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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
20/09/2003 20/09/2003 3 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
91 minuto(s)

Dom
Dom

Dirigido por Moacyr Góes. Com: Maria Fernanda Cândido, Marcos Palmeira, Bruno Garcia, Luciana Braga, Thiago Farias, Malu Galli.

Há algo curioso com relação a Dom, longa-metragem de estréia do diretor Moacyr Góes: ao mesmo tempo em que se anuncia como `modernização` do clássico Dom Casmurro, de Machado de Assis, o filme `reconhece` a existência do livro, ao contrário do que normalmente acontece em adaptações como esta, que se passam em universos que `desconhecem` as obras originais – o que é compreensível: imaginem se, em Romeu + Julieta, Leonardo DiCaprio dissesse: `Espere aí! Isso é exatamente como o texto de Shakespeare! Acho que não devo me matar, afinal de contas...`. Pois é justamente este tipo de paradoxo que acaba prejudicando Dom: apesar de ter sido batizado como Bento em homenagem ao texto de Machado de Assis, de ser obcecado com Dom Casmurro (a ponto de possuir todas as edições do livro) e de apelidar sua amada de infância como Capitu em função de seus `olhos de ressaca`, o protagonista vivido por Marcos Palmeira jamais percebe (ou comenta) a ironia de seu ciúme doentio pela esposa, o que é, no mínimo, pouco plausível.

Escrito pelo próprio Moacyr Góes, o roteiro transporta a ação do livro de Machado para os dias atuais, o que é uma idéia interessante e perfeitamente viável, já que, como toda grande obra-prima, Dom Casmurro possui temática e abordagem universais e que se encaixariam em qualquer época. Com isso, o enciumado Bento agora pode, por exemplo, solicitar um exame de DNA para atestar a paternidade do filho de Capitu (Cândido), que ele desconfia ser fruto de um relacionamento adúltero que esta manteve com seu amigo Miguel (Garcia). Infelizmente, apesar de utilizar a trama básica do original, Góes falha ao não conseguir capturar a complexidade e a inteligência com que Machado de Assis desenvolvia sua história e, com isso, transforma o filme em uma experiência rasa que certamente seria mais apropriada para exibição em televisão.

Para início de conversa, qualquer realizador que decida adaptar um livro de Machado deve se preocupar com a qualidade dos diálogos, já que o escritor carioca era famoso por seu apuro na construção de frases inesquecíveis (minha favorita é justamente de Dom Casmurro: `Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos`). Não que Góes devesse, necessariamente, utilizar o texto original, que poderia destoar da ambientação moderna (embora isso tenha funcionado para o já citado Romeu + Julieta), ou mesmo tentar criar diálogos à altura do livro (o que seria impossível) – mas ele bem que poderia ter pensado em falas melhores do que `Não tenho amigo algum para te apresentar. Quem eu conheço, você já comeu`.

Além disso, Bento passa boa parte do filme dizendo para Capitu frases como `Por você eu pago qualquer preço` e `Eu te amo muito, sabia?`, o que se torna irritantemente redundante – principalmente se considerarmos que, como se não bastasse, a história ainda conta com uma narração em off do mesmo personagem, que basicamente repete tudo o que já sabemos. E o que dizer da inexplicável falta de memória de Capitu, que, depois de perguntar como Bento pode ter ciúmes de Miguel, insiste em dizer que não entende porque o marido `está estranho`? Aliás, o próprio comportamento de Bento varia de forma pouco verossímil: além de seu ciúme doentio surgir de maneira súbita, há vários momentos em que o sujeito parece `esquecer` sua preocupação com relação à fidelidade da esposa, voltando a ficar inquieto minutos depois. Ao que parece, o filme espera que aceitemos a instabilidade emocional do personagem simplesmente porque já somos familiarizados com seus receios depois de termos lido Dom Casmurro.

Mas Moacyr Góes também falha como diretor: sem conseguir conferir um clima de tensão ou mesmo de inquietação emocional à narrativa, ele se limita a criar planos convencionais e a ilustrar a paixão de seus protagonistas através de várias cenas de sexo, que nada acrescentam à história e que soam repetitivas, já que são `coreografadas` de forma enfadonhamente burocrática e estéril (a única nudez exibida em Dom diz respeito às nádegas de Marcos Palmeira).

Por outro lado, o cineasta estreante se sai melhor ao arrancar boas atuações de seu elenco: Palmeira consegue retratar com competência o ciúme de Bento (as oscilações em seu comportamento são falhas do roteiro, não do ator) e Maria Fernanda Cândido comove ao ilustrar a dor que Capitu sente ao perceber que o marido está convencido de sua traição (que pode ser ilusória, já que Góes respeita ao menos a ambigüidade do livro de Machado). Já Bruno Garcia comprova o carisma exibido em Lisbela e o Prisioneiro, embora seu sotaque lembre muito o de seu personagem no longa de Guel Arraes, o que incomoda um pouco (principalmente se lembrarmos que, lá, o sotaque era utilizado para atingir efeitos cômicos). Fechando o elenco, vem Malu Galli, que, no papel de Heloísa, protagoniza uma das cenas mais emocionais da produção, quando, logo no início, é rejeitada por Bento.

Contando com um desfecho melodramático, infantil e artificial, Dom não se sai muito melhor do que a fraca adaptação de Dom Casmurro que Paulo César Saraceni dirigiu em 1968 – aliás, sua única vantagem com relação à versão anterior é Maria Fernanda Cândido, que cria uma Capitu infinitamente melhor do que aquela vivida por Isabella. Em contrapartida, o filme de Saraceni é bem mais fiel ao original, além de compreender com mais profundidade a proposta de Machado de Assis. Basta dizer que, em certo momento de Dom, o personagem de Bruno Garcia, ao comentar a importância do clássico, diz: `O cara escreve o maior romance da história do país e você só se lembra de que o protagonista era corno?`. Talvez Moacyr Góes devesse ler o livro novamente.
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21 de Setembro de 2003

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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