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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
10/09/2000 30/11/2002 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
104 minuto(s)

O Auto da Compadecida
O Auto da Compadecida

Dirigido por Guel Arraes. Com: Mattheus Nachtergaele, Selton Mello, Rogério Cardoso, Lima Duarte, Diogo Vilela, Denise Fraga, Paulo Goulart, Luis Mello, Marco Nanini, Maurício Gonçalves e Fernanda Montenegro.

Sempre fui fascinado por O Auto da Compadecida, um dos mais brilhantes textos já produzidos por um autor brasileiro. Minto: um dos mais brilhantes textos já produzidos, e ponto. Na verdade, tenho a mais absoluta convicção de que, se tivesse sido escrito por um dramaturgo de língua inglesa, este auto logo se tornaria uma das narrativas mais encenadas (e filmadas) da história. Infelizmente, o preconceito e a limitação imposta por obras produzidas em português são grandes. Se não fosse assim, Suassuna seria nosso Shakespeare - e O Auto da Compadecida, seu Romeu e Julieta (apesar do tom farsesco ser mais facilmente comparável a Sonhos de uma Noite de Verão).


A trama gira em torno de uma dupla de pobre-coitados, João Grilo e Chicó, que é obrigada a fazer de tudo para conseguir ganhar seu sustento. Para sorte de Chicó, Grilo é um sertanejo extremamente inteligente (pelo menos, no que diz respeito a conseguir o que precisa) e possuidor de uma presença de espírito inigualável. Para sorte de Grilo, Chicó é um sertanejo ingênuo, mas confiante - e o mais importante: está sempre disposto (mesmo sob protestos) a participar dos esquemas mirabolantes armados pelo amigo. A verdade é que não há praticamente nenhum objetivo que esteja fora do alcance de João Grilo: de padre a major, ele é capaz de enganar qualquer um.

Assim, quando o Padeiro da pequena cidade de Taperoá resolve contratar `dois ajudantes pelo preço de um`, Grilo não leva muito tempo para convencê-lo a contratar `quatro pelo preço de dois`. Pouco tempo depois, é a vez do Padre ser enganado: agora, o maniqueísta nordestino arranja uma forma de levá-lo a benzer a cachorrinha de sua patroa - e até mesmo a enterrá-la `em latim`. No entanto, as coisas começam a se complicar um pouco mais quando João Grilo resolve arrumar uma maneira de levar o amigo Chicó a se casar com a bela Rosinha, filha de um autoritário e violento Major. Some-se, a isso, um iminente ataque de cangaceiros, e o cenário está montado.

O texto de Ariano Suassuna atinge tantos níveis de interpretação que torna-se verdadeiramente impossível cobrir todas as nuanças de sua obra em um único artigo. O grupo de personagens criado por ele não é apenas maravilhosamente divertido; é, também, hábil ao representar praticamente todos os principais grupos sociais de um país notório por suas contradições neste âmbito: temos a pequena burguesia (o Padeiro e sua esposa; o clero (Padre João e Bispo; o poder político (o Major; e, é claro, a população predominantemente pobre e servil (João Grilo e Chicó). O Auto da Compadecida não é, portanto, apenas uma farsa divertida, mas um grande retrato crítico de nossa sociedade e das hipócritas relações estabelecidas entre seus membros (onde há uma grande diferença entre benzer a cachorrinha de um padeiro e a de um major, por exemplo).

Felizmente, a adaptação escrita por Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão é hábil ao captar a `alma` da peça de Suassuna - e mesmo os cortes feitos na trama (senti falta do gato que descomia moedas) são corretos e não comprometem o espetáculo. É claro que, sendo montado a partir de uma versão produzida para a televisão, o filme ocasionalmente demonstra sua origem na falta de enquadramentos interessantes (boa parte do segundo ato se resume a planos e contra-planos), mas a história flui de maneira tão gostosa que isso se torna um mero pecadilho.

Mattheus Nachtergaele e Selton Mello, como João Grilo e Chicó, estabelecem uma química irresistível, que nada deixa a dever às grandes duplas cômicas do cinema, como Stan Laurel e Oliver Hardy ou Oscarito e Grande Otelo. As composições individuais de Nachtergaele e Mello, aliás, são formidáveis: enquanto este último cria um tipo de fala mansa, quase preguiçosa, o primeiro nos oferece um Grilo de olhos vesgos e ar de tonto (algo que realça ainda mais a inteligência do personagem ao torná-lo aparentemente `inofensivo`). Marco Nanini, por sua vez, desaparece sob a pele do violento cangaceiro Severino de Aracaju, numa grande composição. Na verdade, sou obrigado a ressaltar a homogeneidade do elenco, já que todos têm a oportunidade de se destacar em algum momento da trama (o capanga vivido por Enrique Diaz é um bom exemplo).

Infelizmente, a produção foi negligente ao se esquecer de que alguns defeitos menores, invisíveis na pequena tela de televisão, são escancarados na imensa tela do cinema. Assim, a maquiagem do Diabo interpretado por Luis Mello, aceitável para uma série de TV, causa má impressão na versão cinematográfica - e sua voz `distorcida`, idem. Para sorte de Arraes, no entanto, tais equívocos, que provocariam constrangimento em outras obras, acabam sendo absorvidos pelo tom teatral do texto de Suassuna - o que evita o vexame. Mais difícil de perdoar são os enquadramentos falhos, que acabam cortando a cabeça dos atores em várias cenas.

Seja como for, é realmente uma pena que O Auto da Compadecida não possa representar o Brasil no Oscar 2001, já que a Academia proíbe a inscrição de filmes que tenham sido exibidos na televisão antes de chegarem aos cinemas. De todo modo, creio que estaremos muito bem representados com Eu, Tu, Eles - mas devo confessar que, no fundo, eu gostaria de ver a colossal obra de Ariano Suassuna encantando americanos e ingleses e mostrando a estes que nosso país também tem seu Shakespeare.

1o. de Outubro de 2000

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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