Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
10/02/2006 | 09/12/2005 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
128 minuto(s) |
Dirigido por Stephen Gaghan. Com: George Clooney, Matt Damon, Alexander Siddig, Jeffrey Wright, Christopher Plummer, Chris Cooper, Amanda Peet, William Hurt, Tim Blake Nelson, Sonnell Dadral, Mazhar Munir, Amr Waked, Max Minghella.
“Quando um país que tem 5% da população mundial é responsável por 50% dos gastos militares do planeta, é porque seu poder de persuasão está em declínio.”
Desde que Star Wars: Uma Nova Esperança encerrou o ciclo do Cinema norte-americano politicamente engajado, em 1977, Hollywood vinha produzindo cada vez menos filmes que assumissem riscos políticos ou que simplesmente questionassem a linha geral de pensamento de uma sociedade basicamente consumista e obcecada com o entretenimento. Houve momentos, inclusive, que “fazer pensar” era um objetivo temerário, já que o que importava era manter o público rindo e com a mente distante de qualquer tipo de problema. Era a concretização absoluta da filosofia “Make’Em Laugh” defendida por Donald O’Connor em Cantando na Chuva.
Foi então que os aviões destruíram o sentimento de invulnerabilidade dos norte-americanos, despertando, no processo, um monstro que enxergou, nos atentados, a oportunidade de sedimentar as políticas conservadoras e elitistas dos Republicanos – e, com isso, dividiu o país em dois, ressuscitando o engajamento da classe artística. Neste sentido, o 11 de setembro de 2001 teve o mesmo efeito sobre os cineastas contemporâneos que a Guerra do Vietnã e Watergate exerceram sobre os realizadores no final da década de 60 e primeira metade da de 70. Somente nos dois últimos anos, filmes como A Intérprete, Boa Noite e Boa Sorte, Fahrenheit 11 de Setembro, Enron: The Smartest Guys in the Room, O Jardineiro Fiel, Munique, Diários de Motocicleta e O Senhor das Armas, entre vários outros, vieram fazer companhia a obras importantes como A Conversação, Apocalypse Now, Taxi Driver, Todos os Homens do Presidente, Os Três Dias do Condor, A Trama e O Candidato, para citar apenas alguns exemplos. E é nesta nova onda de filmes políticos que se encaixa o fenomenal Syriana, que traz a contundente fala que abre este texto.
Escrito e dirigido por Stephen Gaghan (responsável pelo roteiro do igualmente complexo Traffic), Syriana traça um amplo painel das relações profundamente obscuras entre governos e empresas de vários países visando à exploração e à comercialização do petróleo. Para isso, Gaghan (inspirado no livro See no Evil, de Robert Baer) acompanha mais de uma dezena de personagens em vários pontos do planeta, incluindo incidentes ambientados no Irã, na Suíça, na Espanha, em Washington e no Estado do Texas, além, é claro, de um país fictício que provavelmente explica o título (de acordo com a Wikipedia, “Syriana é um nome usado para se referir à Síria e, em outros contextos, como um rótulo arbitrário para nações hipotéticas que se assemelhem em graus diferentes àquele país. (...) Também é um termo usado em Washington para descrever uma remodelação hipotética do Oriente Médio”.)
Muito mais ambicioso do que Traffic em sua estrutura narrativa, Syriana salta de um lugar a outro sem se preocupar em facilitar a experiência para o espectador: não há, aqui, uma lógica visual que, como no filme de Soderbergh, situe o público quanto à história que está acompanhando em determinado momento – e, assim, é bastante provável que muitos saiam do cinema sem compreender exatamente todas as sutis relações entre os personagens (e que ficam muito mais claras em uma segunda visita ao longa). No entanto, assimilar todas aquelas ligações não é realmente importante – e aí é que reside o brilhantismo do roteiro de Gaghan: mais relevante do que entender que uma investigação liderada pelo advogado vivido por Jeffrey Wright acabará influenciando na decisão da CIA em cortar laços com o agente de George Clooney é perceber, mesmo que “instintivamente”, como uma decisão corporativa pode levar um jovem muçulmano a se tornar um terrorista suicida – e isto o filme consegue fazer de forma inequívoca. Trata-se de um roteiro inteligente, estruturado com maestria e que exige que o público pense, em vez de se limitar ao papel de espectadores passivos.
Quando a fusão entre duas empresas de exploração de petróleo é anunciada, por exemplo, uma investigação por parte do governo norte-americano tem início a fim de determinar se o negócio fere alguma lei federal ou se houve tráfico de influência ou mesmo suborno no processo. No entanto, como logo percebemos, o governo quer que a fusão seja concretizada, já que isso aumentará a influência do país no Oriente Médio, resultará em novos empregos e – o mais importante – facilitará o acesso ao cada vez mais escasso petróleo. Assim, de maneira direta ou indireta, são as corporações que estabelecem as políticas oficiais, conferindo um poder cada vez maior aos burocratas e executivos cujo único interesse é o lucro, não o bem comum. Por outro lado, é inevitável que a atuação ianque em uma região já naturalmente explosiva acabe envolvendo os fundamentalistas religiosos que, por sua vez, utilizam o Corão para recrutar jovens insatisfeitos que, sem abrigo, trabalho ou comida, encaram a religião como solução para todos os seus problemas, transformando-se eventualmente em soldados dispostos a morrer pela Fé.
Desempenhando papel de protagonista em um jogo perigoso e sem a menor ética, o governo dos Estados Unidos não hesita em interferir em questões internas de outras nações quando seu interesse é ameaçado – daí guerras como a do Golfo, a invasão ao Iraque e mesmo a negativa em assinar o tratado de Kyoto. Para ilustrar esta visão inescrupulosa que os ianques têm das “relações internacionais” (entre aspas, mesmo), Syriana cria a figura trágica do Príncipe Nasir Al-Subaai que, depois de ceder os direitos de exploração de petróleo em seu país à China, se vê na mira de agentes da CIA – e, em certo instante, ele explica a situação da seguinte maneira a seu conselheiro norte-americano:
“O seu Presidente liga para o meu pai (o Sheik) e diz: ‘Estou com uma alta taxa de desemprego no Texas, no Kansas e em Washington!’. Um telefonema depois e nós estamos roubando de nosso próprio programa social para pagar por aviões superfaturados. (...) Eu aceito a oferta dos chineses, a maior oferta, e de repente sou um terrorista, um comunista sem religião”.
O discurso acima, diga-se de passagem, é feito de maneira espetacularmente incisiva pelo ator Alexander Siddig, que confere ao personagem uma dignidade inquestionável sem cair na tentação de “ocidentalizá-lo”, tornando-o mais palatável para um público que não compreende uma cultura tão diferente da própria. Aliás, o elenco de Syriana é brilhante: Jeffrey Wright, como o advogado Bennett Holiday, constrói um arco dramático admirável, estabelecendo seu personagem como um sujeito aparentemente idealista que, no entanto, tem uma ambição tão impiedosa quanto a de seus superiores. Enquanto isso, Matt Damon encarna a única figura (além do Príncipe Nasir) cujos princípios éticos se mostram mais firmes, embora ele também demonstre uma visão empresarial impecável (e sua conversa com o Príncipe no deserto, quando este lhe oferece um negócio lucrativo obviamente como compensação por uma tragédia pessoal, é impactante e inesquecível). E é impossível ignorar a transformação física de George Clooney, que surge como veterano agente da CIA que, depois de décadas atuando como peão em um jogo cujos propósitos obscuros procurava não indagar, comete o erro de finalmente questionar os interesses de seus superiores, tornando-se imediatamente uma ameaça aos sujos burocratas travestidos de espiões que compõem a pavorosa Agência Central de Inteligência.
Incluindo um subtexto curioso sobre as relações entre pais e filhos (Damon e o filho morto; Clooney e o filho frustrado; Wright e o pai alcoólatra e crítico; o Sheik e os filhos em disputa pelo poder), que parecem refletir as relações entre países, corporações e os “civis” presos entre o fogo cruzado, Syriana é um filme espetacular que deve ser admirado por sua ambição política e social. Longe de representar uma experiência emocional, o longa exige do espectador uma dedicação semelhante àquela requerida por obras como Todos os Homens do Presidente e JFK – A Pergunta que Não Quer Calar – e, se você estiver disposto(a) a mergulhar na discussão levantada pela história, será fartamente recompensado(a).
10 de Fevereiro de 2006