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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
25/01/2013 01/01/1970 2 / 5 3 / 5
Distribuidora
Fox
Duração do filme
145 minuto(s)

Lincoln
Lincoln

Dirigido por Steven Spielberg. Com: Daniel Day-Lewis, Sally Field, Tommy Lee Jones, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, John Hawkes, Jackie Earle Haley, Bruce McGill, Tim Blake Nelson, Jared Harris, Lee Pace, Michael Stuhlbarg, Lukas Haas, David Oyelowo, S. Epatha Merkerson.

Lincoln é uma cinebiografia que se apresenta como objetiva, realista e sóbria, mas que não hesita em usar uma sequência de sonho e em tratar o personagem-título não como um homem, mas como um Mito. Usando como ponto de partida a votação da 13ª. Emenda à Constituição norte-americana, que aboliria a escravatura, o filme de Spielberg enxerga o presidente com a reverência dedicada a alguém que se encontra na moeda de seu país em vez de tentar explorar quem era o homem que conquistou esta distinção. Não é, portanto, um retrato multidimensional de um indivíduo complexo, mas uma fábula. Um letreiro de “Era uma vez...” em seu início não ficaria deslocado.


Com um breve prólogo ao estilo O Resgate do Soldado Ryan que mostra brevemente os conflitos da Guerra Civil que conferem urgência à votação, Lincoln logo passa a se concentrar nos bastidores do poder e nos salões de Washington enquanto busca retratar como a 13ª. Emenda foi conquistada não através de negociações ou debates, mas de subornos, pressões e estratégias nem sempre admiráveis, numa lógica inquestionável de “o fim justifica os meios” que, ao seu modo, é a única tentativa feita pelo filme de tentar exibir alguma complexidade moral (o que, claro, é eliminado simplesmente por sabermos que o fim em questão – o fim da escravidão – é nobre o bastante para justificar as táticas empregadas para alcançá-lo). Escrito por Tony Kushner, responsável pelo roteiro de Munique (único filme no qual Spielberg foi capaz de criar um protagonista realmente ambíguo do ponto de vista moral), Lincoln demonstra também como os Republicanos despencaram ao longo dos últimos 150 anos – e não é absurdo imaginar que homens como Lincoln (Day-Lewis) e Thaddeus Stevens (Jones) olhariam para Mitt Romney, Rick Perry, Rick Santorum, Newt Gingrich, Sarah Palin, Bush e Karl Rove com repugnância absoluta.

Determinado a eliminar qualquer traço de dubiedade moral presente no roteiro de Kushner, porém, Spielberg decide investir numa abordagem caricatural de Abraham Lincoln – e não é à toa que frequentemente enfoca o personagem em perfil, remetendo à sua iconografia tradicional, mítica. Da mesma maneira, tudo que Lincoln diz é acompanhado por um tema musical evocativo de grandeza e fotografado através de luzes solenes. Aliás, até mesmo os (frequentes) casos contados pelo protagonista para ilustrar seus argumentos são vistos como indiscutíveis pérolas de sabedoria, indicando que, para o cineasta, a ideia de Lincoln como “homem comum” só pode ser expressa através de maiúsculas: “Vejam! Ele era um Homem Comum!”.

E isto é uma pena, já que Daniel Day-Lewis faz sua parte de maneira admirável para sugerir uma vulnerabilidade subjacente à força exibida por Lincoln diante daqueles que o cercam. Empregando uma voz rouca, suave, e adotando uma expressão corporal que sugere toneladas de peso sobre os ombros do presidente, o ator deixa de lado todas as suas tendências aos grandes maneirismos que funcionaram tão bem em obras como Sangue Negro e Meu Pé Esquerdo, adotando, em vez disso, uma estratégia minimalista e repleta de sutilezas. Que, claro, Spielberg, o diretor de fotografia Janusz Kaminski e o compositor John Williams anulam ao tratarem cada cena como um Grande Momento. Aqui, Lincoln não tem permissão de existir na realidade; cada quadro é fotografado e musicado com preciosismo único – e se o resultado é esteticamente belo, acaba também por conferir caráter de Cinema, de fantasia, até mesmo aos momentos mais íntimos (e observem como, por exemplo, uma conversa entre Lincoln e a esposa ocorre numa linda contraluz, emprestando caráter de “palco para momento dramático” ao aposento em vez de simplesmente retratá-lo como... bem, um aposento). Da mesma maneira, Williams sente-se compelido a criar uma trilha que não comenta a narrativa, mas a constrói – e, para isso, salta de temas dramáticos e grandiosos a outros cômicos que (como na sequência que traz um sujeito correndo do Congresso à Casa Branca) gritam para o espectador a informação de que “agora esta cena é engraçada, ok?”. Para encerrar, se Day-Lewis surge magistral e Tommy Lee Jones confere dignidade a um personagem obrigado a sacrificar a convicção em nome do pragmatismo, Sally Field opta apenas por assumir uma postura que indica ao público que ali se encontra uma Atriz – e na cena em que todos no balcão choram diante do resultado da votação, Field opta por uma expressão completamente inadequada de choque cujo único propósito é demonstrar estar atuando.

Subestimando a inteligência do espectador do início ao fim, Spielberg ainda busca mastigar cada pedaço de informação para o público: além das inúmeras legendas indicando nomes e funções de personagens, ele constantemente martela incidentes e dados que julga relevantes. Assim, se em certo instante vemos uma enfermaria repleta de soldados com membros amputados, logo depois o cineasta aposta no choque barato ao enfocar uma vala na qual dezenas de braços e pernas são atirados. Da mesma forma, durante a votação final ele traz vários planos-detalhe que exibem contagens feitas por personagens diferentes acerca do número de votos restantes para que a Emenda seja aprovada, num recurso dramático óbvio e ofensivo.

O que não o impede, claro, de alterar a História de acordo com seus interesses particulares. Não que a veracidade histórica seja fundamental para uma obra de ficção (mesmo “inspirada em fatos reais”): ao escrever sobre Gladiador, por exemplo, apontei diversos absurdos do filme, mas concluí que “todos estes equívocos históricos poderiam ser perdoados caso o filme conseguisse sobreviver ao menos como obra de ficção”. No entanto, ao considerar os propósitos de Lincoln, as liberdades tomadas por Spielberg e Kushner se tornam bem mais graves, já que, com o propósito de endeusarem o personagem-título, simplesmente ignoram passagens absurdas de sua biografia, como a pesada censura imposta a órgãos de mídia democratas (incluindo o fechamento de redações, a destruição de máquinas e a prisão de jornalistas) e até mesmo a prática de tortura contra cidadãos (muitos britânicos) suspeitos de colaborarem com os confederados. Além disso, o filme trata Lincoln praticamente como o único e grande responsável pelo fim da escravidão nos Estados Unidos, ignorando a colaboração fundamental de dezenas de outras pessoas e dos próprios negros, que, aqui, são mais uma vez vistos (ao estilo do nojento Histórias Cruzadas) como criaturas patéticas à espera de um Grande Homem Branco que venha resgatá-los. Aliás, até mesmo o admirável Thaddeus Stevens é visto como obstáculo em seu “radicalismo” contra a escravidão – e uma das primeiras tarefas de Lincoln é domar o fantástico colega. Para ser sincero, eu não me espantaria caso o longa acabasse por incluir alguma referência às atividades do protagonista no campo da eliminação de vampiros.

Melodramático como de hábito (o que não é um defeito por si só, funcionando em filmes como Império do Sol e moderadamente em A Lista de Schindler, por exemplo), Spielberg finalmente parte para a overdose de sacarina no terceiro ato do filme, quando, após a aprovação da 13ª. Emenda, decide incluir a morte de Lincoln no filme embora, segundos antes, tivesse criado o momento perfeito para encerrar a narrativa (a caminhada do presidente, em contraluz, em um corredor rumo ao teatro no qual seria assassinado). O objetivo é claro: criar mais algumas cenas de grande impacto emocional – incluindo o filho de Lincoln abraçando desesperado algumas colunas de madeira – que possam enviar o espectador para fora da sala de projeção secando as lágrimas.

É uma estratégia artificial, infantil e maniqueísta como o plano que traz o perfil de Lincoln sobreposto à imagem da chama de uma vela – um dos instantes mais cafonas de toda a filmografia de Spielberg. Obviamente determinado a se transformar em um novo John Ford (algo que já tentara fazer em seu trabalho anterior, o pavoroso Cavalo de Guerra), o diretor deveria, em vez disso, buscar emular o trabalho de um outro cineasta admirável que há um bom tempo não dá as caras no Cinema em live-action: Steven Spielberg. Estou com saudades dele.

26 de Janeiro de 2013

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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