Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
07/09/2017 | 06/04/2017 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Imovision | |||
Duração do filme | |||
104 minuto(s) |
Dirigido por Sebastián Lelio. Roteiro de Sebastián Lelio e Gonzalo Maza. Com: Daniela Vega, Francisco Reyes, Luis Gnecco, Aline Küppenheim, Nicolás Saavedra, Amparo Noguera.
A transexualidade não é um tema que o Cinema – especialmente o mainstream - costuma tratar de maneira séria. Quando vemos nas telas personagens que seguem identificações de gênero um pouco diferentes das “tradicionais”, normalmente são tratados como caricaturas e/ou fontes de humor simplistas. De vez em quando, Hollywood gera um Transamerica, um Meninos Não Choram ou um O Beijo da Mulher-Aranha, mas o mais comum é que mesmo as melhores obras adotem a questão como uma muleta narrativa – e quando em 1992 uma produção britânica (cujo título não mencionarei para evitar spoilers) ganhou destaque mundial, a transexualidade de uma personagem foi tratada como uma mera “reviravolta”. E o pior: a atriz que a interpretava foi indicada ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante.
Mas o tempo passa e, aos trancos e barrancos, a sociedade vai evoluindo e se tornando mais receptiva à diversidade, o que se reflete também em sua cultura – o que nos traz ao magistral chileno Uma Mulher Fantástica, que, mesmo reconhecendo a identidade de sua protagonista, Marina Vidal (interpretada de forma arrebatadora por Daniela Vega), não a define por esta. Sim, Marina enfrenta discriminação por não ter nascido com os genitais correspondentes à forma como se enxerga/sente, mas não é apenas em torno disso que o filme se constrói.
Os dez minutos iniciais da projeção, aliás, se concentram em ilustrar seu relacionamento com Orlando (Reyes), um homem bem mais velho com quem passou a morar recentemente – e logo fica patente como os dois estão apaixonados, felizes, têm química sexual e se respeitam profundamente. Certa noite, porém, Orlando sofre um derrame e as coisas se alteram radicalmente para sua jovem namorada, já que, de imediato, Marina é vista com suspeita pela equipe do hospital, como se fosse de alguma forma responsável pelo aneurisma rompido do companheiro.
Esta é, infelizmente, apenas a primeira das muitas indignidades sofridas pela moça a partir daí. De modo geral, contudo, Uma Mulher Fantástica cerca Marina de pessoas que tendem a tratá-la com respeito, desde sua patroa até sua irmã e o cunhado – e é isto que torna o filme tão brilhante, já que nos leva a observar a infinidade de microagressividades que tendem a passar despercebidas por quem as enxerga de fora. Atitudes como manifestar desconforto apenas pela presença do(a) outro(a) ou mesmo uma tendência a julgá-lo(a) seguindo critérios diferentes, como a detetive que, fazendo de tudo para mostrar-se compreensiva e sem preconceitos, diz todas as coisas certas, usa os gêneros adequados ao conversar, mas não consegue evitar manifestar uma desconfiança subjacente ao que diz.
Da mesma maneira, Marina constantemente se vê diante de pessoas que se preocupam mais em declarar sua tolerância do que em praticá-la – pessoas como a ex-esposa de Orlando, Sonia (Küppenheim), que, desculpando-se antecipadamente e afirmando que o comentário que fará não é fruto de preconceito, diz “não saber o que está vendo” ao olhar para a garota. (Que tal “um ser humano”?) Em outras palavras: Sonia é como todos aqueles que usam a expressão “não tenho preconceito, mas” e que frequentemente gritam para o mundo como “até têm amigos (assim ou assado)”, garantindo que o absurdo que expressarão a seguir (e sempre vem um absurdo associado a este tipo de comentário) será apenas uma observação inocente.
Não é à toa que Marina parece estar sempre de espírito armado ao conversar com novas pessoas, adotando os modos introspectivos como um escudo natural. Ao mesmo tempo, a atriz Daniela Vega é tão expressiva que, mesmo sem nada dizer, evoca simplesmente através do olhar como sua personagem registra as ofensas que ouve – e, em contrapartida, é comovente constatar sua sensibilidade ao fazer o possível e o impossível para respeitar o sofrimento de Sônia.
O mais admirável no trabalho do diretor Sebastián Lelio, porém, é o respeito que o próprio filme tem para com sua personagem-título. Quando alguém pergunta a Marina se esta já passou pelas cirurgias de redesignação sexual, por exemplo, recebe como resposta o que deveria ser óbvio: que aquela é uma questão particular e que a pergunta nem sequer deveria ter sido feita – algo que a obra honra ao jamais ceder à tentação de expor a genitália da protagonista (e de sua intérprete). Aliás, ao contrário: Uma Mulher Fantástica traz um plano que ficará entre os mais belos de 2017 ao enfocar Marina nua, deitada na cama e com um espelho cobrindo seu sexo e refletindo seu rosto, numa representação simbólica do que realmente importa ao tentar defini-la.
Ciente de como é fácil revoltar-se e condenar atos preconceituosos ostensivos e brutais, este lindo filme e sua fabulosa atriz escancaram o tipo de intolerância venenosa e cotidiana que soam quase inocentes e nascem mais da ignorância do que da maldade e do ódio. E nossa capacidade de identificá-las (ou não) diz muito sobre nós mesmos e a extensão daquela que deveria ser nossa maior virtude: o exercício da empatia.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Berlim 2017.
12 de Fevereiro de 2017
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