Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
25/09/1998 | 01/01/1970 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
96 minuto(s) |
Dirigido por Woody Allen. Com: Woody Allen, Kirstie Alley, Judy Davis, Billy Crystal, Robin Williams, Julia-Louis Dreyfus, Julie Kavner, Elisabeth Shue, Demi Moore, Bob Balaban, Hazelle Goodman, Mariel Hemingway, Amy Irving, Eric Lloyd, Tobey Maguire, Stanley Tucci, Philip Bosco, Richard Benjamin e Eric Bogosian.
Como artista, Woody Allen é um paradoxo vivo: como é possível que, apesar de vir interpretando o mesmo personagem há mais de 20 anos, ele consiga se reinventar a cada novo filme, introduzindo sua já clássica persona cinematográfica em histórias que, independente de sua complexidade, são verdadeiras sessões de auto-análise? E como seu alter-ego em celulóide, sempre ansioso, agitado e gesticulando muito, ainda é capaz de nos fazer rir depois de tantos anos?
A resposta: Allen não é apenas um cineasta dotado de extrema cultura e de um timing cômico irrepreensível. Ele é, antes de tudo, um dos mais talentosos roteiristas que o Cinema já produziu - e não estamos exagerando. Tomemos, como exemplo, Desconstruindo Harry, um dos mais ácidos, inteligentes e divertidos roteiros que este diretor já escreveu (e vale lembrar que estamos falando do responsável por verdadeiras obras-primas como Manhattan e Hannah e Suas Irmãs). Aqui, o alter-ego de Woody Allen se chama Harry Block (percebam a simetria dos nomes, ambos com 10 letras - 5 para o nome e 5 para o sobrenome). Block é um escritor de sucesso que, infelizmente, se encontra no meio de um terrível `bloqueio` que o impede de trabalhar em seu novo livro. É quando sua antiga Faculdade (da qual foi expulso) resolve homenageá-lo e ele começa a procurar por alguém que aceite acompanhá-lo até a cerimônia.
Todavia, por mais bem-sucedido que ele seja em sua vida profissional, sua vida particular é um verdadeiro caos. Depois de passar por `6 psiquiatras e 3 esposas`, Block ainda é um homem cheio de neuroses e conflitos. Para piorar, ele tem a mania de basear seus livros em acontecimentos reais de sua vida pessoal - o que faz com que suas ex-esposas, sua meia-irmã e seu cunhado nutram verdadeira aversão por ele. Durante sua trajetória em busca de uma companhia para a cerimônia de homenagem, o escritor acaba reencontrando todos os personagens que criou ao longo dos anos, numa referência mais do que óbvia ao clássico Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman.
A partir destes elementos aparentemente dramáticos, Woody Allen constrói uma comédia deliciosamente mordaz - talvez uma das mais `rasgadas` de toda sua carreira. Desta vez, o diretor não economiza nos palavrões e nas referências sexuais mais explícitas. Em certo momento, por exemplo, ele pergunta para a prostituta Cookie, vivida pela ótima Hazelle Goodman: `Você já ouviu falar dos buracos negros?`. Sem pestanejar, a prostituta (que é negra) responde: `É assim que eu ganho a vida.`. Menos sutil do que de costume, seu roteiro ainda traz as costumeiras reflexões, sempre hilárias, sobre morte, sexo e religião.
Aliás, este é o aspecto mais interessante de Desconstruindo Harry: à medida em que Harry Block revisita sua galeria de personagens, Woody Allen faz o mesmo. Lá estão, por exemplo, o marido que se envolve com a cunhada (de Hannah e Suas Irmãs; a prostituta vulgar, porém sempre solícita (de Poderosa Afrodite; e os judeus ortodoxos (de praticamente todos os seus filmes). Além disso, ele ainda encontra tempo para disparar seus torpedos contra Hollywood e contra sua ex-esposa (ou alguém duvida que a personagem de Kirstie Alley, uma mulher vingativa que impede Block de visitar seu filho, seja francamente inspirada em Mia Farrow?).
No entanto, não pense que este filme foi engendrado como uma vingança particular de Allen contra seus desafetos. Na verdade, o alvo das piadas mais cruéis de Desconstruindo Harry é o próprio cineasta. Praticamente todos os personagens deste filme disparam ofensas contra seu personagem - as quais, certamente, o próprio Woody Allen já escutou na vida real. Seu Harry Block é retratado como uma espécie de `maníaco sexual` completamente obcecado em conquistar mulheres cada vez mais jovens. Além disso, ele não se acanha em usar descaradamente todas as pessoas com as quais se envolve e, para tornar as coisas ainda piores, depois de usá-las na vida pessoal o escritor ainda torna a usá-las como material de pesquisa, expondo suas intimidades em seus livros - costume que Allen já foi amplamente acusado de utilizar em suas obras.
Porém, o filme não é centrado apenas na figura de seu protagonista. O roteiro encerra, ainda, pequenas histórias `extraídas` dos livros de Harry, como a do ator (vivido por Robin Williams) cuja vida se encontra `fora de foco` - condição representada, no filme, pela própria falta de foco do personagem, cuja imagem se encontra sempre embaçada - e como a da esposa que descobre, depois de 30 anos de casada, um terrível segredo sobre o passado de seu marido. Como de costume, cada um destes personagens é interpretado por um `nome` de Hollywood, desde Billy Crystal até Demi Moore.
Mas o grande destaque fica mesmo por conta da estrutura narrativa adotada pelo roteiro. Sua apresentação das situações abordadas neste filme é tão complexa que ele merece ser visto mais de uma vez apenas para que possamos compreender todas as nuanças de seus mais de 20 personagens. Um exemplo: Demi Moore interpreta uma personagem criada por Harry Block para um de seus best-sellers. À primeira vista, ela é uma versão romantizada da ex-esposa de Block. No entanto, à medida em que a história se desenvolve, descobrimos que ela também encerra traços da personalidade da meia-irmã do escritor, sendo, portanto, um amálgama destas duas outras personagens. É ou não é intrigante?
Desconstruindo Harry é, em suma, um programa obrigatório para os apreciadores do bom cinema. Repleto de bom humor e fantasia - e regado por fartas doses de auto-crítica -, este filme merece lugar de destaque em qualquer antologia sobre a produção cinematográfica da década de 90. Ponto para Harry Block... digo: para Woody Allen.
30 de Junho de 1999