filme.

 

Destacando-se entre seus colegas de elenco, Jackie Earle Haley continua a resgatar sua carreira depois da belíssima atuação em Pecados Íntimos, criando um Rorschach tão instável e perigoso quanto aquele concebido por Moore – e mesmo sua voz enrouquecida, que poderia surgir como uma imitação de Christian Bale como Batman, ganha contornos próprios em função da psicopatia clara do personagem (que, mesmo assim, surge como a grande figura trágica do projeto). Perturbado dentro e fora de sua máscara, Rorschach segue um código de conduta surpreendentemente rigoroso – e sua última cena é dolorosa justamente por percebermos como esta sua ética distorcida pode estar certa e errada ao mesmo tempo, numa contradição que o sujeito simplesmente não consegue assimilar. Enquanto isso, Jeffrey Dean Morgan encarna o Comediante como um retrato claro de virilidade e patriotismo distorcidos, interpretando-o com um cinismo cortante que contrasta direta e apropriadamente com a postura centrada e distanciada do Dr. Manhattan, que Billy Crudup compõe com um tom de voz sempre suave que revela, ao fundo, a tristeza subjacente de um personagem que perdeu a capacidade de se relacionar (ou mesmo de se identificar) com a Humanidade – e vale apontar, também, que a equipe de efeitos visuais faz um trabalho magnífico na concepção da criatura, que parece exibir inúmeras reações ocorrendo constantemente sob a pele (o que, de certa maneira, reflete a própria essência do Dr. Manhattan, cuja percepção da realidade abarca tempos e espaços distintos).

 

Já Patrick Wilson, um ator competente, falha por não se entregar totalmente ao Coruja, já que, embora os figurinos se esforcem para mostrá-lo envelhecido e fora de forma, ele surge com o corpo musculoso assim que tira a roupa, transformando a decadência do personagem numa fraude. E se Carla Gugino, outra atriz que admiro, mal tem tempo de deixar sua marca como a Espectral I, a belíssima Malin Akerman, como sua filha e substituta, peca pela falta de expressividade, reagindo com absoluta indiferença a qualquer coisa que surja à sua frente (ela não exibe espanto nem mesmo ao chegar a Marte!). Fechando o elenco principal, Matthew Goode cria um Ozymandias aceitável, mas as principais virtudes de seu personagem encontram-se mesmo em suas complexas motivações, não na performance do ator.

 

Bem mais violento do ponto de vista gráfico do que a obra original, Watchmen é um filme que, apesar dos problemas, triunfa por abraçar a complexidade da visão de Moore, não hesitando nem mesmo em fazer pequenas pausas para discutir a existência ou não de Deus ou ao permitir que o Dr. Manhattan exprima seu interesse em talvez criar seus próprios humanos - e o fato destas discussões filosóficas que revelam uma admirável ambição intelectual estarem presentes na graphic novel não tira o mérito de Snyder e sua equipe, que, ao mantê-las, revelam não só coragem diante das exigências comerciais de uma superprodução, mas também confiança na inteligência e na maturidade de seu público. Numa época em que Hollywood vem tratando cada vez mais os espectadores como verdadeiros débeis mentais (não totalmente sem razão, como infelizmente comprovam as bilheterias), devemos ser gratos por finalmente sermos tratados como adultos – e, para desespero dos preconceituosos de plantão, justamente por um filme de super-heróis.

 

05 de Março de 2009

 

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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