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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
23/03/2012 01/01/1970 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Paris Filmes
Duração do filme
142 minuto(s)

Jogos Vorazes
The Hunger Games

Dirigido por Gary Ross. Com: Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Elizabeth Banks, Woody Harrelson, Liam Hemsworth, Wes Bentley, Stanley Tucci, Toby Jones, Lenny Kravitz, Amandla Stenberg, Alexander Ludwig e Donald Sutherland.

Combinação do ótimo japonês Batalha Real e do schwazzenegeriano O Sobrevivente, Jogos Vorazes é a adaptação do primeiro livro de uma trilogia escrita pela norte-americana Suzanne Collins (que não li) e que, aqui, revela-se uma experiência eficaz graças a um universo interessante e a personagens carismáticos. Pecando por não estabelecer claramente as regras de seu próprio mundo e por trazer uma direção irregular, o filme ainda assim consegue fazer com que o espectador se importe com sua protagonista, o que, em última análise, é o que acaba garantindo seu sucesso.

Roteirizado por Collins ao lado de Billy Ray e do diretor Gary Ross, o longa se passa em um país que, batizado de Panem (leia: panem et circenses; “pão e circo”), promove um jogo anual que coloca jovens casais representando cada um de seus doze distritos em uma batalha na qual apenas um indivíduo sobreviverá. Oferecendo-se como “tributo” para poupar a irmã pequena, que havia sido sorteada para a disputa, a heroína Katniss Everdreen (Lawrence) torna-se a representante do miserável Distrito 12 ao lado de Peeta Mellark (Hutcherson) – e não demora muito até que passe a ser orientada pelo estranho Haymitch Abernathy (Harrelson), um ex-vencedor dos jogos que batizam a história.

Como toda narrativa ambientada em uma distopia, Jogos Vorazes claramente convida o espectador a projetar suas próprias interpretações sobre os simbolismos e as alegorias apresentadas pela história, o que é geralmente intrigante. No entanto, o roteiro peca pela falta de foco destes símbolos, sugerindo uma indecisão dos próprios autores sobre o que querem dizer exatamente: seria a barbaridade daquele espetáculo uma crítica ou um comentário sobre o escapismo que domina a cultura contemporânea? Sobre a febre dos reality shows, com seu palco de horrores e baixarias aplaudido por milhões de pessoas que deveriam reconhecer o papel que desempenham na perpetuação destas atrocidades? Ou seria a história uma alegoria dos Estados Unidos pós-11 de Setembro, com seu conservadorismo crescente e um governo que elimina a liberdade de seus cidadãos como uma maneira de supostamente protegê-los? Ou ainda a condenação da passividade com que aceitamos as injustiças cotidianas? Uma coisa é ser aberto a interpretações; outra é passar a impressão de que nenhuma delas teria ocorrido intencionalmente ao realizador da obra.

Afinal, qual é a lógica por trás de um país que promove a morte de 23 jovens justificando que a sobrevivência do vigésimo-quarto seria um símbolo de perdão e clemência do Estado? Assim, quando um dos distritos finalmente parece ensaiar uma mini revolta, temos não a sensação de uma epifania por parte da população, mas a frustração por não compreendermos por que teria demorado tanto até que esta se rebelasse. Por outro lado, o contraste entre o primitivismo dos distritos mais pobres e a tecnologia avançada de naves voadoras, trens-bala silenciosos e hologramas que dominam a capital de Panem é suficiente para que compreendamos a discrepância daquelas realidades sem a necessidade de diálogos expositivos (embora o filme exagere ao sugerir a capacidade do país de criar seres a partir de computadores, já que isto implicaria numa autossuficiência em termos de matéria-prima e mesmo mão-de-obra que invalidaria o que o Presidente Snow (Sutherland) diz sobre precisarem do que os distritos pobres produzem). Além disso, por que os participantes não podem usar armas de fogo, já que têm acesso a explosivos e outros itens do tipo? Será que revólveres e metralhadoras não existem em Panem ou estes são proibidos na disputa?

O que nos traz a outro problema grave de Jogos Vorazes: jamais compreendemos claramente as regras do jogo-título. Quanto tempo dura a batalha, por exemplo? Há um limite para sua duração? Ela se passa em uma arena virtual ou num ambiente real? Os organizadores podem simplesmente matar um dos participantes? Como o público reagiria a isso? Se Katniss não tem permissão para se afastar muito dos inimigos, por que Peeta pode se camuflar durante um longo tempo sem qualquer problema? Qual é a lógica em permitir que uma criança de 12 anos enfrente um pré-adulto de 18? E mesmo que entendêssemos as regras, de que isto valeria se o filme não vê qualquer problema em alterá-las através de anúncios arbitrários ao longo da projeção? (E será que o público não se importa ao ver sua diversão sendo manipulada de maneira tão descarada?)

Mas talvez meu erro seja exigir consistência de um reality show e esta seja, afinal, a mensagem do filme – afinal, ver o idealizador do jogo (Bentley) discutindo a “mistura interessante” formada pelos concorrentes e testemunhar a formação de alianças não é muito diferente do que ver um Boninho de barba desenhada afirmando em um momento que certo participante do BBB não estuprou uma colega apenas para, no dia seguinte, expulsá-lo do jogo sem maiores explicações, estabelecendo-se como júri, juiz e carrasco em seu próprio universo. Além disso, Jogos Vorazes merece créditos por desenvolver de forma intrigante seu conceito-chave: é natural, por exemplo, que surjam “carreiristas” que passem a vida se preparando para a disputa e, da mesma maneira, é perfeito que a produção do programa se preocupe com a aparência de seus atletas-astros, enfeitando-os para consumo público. E é curiosa, a forma como o filme desenvolve a ideia de patrocinadores que enviam auxílio aos seus protegidos através de pequenos itens voadores que caem do céu como autênticos representantes do conceito de deus ex machina.

Irretocável ao criar um tom absurdo que ressalta o caráter alegórico da narrativa, o design de produção é inteligente ao empregar o roxo em praticamente todos os ambientes, sendo esta a cor tradicionalmente associada à morte – e a Panem concebida através de efeitos digitais é instigante ao combinar uma atmosfera futurista a uma grandiosidade de época que remete à Roma antiga (o que justifica nomes de personagens como Sêneca, Cinna, Claudius e, claro, o próprio conceito do “pão e circo” e de gladiadores). E mesmo que exagerem pontualmente (a personagem de Elizabeth Banks, por exemplo, surge como uma mistura de boneca de porcelana, de Lady Gaga e de um travesti), os figurinos, a maquiagem e os penteados usados para compor os habitantes da cidade são divertidos por transformarem aquelas pessoas em criaturas ridículas enquanto mantêm a coesão visual do projeto. Para completar, o diretor Gary Ross acerta espetacularmente ao retratar o início dos jogos em uma cena que elimina o som a fim de ressaltar a confusão experimentada pela protagonista diante da violência súbita – o que compensa, de certa forma, pela insuportável estratégia de enfocar o discurso inicial de Effie (Banks) através de dezenas de cortes completamente desnecessários.

Beneficiado pelo carisma da dupla central (Lawrence transforma Katniss numa jovem pragmática, ao passo que Hutcherson evoca bem a complexidade de sentimentos de Peeta) e por performances coloridas do elenco secundário (destacando-se Tucci com seu sorriso protético e Harrelson com um rancor calculado), Jogos Vorazes funciona principalmente graças a estes personagens e seus dilemas particulares – e, assim, temo que os próximos filmes sejam prejudicados caso sigam a direção apontada pelo desfecho deste e invistam numa narrativa focada mais em política (ou “política”) e menos em seus entristecidos heróis.

Até lá, porém, este primeiro longa representa uma bem-vinda surpresa.

23 de Março de 2012

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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