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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
08/02/2018 20/10/2017 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Diamond Films
Duração do filme
121 minuto(s)

O Sacrifício do Cervo Sagrado
The Killing of a Sacred Deer

Dirigido por Yorgos Lanthimos. Roteiro de Yorgos Lanthimos e Efthymis Filippou. Com: Colin Farrell, Nicole Kidman, Barry Keoghan, Raffey Cassidy, Sunny Suljic, Bill Camp e Alicia Silverstone.

O grego Yorgos Lanthimos não tem qualquer problema com o desconforto alheio. Aliás, considerando as reações que ele se esforçou para provocar no espectador com seus ótimos Dente Canino e O Lagosta, assistir a um filme do cineasta é quase uma garantia de duas horas movendo-se na poltrona para apaziguar a inquietação crescente – e é exatamente isto que temos em seu novo O Sacrifício do Cervo Sagrado. O fascinante no Cinema de Lanthimos, porém, é que ele não cria este tipo de narrativa gratuitamente, apenas pelo prazer do choque, mas sim para dar vazão à sua visão claramente autoral, que conta com uma lógica sólida, mesmo que nem sempre facilmente compreendida (e julgando o número de críticos que deixaram a sessão do longa no Festival de Cannes – especialmente depois de um incidente específico que todos que virem a obra reconhecerão -, há muitos profissionais reclamando da mesmice do cinema contemporâneo, mas sem estômago para ter sua queixa atendida).


Abrindo a projeção com uma música operática, de tons trágicos, sobre a tela completamente escura, o longa já começa a construir sua atmosfera lúgubre a partir do primeiro segundo, cortando a seguir para um coração exposto durante uma cirurgia cardíaca – e é o cirurgião Steven Murphy (Farrell) que iremos acompanhar a partir deste instante. Barbudo e com modos secos, o médico se encontra com o adolescente Martin (Keoghan), filho de um ex-paciente e com quem parece manter algum tipo de amizade. As coisas começam a mudar, no entanto, quando o caçula de Steven, Bob (Suljic) subitamente perde o movimento das pernas, sendo submetido a todo tipo de exame sem que um diagnóstico seja alcançado. À medida que o garoto piora, a filha mais velha do protagonista, Kim (Cassidy), também começa a adoecer, provocando o desespero de sua mãe, Anna (Kidman).

Seguindo um padrão já estabelecido em seus filmes anteriores, Lanthimos leva seus atores a recitarem suas falas em tons baixos e sem quaisquer inflexões, como se houvessem se condicionado a eliminar o sentimento de suas vozes. Mais do que isso: é como se todos naquele universo exibissem algum grau de autismo, já que parecem não compreender muito bem como responder uns aos outros, criando interações rígidas e durante as quais há sempre um incômodo subjacente, sendo surpreendente e divertido, para o espectador (mas não para aquelas pessoas), quando durante uma festa Steven casualmente conta a um colega como sua filha acabou de menstruar pela primeira vez.

Não é que os personagens não sintam, pois sentem; apenas não veem necessidade de expressar estes sentimentos em suas conversas. Aliás, é notável como Farrell e Kidman levam o público a perceber o sofrimento do casal Murphy mesmo com seus discursos monocórdicos, evocando uma angústia crescente a partir de seus olhares ou pequenas quebras nos padrões de seus diálogos. Enquanto isso, o jovem Barry Keoghan cria uma figura assustadora em sua impassividade, projetando um ar de ameaça palpável sem jamais erguer a voz ou demonstrar nervosismo.

A estratégia visual de Lanthimos e do diretor de fotografia Thimios Bakatakis colabora para a eficácia deste estranho universo, obviamente, sendo verdadeiramente brilhante o uso constante de grandes angulares que não só deformam os cenários em suas laterais como os expandem em sua profundidade, deixando os personagens ainda menores e mais frágeis (e o fato de normalmente estarem deslocados para um quadrante inferior do plano é outro recurso de linguagem fabuloso). Além disso, ao manter a câmera se movimentando constantemente em lentos travellings por todos os ambientes, os cineastas sugerem para o público de forma sutil que algo ameaçador está sempre prestes a acontecer, criando ecos inconfundíveis da abordagem de Kubrick em O Iluminado (o que é sublinhado também pelos longos corredores e pela trilha sonora).

Abraçando de vez a vibração funesta em seu sufocante ato final, O Sacrifício do Cervo Sagrado curiosamente se torna mais pessimista à medida que seus personagens demonstram uma vontade cada vez maior de viver – e mesmo ofertas de auto sacrifício são feitas não legitimamente, mas como uma tentativa de provar o próprio valor e, consequentemente, comprovar o direito daquela pessoa à vida, ainda que ciente de que isto significará a morte de outro membro da família. Desta forma, quando todos se reúnem na sala em um momento que não preciso descrever para que quem assistiu ao filme o reconheça, o sentimento que experimentamos oscila entre o puro horror e a constatação de que o que testemunhamos não poderia ser diferente.

E esta é a diferença entre o puro niilismo e uma narrativa que emprega a destruição não como choque gratuito, mas para dizer algo sobre a natureza humana. Mesmo que o que diz provoque repugnância.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2017.

23 de Maio de 2017

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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