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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
29/01/2015 14/11/2014 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Fox
Duração do filme
119 minuto(s)

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)
Birdman

Dirigido por Alejandro González Iñarritu. Roteiro de Iñarritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris e Armando Bo. Com: Michael Keaton, Edward Norton, Emma Stone, Zach Galifianakis, Naomi Watts, Andrea Riseborough, Jeremy Shamos, Amy Ryan, Lindsay Duncan.

O desejo de sentir-se amado, mesmo adorado, é um elemento integral da profissão de ator – não só como motor do impulso artístico (ou, no mínimo, parte de seu combustível), mas também como quesito essencial para que se sustente na carreira. Afinal, ninguém corre para comprar ingressos para uma peça ou um filme estrelado por um intérprete detestado ou desprezado por todos. Não é à toa que a maior parte dos atores evita se envolver em assuntos polêmicos - não é que não tenham opiniões sobre determinados temas; expressá-las, porém, pode comprometer gravemente seu ganha-pão (e nomes como Sean Penn, Tim Robbins, José de Abreu e Gregório Duvivier certamente perderam legiões de fãs em função de seus posicionamentos políticos, por mais absurdo que isto possa soar).


Esta necessidade de adoração e admiração, aliás, é o que move Riggan Thomson (Keaton), um astro de Hollywood que, depois de fazer sucesso internacional ao interpretar o super-herói Birdman, abandonou o papel há 22 anos (coincidência ou não, exatamente quando Keaton viveu Batman pela última vez). Agora, o ator busca reconhecimento ao dirigir e estrelar uma peça que ele mesmo adaptou a partir de um conto de Raymond Carver e que,  a poucos dias da estreia, vem enfrentando diversos problemas: um integrante do elenco se acidentou e foi substituído pelo talentoso mas difícil Mike Shiner (o talentoso mas difícil Edward Norton); sua filha Sam (Stone), recém-saída de uma clínica de recuperação de dependentes químicos, parece infeliz e próxima de uma recaída; sua namorada e colega de elenco Laura (Riseborough) pode estar grávida; seu agente e amigo Jake (Galifianakis) encontra-se desesperado com o possível fracasso financeiro do espetáculo; e a crítica de teatro do New York Times (Duncan) mostra-se determinada a destruir a empreitada. Para piorar, Thomson é constantemente atormentado pela voz de Birdman, que insiste em provocá-lo com alfinetadas sobre sua inadequação e por ter abandonado uma franquia de sucesso.

Planejado pelo diretor Alejandro González Iñarritu e pelo fabuloso diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (Filhos da Esperança, Gravidade, A Árvore da Vida) para sugerir um único plano-sequência de quase duas horas de duração, Birdman mantém uma fluidez tão admirável que realmente se torna impossível notar onde ocorrem os cortes, ainda que, pela lógica espacial de cada cena, não seja difícil imaginar (de todo modo, compreendo a não-indicação do projeto na categoria Montagem do Oscar, já que certamente os responsáveis por esta não tiveram muita margem criativa considerando que os cortes foram pensados já na pré-produção). Mas o resultado obtido por Iñarritu e Lubezki fascina, vale apontar, não só pelo feito técnico, mas por não se limitar ao tempo “real” normalmente imposto por planos-sequência – e, assim como em outros trabalhos formidáveis como o brasileiro Ainda Orangotangos e o iraniano Fish & Cat, o filme traz elipses, momentos de alucinação e movimentos de câmera supostamente impossíveis mesmo sem jamais revelar suas transições. Neste sentido, a palavra “cinematografia” (“escrever com o movimento”) ganha peso ainda maior no trabalho realizado pela dupla.

Mas o que realmente torna esta decisão criativa digna de aplausos é o fato de não soar como recurso técnico gratuito para atrair a atenção, já que desempenha funções narrativas claras: além de ressaltar a pressão crescente sobre o protagonista, que não parece ter um único momento de descanso, o plano-sequência evoca uma certa continuidade temporal típica do teatro – e estamos, afinal, assistindo a um filme sobre a montagem de uma peça. Com isso, o longo plano assume um caráter quase metalinguístico, acabando por salientar os comentários que a obra faz sobre si mesma, sobre a indústria cinematográfica e sobre os contrastes percebidos por seus personagens entre Cinema e Teatro: se o primeiro é tomado pelo comércio, pela vulgarização de seus temas e intérpretes e por uma cultura de celebridades, o segundo é supostamente o verdadeiro reduto dos atores íntegros e comprometidos com sua Arte. Desta forma, ao conceder entrevistas para divulgar a peça, Thomson se vê obrigado a negar boatos absurdos (paradoxalmente validando-os simplesmente ao ter que discuti-los) e a responder questões insistentes sobre sua carreira no Cinema, como se sua dedicação ao palco fosse um mero capricho de um artista milionário e mimado. Como se não bastasse, o simples fato de trazer Batman, Hulk e Gwen Stacy em seu elenco já torna Birdman ambíguo por natureza ao utilizar a fama obtida por Keaton, Norton e Stone em projetos “superficiais” (visão do longa, não minha) para atrair interesse sobre si mesmo.

Dividindo certas características temáticas e mesmo escolhas dramáticas com Cisne Negro e o ainda inédito (e ótimo) The Humbling – especialmente ao lidar com o desmoronamento psicológico de artistas sob pressão -, Birdman tem, como trunfo, uma performance espetacular de Michael Keaton, que, no processo de encarnar um personagem movido pelo ego e pela arrogância, mostra-se incrivelmente vulnerável e corajoso ao usar a idade e o próprio envelhecimento para salientar os esforços patéticos de relevância de Thomson – o que gera, por exemplo, um momento tocante no qual ele remove a peruca que usa no palco ao falar sobre seu medo de ser esquecido, expondo, no processo, sua calvície e sua decadência física. Sem parecer perceber a diferença entre amor e admiração, o Thomson de Michael Keaton é ao mesmo tempo profundamente inseguro e incrivelmente presunçoso, evidenciando a imagem grandiosa que tem de si mesmo ao acreditar ser capaz de mover objetos com a mente e de voar (um delírio que Iñarritu escancara ao enfocar o que realmente ocorre quando vemos Thomson sendo observado por outros personagens).

Porém, o que realmente torna o trabalho de Keaton inesquecível é sua dinâmica com Mark Shine, o ator vivido por Edward Norton, que já demonstra um controle invejável ao assumir o controle do primeiro ensaio com Thomson, questionando seu texto e suas escolhas como intérprete sem que o outro pareça se dar conta da inversão de papéis. Esnobe e ainda mais egocêntrico que seu colega de cena, Shine não se preocupa em agradar aqueles com quem divide o palco ou mesmo o público (“A popularidade é a prima promíscua do prestígio”, afirma) – o que o transforma numa exceção importante à observação que abre este texto, já que o sujeito parece interessado em agradar apenas a si mesmo ao compor suas interpretações. Já no extremo oposto do espectro encontra-se a atriz vivida por Naomi Watts, que, estreando na Broadway, busca validação de qualquer um que possa oferecê-la. Fechando o elenco, Emma Stone surge intensa como Sam, mostrando-se capaz de se equilibrar com talento entre os momentos de vulnerabilidade e de desafio protagonizados pela moça.

Embalado por uma trilha calcada em uma percussão cujos ritmos improvisados, jazzísticos, colaboram para ressaltar a tensão do protagonista ao evocar sua turbulência interior, o filme mais uma vez revela um pendor metalinguístico ao sugerir um componente diegético da música em certo momento, quando vemos um baterista tocando em um dos camarins – um floreio narrativo que talvez desagradasse a mesquinha crítica teatral apresentada pelo filme (e mesmo que eu lamente a caricatura, devo admitir que esta funciona como um obstáculo dramático eficiente). Além disso – e não leia o restante deste texto caso ainda não tenha visto o longa -, é preciso reconhecer que Tabitha acaba se mostrando profissional ao admitir sua admiração pelo espetáculo apesar de toda sua resistência ao projeto.

O que nos traz, claro, ao ambíguo desfecho (mais uma vez: spoiler alert): afinal, o que ocorre nos minutos finais de Birdman? Ora, é possível interpretá-los no mínimo de três maneiras diferentes – todas coesas e interessantes por diferentes motivos. A mais óbvia (e, ok, frágil) é acreditar que Thomson, ainda entregue às suas alucinações recorrentes, se atira da janela e morre – o que, contudo, não explicaria a expressão encantada de sua filha ao olhar para o céu. No entanto, se (numa segunda alternativa) acreditarmos na literalidade do que vimos, teremos que aceitar que Thomson realmente mostrou-se capaz de voar, o que traz um componente de realismo mágico a um filme que em vários momentos sugere abraçá-lo.

Ainda assim, prefiro uma terceira interpretação: ao longo da projeção, Iñarritu indica que os “poderes” de Thomson nada mais são (como discuti anteriormente) do que uma manifestação da visão grandiosa que o sujeito tem acerca do próprio talento: ele acredita ser especial e se frustra quando os demais não reconhecem isto, o que o leva a duvidar de si mesmo e a tentar se destruir. Porém, é justamente ao quebrar-se por sua arte que ele a eleva e finalmente se torna o artista que sempre imaginara ser. Não é à toa, portanto, que as marcas do tiro parecem criar em seu rosto algo muito parecido com a máscara do Birdman (primeiro, através das ataduras; logo em seguida, pelos hematomas e pela desfiguração de seu nariz) – transformando-o literalmente no herói de sua própria fantasia artística. Com isso, seu “voo” torna-se uma metáfora, uma representação do que ele alcançou como ator e do respeito que agora conquistou. Um respeito que sua filha compartilha, admirando o “voo” do pai que até então ela via quase como um farsante.

Ou talvez eu esteja simplesmente projetando minhas próprias inseguranças e meu desejo de aceitação num final propositalmente ambíguo. Porque o fato é que não apenas os atores desejam se sentir amados e respeitados – esta é uma aspiração universal que Birdman reflete com maestria.

26 de Janeiro de 2015

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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