Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
19/06/2014 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Dirigido por Denis Villeneuve. Roteiro de Javier Gullón. Com: Jake Gyllenhaal, Mélanie Laurent, Sarah Gadon, Isabella Rossellini, Tim Post, Joshua Peace.
O Homem Duplicado é o tipo de filme que, temo, enviará a maior parte da plateia para fora das salas de cinema com uma impressão negativa. “Confuso”, “sem sentido”, “pretensioso” e “chato” possivelmente serão alguns dos termos usados pelos detratores – algo que sempre ocorre quando um longa tenta criar uma narrativa um pouquinho (não precisa ser muito) fora do convencional. Em vez de tentarem entender os motivos por trás das decisões do cineasta, estes espectadores preferem atacar a obra por receio, talvez, de serem considerados “estúpidos” por não terem compreendido exatamente o que esta queria dizer – e o recente Sob a Pele é outro trabalho que provoca o mesmo tipo de reação. O que este segmento do público parece não entender é que você não precisa conseguir decifrar os simbolismos da narrativa ou a natureza exata por trás de suas aranhas gigantes para apreciar e reconhecer o fato de que este trabalho de Denis Villeneuve é capaz de criar uma atmosfera carregada, tensa e sombria – mesmo que a plateia não consiga apontar precisamente por que está experimentando esta tensão. Apreciar um filme apenas como experiência narrativa ou pela força de suas atuações não é proibido – e explorar seus temas após a sessão é um esforço intelectual que pode ser imensamente divertido em vez de frustrante.
Não é à toa que a projeção abre com a epígrafe “Caos é a ordem ainda indecifrada”: inspirado no livro de Saramago, o roteiro de Javier Gullón nos apresenta ao professor universitário Adam (Gyllenhaal), que, vivendo num apartamento vazio em uma metrópole superpoluída, vive um cotidiano de repetições e esterilidade emocional. Certo dia, porém, ele percebe que o figurante visto de relance em um filme é sua cópia perfeita e decide procurar o sujeito: um aspirante a ator chamado Anthony, mas que usa o pseudônimo Daniel Saint Claire (Gylenhaal novamente, claro). Casado com uma jovem triste que se encontra no sexto mês de gravidez (Gadon), Anthony é o oposto de Adam, mostrando-se explosivo, seguro e ameaçador quando o outro consegue apenas se esconder do mundo e mal parece notar a própria namorada, a bela Mary (Laurent).
Construindo um tom inquietante desde o primeiro plano, que traz Adam em seu carro enquanto ouve um recado da mãe (Rossellini) sobre seu novo – e vazio – apartamento, o rapaz parece habitar um mundo poeirento e claustrofóbico, já que a cidade usada como pano de fundo para a trama surge como um ambiente hostil graças aos seus imensos prédios cinzas contrapostos a um céu permanentemente nublado. Ocupando um apartamento pequeno e pouco mobiliado e dando aulas para turmas semivazias (aplausos ao design de produção de Patrice Vermette), o protagonista parece alheio ao mundo que o cerca – e não é à toa que, para fazer uma pesquisa na Internet, ele surge puxando um cabo de rede para conectar seu notebook à web.
Vivido por Jake Gyllenhaal como um homem com expressão triste e uma postura encolhida, com a cabeça projetada à frente em uma pose que parece sugerir ao mesmo tempo a vontade de se esconder e o impulso de se defender, Adam se torna exponencialmente mais ansioso à medida que percebe a existência de Anthony – e é notável como Gyllenhaal evoca seu nervosismo ao respirar pesadamente enquanto liga para o apartamento do outro pela primeira vez. Por outro lado, Anthony surge arrogante, dominador e agressivo desde sua primeira aparição – e o contraponto entre os dois é tamanho que, confesso, ao ler os créditos finais senti que faltava um nome até me dar conta de que era o do próprio Gyllenhaal, que deveria ter sido listado duplamente. Por outro lado, Mélanie Laurent e Sarah Gadon criam composições que não se contrapõem como às de Gyllenhaal, mas se complementam, já que vivem duas mulheres cuja tristeza é fruto direto da relação que mantêm com os dois homens que dominam a narrativa e que são obviamente nocivos às parceiras, embora de maneiras diferentes (mais sobre isto em um instante).
Dirigido por Denis Villeneuve no mesmo ano em que comandou o excepcional Os Suspeitos, O Homem Duplicado não poderia ser uma obra mais diferente, comprovando a versatilidade do cineasta ao criar um mundo que sugere uma distorção constante da realidade até mesmo através de planos gerais como aquele que, movendo-se sobre um prédio em formato de “L”, cria uma ilusão de ótica momentânea que leva o espectador a embaralhar a própria visão. Sugerindo uma cidade futurista através de detalhes sutis como o céu poeirento e nublado e os vários prédios em construção que se projetam sobre o protagonista, o filme ainda usa a semelhança entre estes edifícios como retrato da falta de personalidade do próprio Adam – e quando o vemos em um quarto de hotel com teto baixíssimo, a impressão de claustrofobia criada ainda serve para ressaltar sua natureza reprimida e sufocada.
Fotografada de maneira expressiva por Nicolas Bolduc, a paleta de O Homem Duplicado surge carregada num tom amarelado que não só ressalta a atmosfera árida, sufocante, da narrativa como ainda pode ser encarada como uma referência direta ao trabalho feito por Aldo Tonti em Os Pecados de Todos Nós, de John Huston – um filme que, não por coincidência, lidava com a profunda repressão sexual de seu protagonista, num reflexo do tema principal deste filme de Villeneuve. Aliás, já que menciono o tema desta obra, não é à toa que, logo no início da projeção, Adam cita a complementação que Marx fez (em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”) ao pensamento de Hegel sobre a História repetir-se, quando emendou dizendo que “a primeira vez, (repete-se) como tragédia; a segunda, como farsa” – já que é justamente a insistência do protagonista em repetir seus erros que o enviará a uma jornada psicológica complexa que incluirá a imagem recorrente das aranhas que percorrem a projeção.
Pois o que temos aqui (e sugiro que só leiam o restante deste texto depois de assistirem ao filme) não é, de fato, uma trama envolvendo clones ou algo do gênero, já que basta uma observação atenta para perceber que Adam e Anthony são, de fato, a mesma pessoa, merecendo destaque a única cena de Isabella Rossellini, que não deixa este ponto em aberto, já que ela oferece amoras ao filho (o único que tem, como faz questão de frisar), menciona seus esforços para se tornar ator e suas dificuldades para manter-se com a mesma mulher – todos estes sendo elementos que dizem respeito a Anthony, não ao Adam com o qual ela conversa naquele momento. Aliás, os esforços do personagem para fugir de si mesmo também encontram eco no pseudônimo de Anthony, que, como ator, usa o nome “Daniel”. Da mesma maneira, a foto rasgada que Adam mantém no apartamento surge completa na casa de seu “sósia” e os seis meses que marcam a gravidez da esposa são os mesmos que o distanciam de seus esforços como ator.
Mas por que há esta ruptura de egos? Por que subitamente Adam enxerga um duplo? Pois trata-se de uma ruptura psicológica clara – e quando sua esposa encontra a versão “alternativa”, choca-se ao perceber que há algo de estranho ocorrendo com o marido, reconhecendo imediatamente tratar-se do homem com quem se casou e não de um estranho com rosto idêntico. E o que significam, afinal, as tais aranhas?
Explicar Arte é um exercício fútil, claro. Sim, é divertido – e já me entreguei a este prazer ao escrever sobre filmes como Magnólia, Cidade dos Sonhos, O Grande Truque, Sob a Pele, Cisne Negro, entre outros. No entanto, jamais me ocorreria dizer que minha interpretação acerca destas obras foi a “definitiva”, como um “gabarito” para suas perguntas e mistérios. Por outro lado, o exercício intelectual, psicológico e emocional contido na busca por uma interpretação satisfatória é parte integral do processo de absorver uma obra e, claro, faz parte da diversão também em O Homem Duplicado. Que, sim, oferece algumas pistas claras acerca de sua significação.
Tomemos, como exemplo, o instante no qual Adam vai a uma locadora e o cartaz de A Mulher de 15 Metros surge claramente ao fundo, trazendo uma figura feminina como uma espécie de Godzilla prestes a destruir uma cidade. Analisada isoladamente, aquela referência poderia ser apenas um detalhe cenográfico, mas quando a justapomos ao plano no qual uma aranha gigantesca caminha pela cidade, um padrão se forma: estaria Villeneuve comparando aranhas e mulheres? Mais: ele estaria se referindo à forma feminina, ao gênero como um todo ou a algo que poderiam representar para o protagonista?
A resposta novamente pode ser encontrada em dois planos significativos de O Homem Duplicado: aquele, logo no início, no qual uma bela mulher em um clube de voyeurs/strip-tease parece prestes a esmagar uma aranha e outro no qual o protagonista passa por uma mulher nua, de corpo escultural, cuja cabeça foi substituída pela de um aracnídeo. E então nos lembramos de que Anthony obviamente desperta a desconfiança de sua esposa, que o acusa de voltar a traí-la, e percebemos como, ao seguir Mary, o sujeito exibe uma expressão atormentada ao se surpreender devorando-a com os olhos.
E o retrato que surge é o de um homem com fortes impulsos sexuais que já viu seu casamento ser ameaçado por sua incapacidade de se controlar diante do corpo feminino. Um homem que agora vive em um mundo repleto de referências a aranhas, como as linhas dos bondes, os padrões do embaçamento no box do chuveiro e o vidro partido de um carro, todos remetendo a teias. Um homem que agora vive reprimido e só, mas que descobre um alterego impulsivo que não mostra pudor algum ao desejar uma bela mulher, chegando a se passar por outro para possui-la. Um homem que finalmente chora, exausto, no instante em que aquele alterego se destrói num acidente de carro ao lado da figura que representa a tentação, finalmente permitindo que abrace a esposa grávida e aceite seu conforto.
Um homem que, mesmo assim, volta a ceder ao desejo na primeira oportunidade que surge, ao descobrir uma chave que reabrirá as portas para outras mulheres, e que por esta razão é surpreendido pela criatura gigantesca e assustadora que passou a simbolizar sua necessidade de reprimir-se. Uma criatura que ele encara não com o pavor que toma conta do espectador, mas com uma calma e uma resignação reveladoras.
Pois ele sabe que está enxergando não uma aranha gigantesca e predadora, mas o símbolo agora acuado de sua necessidade de manter-se fiel.
20 de Junho de 2014