Seja bem-vindx!
Acessar - Registrar

Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
22/10/2015 16/10/2015 3 / 5 4 / 5
Distribuidora
Fox
Duração do filme
141 minuto(s)

Ponte dos Espiões
Bridge of Spies

Dirigido por Steven Spielberg. Roteiro de Matt Charman, Ethan Coen e Joel Coen. Com: Tom Hanks, Mark Rylance, Amy Ryan, Alan Alda, Austin Stowell, Jesse Plemons, Will Rogers, Nadja Bobyleva, Sebastian Koch, Peter McRobbie, Mikhail Goreyov e Burghart Klauβner.

Steven Spielberg nunca foi um cineasta conhecido por sua sutileza ou pela hesitação em se entregar ao sentimentalismo. Porém, nos últimos anos, ele parece estar se tornando pior: se antes era capaz de compreender a importância de momentos de introspecção ou a força que podia vir apenas de uma mudança de expressão na face de um ator (como no soberbo Munique), agora ele parece encarar toda cena dramática como uma oportunidade de recriar a cafonice do “este broche poderia ter salvado mais duas vidas” que quase arruinou o impactante A Lista de Schindler. O Spielberg contemporâneo é aquele que até entende que o assassinato de Lincoln é trágico, mas que ainda assim sente a necessidade de incluir um plano que traz o filho do presidente abraçando colunas de madeira.


A ironia é que o diretor parece não confiar no próprio – e inquestionável – talento, pois é um realizador capaz de ser brilhante e que sempre se cerca de profissionais fantásticos. Neste Ponte dos Espiões, por exemplo, Spielberg e sua equipe criam diversas sequências memoráveis que parecem apontar na direção de mais um pequeno clássico em sua filmografia, mas estas acabam sendo sabotadas por outras nas quais o cineasta se entrega ao impulso de berrar sentimentos e lições de moral.

Esta obviedade, diga-se de passagem, já começa nos letreiros iniciais, que resumem a Guerra Fria de maneira tão simplista que parecem ter sido incluídos sob a suposição de que a plateia é formada por imbecis (ou por pessoas que jamais ouviram falar do conflito que dominou o pós-guerra). A partir daí, o roteiro – baseado em uma história real, escrito por Matt Charman e retocado pelos irmãos Coen – se concentra nas ações do “coronel” Rudolf Abel (Rylance), que, morando em Nova York, é preso e acusado de atuar como espião soviético. Determinado a convencer a comunidade internacional de que o julgamento do sujeito será justo, o governo convoca o advogado James B. Donovan (Hanks), que, especializado em seguros, é praticamente obrigado a assumir a defesa do acusado. Para surpresa de todos, porém, Donovan leva a missão a sério, empenhando-se realmente em ajudar Abel e frustrando todos ao seu redor, incluindo sua esposa Mary (Ryan), seu chefe (Alda) e o restante do país, que passa a odiá-lo. No entanto, quando o piloto norte-americano Francis Gary Powers (Stowell) e o estudante Frederic Pryor (Rogers) são capturados por países além da Cortina de Ferro, é justamente Donovan quem recebe a incumbência de negociar uma troca de prisioneiros.

Abordando um mundo de espionagem distante do glamour e das aventuras de James Bond, o filme deixa claro, desde a primeira (e excelente) sequência, que os espiões vistos aqui são homens de meia idade, cansados e que, se enfiam a mão no bolso, não querem puxar uma arma, mas apenas um lenço para secar o nariz tomado pela gripe. Da mesma forma, o protagonista não é um sujeito vigoroso como Jason Bourne, um renegado como Harry Palmer ou mesmo um espião semi aposentado como George Smiley, mas um advogado que chega a rir, divertido, ao notar um agente da CIA queimando um papel após usá-lo para anotar um número de telefone. Neste aspecto, Donovan, habituado aos meandros da burocracia, encontra-se em seu ambiente ao lidar com os bastidores daquele universo e que substituem tiros e perseguições por jogos de poder e interesses políticos.

Fotografado por Janusz Kaminski (outro que detesta sutilezas, mas que aqui se sai melhor) como espaços dominados por sombras que refletem seus segredos, o longa é particularmente eficiente na frieza cinza que passa a cobrir a tela quando Donovan viaja à Alemanha Oriental, quando não só a situação frágil do país é retratada com uma paleta evocativa, mas o próprio clima gélido e desconfortável que atormenta o protagonista se torna palpável para o espectador. Além disso, Spielberg e Kaminski criam planos simbolicamente elegantes, como aquele que traz Abel e Donovan precisamente colocados em pequenas caixas de ferro situadas entre grades (espelhando a situação na qual ambos se encontram, em maior ou menor grau) e que, mais tarde, forma uma rima visual admirável com uma composição similar envolvendo Frederic Pryor.  

Contudo, o que mais me espantou em Ponte dos Espiões foi a coragem temática e política de Spielberg, que foge do ufanismo presente em tantas obras de Hollywood e critica pesadamente a postura norte-americana não só durante a Guerra Fria, mas, por associação, no mundo moderno: se a população dos Estados Unidos é vista como uma turba sedenta de sangue e vingança, o público que acompanha o sentenciamento do piloto na União Soviética se mostra bem mais razoável – e, não por acaso, os agentes da CIA são retratados de forma bem mais antipática do que o adorável (sim) espião soviético. Para completar, em nenhum momento o diretor tenta minimizar a imensa hipocrisia de seu governo, que sabe estar encenando um princípio de justiça que, na prática, nega ao réu.

Além disso, há, claro, Tom Hanks – que aqui completa sua transformação no Henry Fonda do Cinema contemporâneo ao encarnar a dignidade e a ética que frequentemente faltam aos seus pares. Íntegro, inteligente e determinado a transformar em fato a imparcialidade judicial que seus líderes querem apenas simular, o Donovan de Hanks é um homem que reconhece, em Abel, características que admiraria em um compatriota: não só a dedicação ao próprio país, mas a disposição de se sacrificar por este. Assim, não é difícil, para o público, ficar ao lado da dupla – uma posição que, é fundamental observar, só se torna realmente possível graças também à excelente e discreta performance de Mark Rylance, que retrata o “coronel” como um indivíduo de aparência frágil, mas cuja calma resignação projeta grandeza de caráter em vez de fraqueza moral.

E é aí que entram os frustrantes excessos de Spielberg, que, depois de conquistar o espectador graças ao bom trabalho feito no primeiro ato, mergulha o início do segundo em uma série de incidentes maniqueístas e artificiais que tentam ressaltar apenas o que já sabemos: que a cruzada de Donovan será mal vista por seu país. Assim, não basta, para o diretor, trazer uma ou duas pessoas reconhecendo o advogado em um vagão do metrô e lançando olhares hostis a este; não, para Spielberg, só funciona se todos os passageiros desviarem os olhos da foto de Donovan no jornal a fim de evidenciarem seu desprezo (e, claro, a única forma de completar o arco dramático é fazer o oposto no terceiro ato). De maneira similar, o cineasta faz questão de incluir uma cena que martele a mensagem ainda mais, enfocando o protagonista numa posição heroica diante de seu lar enquanto dezenas de figuras sombrias ameaçam sua família. E se a construção do Muro de Berlim surge na tela, não há como, para Spielberg, resistir à ideia de trazer também pessoas estendendo as mãos umas para as outras em lados opostos da parede enquanto a câmera percorre a extensão do obstáculo.

Mas não é só: substituindo John Williams depois de 19 parcerias consecutivas com o realizador, o compositor Thomas Newman parece mais interessado em emular o estilo do veterano músico do que em criar algo com identidade própria – e há momentos em Ponte dos Espiões nos quais os temas calcados em instrumentos de sopro parecem ter sido criados pelo próprio Williams. Isto não seria um problema por si só, mas aqui também falta... sim, adivinhou: sutileza. Quando vemos Francis Gary Powers em seu treinamento e, logo em seguida, Donovan entrando no tribunal, a música grandiosa força uma comparação entre o patriotismo de ambos – e sempre que um personagem faz um discurso minimamente “inspirador”, os inevitáveis travellings em direção ao ator são invariavelmente acompanhados por acordes que celebram o que está sendo dito.

Aliás, Spielberg tropeça até mesmo em algo que sempre soube fazer muitíssimo bem: construir tensão. Notem, por exemplo, a cena na qual a filha de Donovan encontra-se deitada no sofá enquanto vê televisão: a posição da câmera, que traz a janela da sala no centro da composição, indica a importância daquele elemento, o que é natural – mas a demora do plano ultrapassa o limite da sugestão e se torna apenas óbvio, permitindo não só que o espectador perceba que algo irá acontecer, mas se pergunte por que está demorando tanto, substituindo o choque pelo enfado. E se a rima visual envolvendo o olhar de Donovan para fora do metrô em dois momentos distintos poderia trazer alguma força, esta se perde quando Spielberg carrega na comparação ao trazer jovens saltando cercas exatamente como as pessoas saltavam o muro entre as Alemanhas.

Ainda assim, o diretor cria, com o montador Michael Kahn (outro velho parceiro), belos raccords como aquele que começa com um “All rise!” na sala do tribunal e se completa com crianças se erguendo para fazer o juramento à bandeira numa sala de aula ou aquele que usa um mapa cruzando a tela e se convertendo num jornal para saltar entre cenas. Além disso, o longa conta com um senso de humor surpreendente, sendo possível perceber a influência dos Coen em personagens que flertam com o absurdo (como o burocrata alemão Harald Ott) ou que despertam o riso apenas através da repetição de frases específicas.

Crítico também ao relembrar o terrorismo estatal sobre as crianças norte-americanas durante a Guerra Fria, que eram bombardeadas com imagens assustadoras que visavam principalmente reforçar seu ódio pelos comunistas (ou alguém realmente acha que esconder-se sob uma mesa evitaria a morte durante um apocalipse nuclear?), Ponte dos Espiões finalmente alcança o peso dramático que tanto busca ao contrastar a imagem da família de Donovan, que parece saída de um catálogo do american way of life, com a constatação à qual este finalmente chega ao perceber que, do outro lado do mundo, a guerra política que ele via com idealismo tem repercussões não imaginárias, mas reais e terríveis sobre inocentes que deram o azar de nascer como “inimigos” do país que supostamente detinha toda a virtude do planeta.

Uma virtude tão idealizada e, portanto, falsa como o julgamento de Rudolf Abel.

17 de Outubro de 2015

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

Para dar uma nota para este filme, você precisa estar logado!