Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
01/05/2014 | 01/01/1970 | 3 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Copabacana Filmes |
Dirigido por João Jardim. Roteiro de George Moura. Com: Tony Ramos, Drica Moraes, Thiago Justino, Fernando Luís, Alexandre Borges, Murilo Grossi, Clarisse Abujamra, Leonardo Medeiros, Marcelo Médici, Alexandre Nero, Jackson Antunes, Adriano Garib, Daniel Dantas.
Getúlio Vargas talvez tenha sido uma das figuras mais complexas da História de nosso país. Por um lado, foi inquestionavelmente um ditador – o pior título que um líder pode ter -; por outro, voltou numa eleição democrática, criou a Petrobrás e estabeleceu direitos fundamentais dos trabalhadores. Não que Getúlio, longa de João Jardim, se preocupe particularmente com esta complexidade – e nem precisa, já que o filme se concentra apenas nos últimos 19 dias de vida de Vargas. Além disso, é um mérito do roteiro de George Moura que a narrativa já abra com o próprio presidente resumindo o próprio passado em off e dizendo, sem meias palavras, que foi um ditador. Assim, a partir do instante em que o protagonista assume quem foi, o projeto pode se concentrar em como ele termina.
E que desfecho de existência: constantemente atacado pelo jornalista Carlos Lacerda (Borges), Getúlio Vargas (Ramos) finalmente se vê numa posição impossível quando o sujeito sofre um atentado que resulta na morte de um major da aeronáutica. Acusado por Lacerda de ser o mandante do crime, Vargas aos poucos é confrontado pela realidade de que a ideia contou com a execução do chefe de sua guarda pessoal, o controverso Gregório Fortunato (Justino), e que talvez até mesmo membros de sua família tenham se envolvido no plano. Por outro lado, o longa não descarta uma das versões possíveis do incidente – a de que Lacerda não tenha sido sequer ferido -, já que inclui um plano-detalhe de seu pé, no momento dos disparos, que o mostram incólume. Seja como for, o atentado certamente abriu a temporada de caça a Vargas por parte da mídia, o que resultaria numa instabilidade política gigantesca e, finalmente, no suicídio do presidente.
Neste aspecto, Getúlio não poderia ser mais atual, já que nos encontramos justamente no meio de uma pesadíssima campanha mediática reacionária – e basta lermos as manchetes do UOL, da VEJA, do Estadão e da Folha de São Paulo para acharmos exemplos contemporâneos de Lacerdas esbravejantes que não se intimidam em distorcer fatos e pintar uma realidade que uma rápida pesquisa no Google provaria mentirosa (e há algumas semana o UOL chegou a mudar uma manchete três vezes em poucas horas ao noticiar uma estatística econômica, indo da observação de que se tratava de um índice positivo até chegar à versão final que a retratava como um desastre – isto para não esquecermos dos gráficos com colunas desproporcionais usados em telejornais da Globo e nas manchetes da Folha que tentavam levar o leitor a confundir dois prefeitos). Com isso, quando Getúlio traz sequências nas quais o povo, manipulado pela imprensa, vai às ruas protestar por motivos equivocados, torna-se impossível não nos lembrarmos mais uma vez da certeira frase de Eric Rohmer: “Todo bom filme é também um documento de sua época”.
Esta, diga-se de passagem, não foi a única frase célebre que me ocorreu ao assistir ao filme, já que também me lembrei da observação de George Santayana (na realidade, uma versão adulterada da frase original) que também poderia servir como tagline desta produção: “O povo que não conhece sua História está condenado a repeti-la”. E se estamos vendo uma repetição preocupante de certos incidentes que precederam não só a morte de Getúlio, mas também o golpe de 64, é interessante notar que o próprio Vargas parecia muito atento à sua própria história, já que parte de sua passividade diante da movimentação da oposição vinha justamente de seu receio de que, por já ter “rasgado a Constituição duas vezes”, suas ações pudessem ser vistas com desconfiança pelo povo. Isto, claro, não deixava de ser irônico, já que, antes carrasco da democracia, agora Getúlio surgia como condenado desta – e sua vulnerabilidade é ressaltada pelo longa em momentos como aquele que o trazem com dificuldades para amarrar os sapatos ou se relacionando afetuosamente com a devotada filha Alzira (Moraes).
Esta fragilidade de Vargas é construída também através da caracterização de Tony Ramos, dono de um olhar sempre repleto de gentileza e que, mesmo exibindo um sotaque irregular (notem como a dicção do “r” muda ao longo da projeção), cria um protagonista cujo sofrimento crescente se torna patente para o espectador. Parecendo carregar um peso colossal sobre os ombros, o Getúlio de Tony Ramos é um homem que tenta lidar ao máximo com a pressão à qual está submetido, mas que acaba sucumbindo a esta muito antes de disparar contra o próprio coração. Enquanto isso, Drica Moraes compõe uma Alzira amorosa e sempre preocupada com o pai, mas que também se mostra capaz de articular politicamente suas respostas à repercussão do atentado. E se Thiago Justino encarna bem a personalidade forte de Gregório Fortunato sem perder de vista sua curiosa devoção ao presidente (o plano no qual surge penteando Vargas é emblemática), Alexandre Borges pouco tem a fazer como Carlos Lacerda, ficando preso a discursos berrados com o cinismo típico do sujeito. Já as demais figuras que cercam o núcleo principal são apresentadas de maneira tão frágil que o filme sente necessidade de identificá-las através de legendas, o que não é um bom sinal.
Mas Getúlio é, em última análise, não um trabalho sobre política, História ou conspirações, mas sobre o estado de espírito de Vargas em seus últimos dias – e, portanto, até mesmo os pesadelos recorrentes do presidente (um recurso narrativo que costumo abominar) servem bem ao propósito de ilustrar sua angústia, que acaba se transformando numa depressão que o mergulha na apatia e na busca do sono constante. Já quando acordado, o Vargas do filme basicamente se limita a perambular pensativamente à noite pelo Palácio do Catete enquanto fuma seus charutos e a preparar cuidadosamente seu suicídio ao sondar a posição exata do coração e ao preparar sua carta-testamento.
Aliás, já que mencionei o Catete, é inevitável apontar que o fascínio dos realizadores pela locação real usada no filme acaba se mostrando um problema, já que Jardim (responsável pelos lindíssimos documentários Janela da Alma e Lixo Extraordinário) inclui inúmeros planos que se limitam a mostrar quadros, lustres e outros detalhes da decoração do palácio e que acabam parecendo exatamente aquilo que são: um esforço para conferir autenticidade à narrativa. Já o roteiro de Moura, embora tenha virtudes já apontadas aqui, também tropeça frequentemente nos diálogos excessivamente expositivos (como no instante em que alguém fala “Ele diz que foi Lutero Vargas, filho do presidente” enquanto conversa com o próprio Getúlio), ao passo que a trilha de Federico Jusid é praticamente ininterrupta – um excesso infelizmente cada vez mais comum em boa parte das produções contemporâneas, brasileiras ou não. Em contrapartida, é preciso aplaudir a beleza – estética e temática – de planos como aquele no qual, num plongé, vemos Alzira descendo um lance de escadas enquanto, no lance oposto, o vice-presidente Café Filho (Antunes) segue na direção oposta.
Irregular e mesmo ocasionalmente simplista, Getúlio é um filme eficiente naquilo que se propõe a fazer: pintar o retrato de um homem conduzido ao suicídio. Não investiga a complexidade de seu biografado, mas nem parece interessado nisso – e, assim, funciona por ser pontual em sua abordagem. O que não é o melhor dos elogios, mas tampouco um demérito dos maiores.
01 de Maio de 2014