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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
06/10/2006 06/06/2007 1 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
108 minuto(s)

Muito Gelo e Dois Dedos De Água
Muito Gelo e Dois Dedos De Água

Dirigido por Daniel Filho. Com: Mariana Ximenes, Paloma Duarte, Thiago Lacerda, Carla Daniel, Ângelo Paes Leme, Ailton Graça e Laura Cardoso.

 

Há muito tempo eu não sentia tanta vontade de sair da sala durante uma projeção. Ao longo dos últimos anos, vi muitos filmes pavorosos, é verdade, mas sempre encontrava algo que me prendesse na poltrona – no mínimo, uma curiosidade mórbida para descobrir até a que ponto a incompetência dos realizadores chegaria. Em Muito Gelo e Dois Dedos D’Água, no entanto, a sensação que experimentei foi de excruciante sofrimento; de quase tortura. Ao contrário de desastres nacionais como Garrincha – A Estrela Solitária, Olga, A Cartomante ou Histórias do Olhar, este novo trabalho de Daniel Filho se supõe engraçado, adicionando um novo nível de constrangimento aos procedimentos, já que, para tentar divertir, não hesita em apelar para recursos que seriam embaraçosos até mesmo em programas humorísticos infantis. Um exemplo: quando um pai pergunta para seu filho se este quer jogar videogame e o garoto responde “Deixa que eu jogo sozinho”, o diretor chega ao ponto de acrescentar um inacreditável efeito sonoro (“TÓIM!”) com o objetivo aparente de tornar hilária uma “piada” que já nasceu morta.

           

Mas é preciso ter certa compaixão por Daniel Filho; afinal, ele estava construindo uma casa a partir de alicerces podres: o roteiro escrito pelo casal Fernanda Young e Alexandre Machado, dupla que, sabe-se lá por que, transformou-se em sucesso apesar do texto de humor sempre óbvio e auto-referencial (aliás, somente por utilizar a palavra “humor” já estou fazendo um elogio não-merecido ao casal). Estrelado por duas atrizes carismáticas, o filme conta a história das irmãs Suzana (Duarte) e Roberta (Ximenes), que seqüestram a avó (Cardoso) a fim de levá-la para a casa de praia que freqüentavam na infância com o objetivo de submeter a velhinha às mesmas “torturas” pelas quais passaram quando crianças (alisar o cabelo, cortar cutículas, bronzeamento obrigatório até provocar queimaduras, etc). Depois de doparem a Avó (que passa a repetir o nome de Emílio Garrastazu Médici sem razão aparente, apenas porque os roteiristas parecem julgar isto incrivelmente cômico), as irmãs partem em sua viagem ao lado de Renato (Paes Leme), um advogado que decide acompanhá-las por um motivo absurdo qualquer – e, mais tarde, é a vez do marido de Suzana, o médico Francisco (Lacerda), seguir a esposa, dando início a uma série de incidentes engraçadíssimos (isto é, se você tem 2 anos de idade e acha os Teletubbies o máximo).

           

Alternando humor físico (com vontade de ir ao banheiro, o advogado tem que correr para chegar a tempo – e acaba sendo surpreendido pelas garotas. Hahahaha!) e diálogos que se julgam infinitamente mais inteligentes do que são na realidade, o roteiro de Young e Machado é, numa definição generosa, absurdamente péssimo. “Por que você toma tanto remédio?”, pergunta um sobrinho para sua tia. “Para não ficar doente!”, responde esta, sem pestanejar. “TÓIM!” (Na realidade, desta vez não há efeito engraçadinho, o que é uma pena.) Como se não bastasse, os roteiristas não conseguem sequer acompanhar a lógica da própria história que criaram: depois de declararem que pretendem fazer mil coisas inomináveis com a Avó, as irmãs se limitam a três ou quatro “torturinhas”, esquecendo, por exemplo, o prometido toque vaginal – não que, particularmente, este faça falta ao filme. E o que dizer da cena em que Suzana declara que só decidiu ajudar a irmã em sua vingança porque a moça não consegue manter namoros mais longos? Com uma lógica tortuosa dessas, temos que agradecer a Deus por Suzana não ser psicóloga. Ou por Roberta não ter problemas mais sérios de relacionamento.

           

Mas se Muito Gelo e Dois Dedos D’Água é apenas constrangedor quanto procura provocar o riso, o quadro se torna trágico quando o filme tenta falar sério: nestes momentos, ele ultrapassa a fronteira do ridículo, como comprovam a cena que se passa sobre um telhado e outra na qual Suzana discute o amor que sente pelo filho. Para piorar, Young e Machado demonstram uma falta de bom senso alarmante ao incluírem uma tentativa de piada sobre... acreditem ou não... o acidente que matou Ayrton Senna, voltando ao assunto uma vez mais em uma referência no ato final da projeção. Não que explorar a comicidade enterrada em assuntos trágicos seja algo a se evitar naturalmente, mas o fato é que os roteiristas não sabem fazê-lo, o que resulta em um momento de incrível mau gosto. (Ou talvez tenha faltado o “TÓIM!”, não sei.)

           

Sobrevivendo milagrosamente ao desastre que as cerca, Mariana Ximenes e Paloma Duarte exibem carisma e talento suficientes para que desejemos vê-las em produções mais dignas de seus esforços, enquanto Thiago Lacerda se embaraça em uma composição caricata que expõe suas tentativas desesperadas de parecer engraçado. E se é lamentável ver uma atriz do calibre de Laura Cardoso ser submetida ao ridículo por um filme tão estúpido, o mesmo não pode ser dito sobre Ângelo Paes Leme, cuja falta de talento e de timing cômico fazem jus à qualidade da produção.

           

Já o cineasta Daniel Filho parece disposto a honrar o texto de Young e Machado com uma direção à altura: observem, por exemplo, o quadro terrivelmente deselegante (para não dizer horroroso) que, na cena do restaurante, traz um garçom de costas para a câmera, com a bunda quase num plano-detalhe, e que, o que é pior, ainda cobre a presença de um dos atores – ou, num outro exemplo similar, perceba a péssima marcação de cena quando Ângelo Paes Leme, ao conversar com Ximenes e Duarte ao lado do carro, inclina-se e, no movimento, bloqueia a primeira. Neste instante, Daniel Filho (que se orgulha de ser diretor de “uma tomada só”) faz um rápido corte para um ângulo levemente modificado, resultando num salto abrupto na imagem (ao que parece, ele não conhece a convenção que prega que uma mudança de ângulo deve respeitar uma diferença de, no mínimo, 30 graus com relação à posição anterior da câmera).

           

Mas não é só: disposto a tudo para arrancar risos de um roteiro que não se presta a isso, o cineasta apela até mesmo para efeitos psicodélicos de animação que transformam os olhos de Laura Cardoso em faróis coloridos que estariam mais à vontade em um desenho dos Looney Tunes, numa gag visual risível (no mau sentido). Além disso, o diretor volta a utilizar a câmera acelerada que já resultara em fracasso em A Partilha e, ainda pior, resgata também sua já clássica “assinatura” de autor: o merchandising ofensivamente intrusivo, nada orgânico, da Goodyear. Como se tudo isso já não fosse suficiente, Filho e o montador Felipe Lacerda constantemente recorrem a uma série de cortes rápidos a fim de tentarem conferir mais energia aos diálogos e à interação entre os personagens, deixando claro apenas que não sabem muito bem o que estão fazendo, já que os cortes surgem ilógicos e nem de longe alcançam os resultados esperados (e a ineficiente utilização de tela dividida indica o mesmo). Finalmente, o compositor Guto Graça Mello cria mais uma trilha cômica óbvia que chega a parodiar – inexplicavelmente – o tema de Indiana Jones em certo momento da projeção.

           

Trazendo algumas seqüências de animação (ao estilo Waking Life) surpreendentemente boas para um projeto tão desastroso, Muito Gelo e Dois Dedos D’Água é o segundo filme de Daniel Filho a ser lançado em 2006, o que me fez lembrar de algo que ouvi há muito tempo com relação ao boxe: nada é mais doloroso, em uma luta, do que dois golpes encaixados consecutivamente. Enquanto o primeiro leva a vítima a esvaziar os pulmões num espasmo de dor, o segundo aterrissa enquanto o lutador ainda está sem fôlego, aumentando sua intensidade. Neste sentido, podemos dizer que Se Eu Fosse Você foi o soco que nos desnorteou inicialmente e que, agora, o diretor nos leva a um inevitável nocaute.

           

TÓIM!
``

 

04 de Outubro de 2006

 

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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