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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
01/01/1970 07/07/2017 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
92 minuto(s)

Sombras da Vida
A Ghost Story

Dirigido e roteirizado por David Lowery. Com: Casey Affleck, Rooney Mara, Sonia Acevedo, Carlos Bermudez, Yasmina Gutierrez, Kesha, Will Oldham, Rob Zabrecky.

A Ghost Story é um pesadelo protagonizado por um fantasma – e não por este representar uma ameaça, mas sim por viver a pior das dores: a de assistir ao seu amor partindo enquanto ele permanece preso ao que construíram. Não que seja preciso ter morrido para experimentá-la.


Escrito e dirigido por David Lowery, o filme nos apresenta ao casal formado por C. e M. (Affleck e Mara), que vivem em uma velha casa afastada da cidade e na qual levam uma existência tranquila, mesmo que pontuada por desentendimentos ocasionais - entre estes, a insistência da garota para que se mudem dali, já que nunca se sentiu confortável ao permanecer no mesmo lugar por muito tempo. Certo dia, porém, o sujeito morre em um acidente de carro a poucos metros do local e, depois de ter seu corpo reconhecido pela esposa no necrotério, subitamente se ergue e, coberto por um lençol branco, a segue de volta para casa, passando a observá-la, em silêncio e sem jamais ser visto, enquanto ela experimenta o luto e finalmente começa a se recuperar pouco a pouco.

Rodado pelo diretor de fotografia Andrew Droz Palermo em uma razão de aspecto reduzida que, remetendo ao 8mm, sugere um filme caseiro, um íntimo registro doméstico, A Ghost Story ainda provoca no espectador uma sensação intensa de claustrofobia ressaltada também pelos longos planos estáticos, pela música opressiva e angustiante de Daniel Hart e pelo ritmo contemplativo da montagem do próprio Lowery, que adota duas estratégias contrastantes (e impecáveis) para evocar a passagem do tempo real e a maneira particular com que esta é experimentada pelo protagonista: através dos fades, fica claro como estamos testemunhando a passagem de anos (e mesmo décadas), ao passo que outras elipses mais súbitas demonstram como, para C., o templo flui de forma diferente, saltando dias, meses ou anos em um simples corte.

Do mesmo modo, o desenho de som frequentemente nos mergulha na subjetividade dos personagens, revelando a batida acelerada do coração de M. ou a tristeza sufocante que domina sua casa quando, ao abrir a porta da frente, permite que escutemos os sons alegres de crianças e pássaros no mundo exterior – e que são instantaneamente calados quando esta volta a se fechar. Aliás, provavelmente o elemento sonoro mais importante do longa seja... sua ausência, já que o silêncio que toma conta da narrativa durante boa parte da projeção é um lembrete constante da melancolia daquelas pessoas (vivas ou mortas). Além disso, o ruído recorrente do raspar de parede acaba se tornando uma rima sonora fundamental do filme, transformando-se num símbolo da solidão e da necessidade de pertencimento daquele espírito.

Aliás, o design do fantasma é um elemento essencial do filme, obviamente – e a decisão de retratá-lo da forma clássica, como um espectro sempre coberto por um lençol com buracos rasgados no lugar dos olhos, confere a C. um aspecto ao mesmo tempo bizarro e infantil que, ressaltado pelas leves saliências que sugerem sobrancelhas arqueadas em constante tristeza, o converte numa criatura capaz de inspirar imediata simpatia no espectador. Além disso, a absoluta falta de expressão facilita o processo do público de projetar-se no personagem, aumentando a identificação com sua situação.

Porém, se C. é o protagonista inquestionável de A Ghost Story, a performance mais importante e tocante da narrativa é oferecida por Rooney Mara, que retrata a dor de M. com uma sensibilidade ímpar – e o filme traz um dos momentos mais memoráveis do ano ao acompanhá-la, em uma longa cena que inclui um único corte, enquanto devora uma torta deixada por uma amiga preocupada com seu bem-estar, transformando uma ação aparentemente prosaica em um retrato da dor, da raiva, da frustração e do desespero de uma mulher que subitamente perde o companheiro de forma brutal. Já Casey Affleck (ou seja lá quem ficava sob o lençol durante as filmagens) adota uma postura rígida e modos vagarosos que realçam a situação de impotência do fantasma diante da passagem do tempo e seu efeito sobre a ex-companheira, que inevitavelmente segue adiante – e se esta obra conta uma história de terror, este terror reside na figura trágica do espectro que não consegue abandonar aquela casa, jamais é visto ou ouvido e é forçado apenas a observar a amada enquanto esta supera sua perda ou ao menos se torna capaz de torná-la contida.

Ao mesmo tempo, aquele espírito funciona como um símbolo do peso representado pelas memórias deixadas por quem parte e os sentimentos torturantes que estas provocam em quem ficou – pois, de certo modo, todos já estivemos na situação do espectro que se descobre substituível, esquecível, parte do passado – e, da mesma maneira, não raro aqueles ou aquelas que perdemos seguem como feridas abertas que insistem em arder quando já nem conseguimos lembrar exatamente do que tanto nos encantava em quem as produziu. Isto é ilustrado, por exemplo, na cena em que C. encontra uma outra aparição que lhe diz “Estou esperando alguém” e, ao ser indagada sobre quem seria este alguém, oferece uma resposta dolorosa e reveladora: “Não me lembro”.

Comentando também o compreensível (e frequentemente fracassado) impulso humano de deixar um legado que sobreviva ao curto tempo que passamos sobre o planeta, A Ghost Story é um filme profundamente triste e sensível sobre um indivíduo que se transforma na própria assombração e que, como tantos de nós já nos sentimos em um momento ou outro (ou em muitos), aos poucos se converte num pedaço invisível de uma casa vazia.

22 de Novembro de 2017

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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