Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
14/01/2016 | 23/12/2015 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Paramount Pictures | |||
Duração do filme | |||
130 minuto(s) |
Dirigido por Adam McKay. Roteiro de Charles Randolph e Adam McKay. Com: Steve Carell, Christian Bale, Ryan Gosling, Marisa Tomei, Rafe Spall, Hamish Linklater, Jeremy Strong, John Magaro, Finn Wittrock, Adepero Oduye, Karen Gillan, Margot Robbie, Selena Gomez, Melissa Leo e Brad Pitt.
Suponham que eu tivesse produzido um filme por 200 milhões de dólares e, depois de finalizar o projeto, constatasse que o resultado desastroso seria incapaz não só de atrair um único espectador, mas mesmo de convencer qualquer dono de cinema a exibi-lo. Agora imaginem que, ciente de ter um prejuízo imenso em mãos, eu mesmo assim o vendesse para outros produtores sem permitir que soubessem o que estavam comprando, já que, confiantes no sucesso de todos os longas que produzi nos anos anteriores, estariam seguros de estar fazendo um bom investimento. Mais: e se eu dissesse que, neste cenário, o Cinema em Cena seria o único site de críticas da Internet mundial e que eu o usaria para, assim que o tal filme fosse vendido, publicar um texto revelando sua podridão, condenando seus novos donos a arcar com a perda? Absurdo e imoral, certo? Pois foi basicamente isso que as principais instituições financeiras fizeram na segunda metade dos anos 2000, praticamente levando toda a economia mundial ao colapso.
Obra excepcional que poderia formar uma sessão tripla revoltante ao lado de Margin Call e do documentário Trabalho Interno, A Grande Aposta conta justamente a história por trás da crise que tomou conta do planeta em 2008 ao nos apresentar a alguns personagens (baseados em figuras reais) que não só previram o que estava para acontecer como usaram o mercado contra si mesmo, apostando no colapso do sistema financeiro norte-americano que, agindo de forma criminosa graças à falta de regulamentação, transformou títulos hipotecários, as dívidas colateralizadas a partir destes e outros instrumentos especulativos em uma bomba-relógio com alto poder destrutivo.
Hein? Você já sentiu as pálpebras pesando apenas ao ler a expressão “títulos hipotecários”? Pois acredite: este é um risco que o excelente roteiro de Charles Randolph e do diretor Adam McKay antecipou e se preocupou em contornar. Estruturado quase como uma comédia, A Grande Aposta tem plena consciência de que a terminologia adotada pelo mercado financeiro (e criada justamente para confundir os leigos), embora fundamental para a trama, é também uma armadilha narrativa das mais complicadas e, assim, emprega analogias bastante didáticas para explicá-las, divertindo também ao assumir estar disposto a qualquer estratégia para evitar a monotonia – como, por exemplo, ao trazer celebridades como Selena Gomez, Anthony Bourdain e Margot Robbie decifrando os termos para o público (a ponta de Robbie traz o bônus de remeter a outro título sobre os excessos do mundo financeiro, O Lobo de Wall Street).
Desta forma, ao longo de seus 130 minutos, esta produção traz personagens pedindo que outros repitam informações, quebrando a quarta parede (ou seja: falando diretamente com o espectador) e assumindo o papel de guias de um universo tomado por discussões sobre “credit swaps”, “CDOs” e “classificação de risco”. Dinâmico em sua linguagem, o longa usa múltiplos narradores para manter a agilidade da narrativa e – o mais instigante – constantemente retrata incidentes a partir do ponto de vista destes (quando o investidor interpretado por Steve Carell diz estar se sentindo em “um vídeo de Enya”, vemos passarinhos cantando e casais se beijando na rua, por exemplo).
Este dinamismo fundamental de A Grande Aposta pode também ser observado na ótima montagem de Hank Corwin, que frequentemente investe em sequências paralelas, jump cuts (cortes secos) e em flash forwards que mantêm a plateia ativamente envolvida no processo de (des)construir o filme – e a elegância do trabalho de Corwin pode ser constatada, para citar apenas um momento, na cena em que Carell discute a morte do irmão com a esposa pelo celular e subitamente a conversa com esta no presente é intercalada com outra que manteve com aquele no passado. Da mesma maneira, Adam McKay e o diretor de fotografia Barry Ackroyd adotam uma câmera sempre inquieta que, com seus quadros oscilantes e zooms recorrentes, sugerem ao mesmo tempo tensão e vitalidade. Para completar, o fabuloso design de som encanta ao usar a falta de linearidade da narrativa para criar efeitos surpreendentes – como, por exemplo, ao adiantar os risos que surgirão na cena seguinte para criar, na conversa entre Carell e um especialista inescrupuloso, um efeito de claque de sitcom diante do absurdo das revelações feitas por este.
São decisões como esta, diga-se de passagem, que comprovam a vantagem de se ter um diretor especializado em comédias (O Âncora, Quase Irmãos) comandando um projeto como este, já que McKay não hesita em acrescentar toques de nonsense a cenas que outros encarariam como puramente dramáticas: em certo instante, quando dois personagens confrontam uma executiva de uma agência de risco, esta (interpretada por Melissa Leo) surge usando peculiares óculos escuros em função de uma visita ao oftalmologista, o que lhe confere um aspecto absurdo enquanto serve de comentário sobre a cegueira das instituições para o desastre que estavam fomentando. Já em outro momento, certo incidente importante é exposto pelos próprios personagens como sendo diferente do que aconteceu na realidade, já que a versão vista no filme é mais interessante – o que permite que o longa possa ao mesmo tempo ser honesto sobre as liberdades criativas que toma e ainda se beneficiar destas. Por outro lado, o cineasta compreende a seriedade do que está retratando, buscando, por isso, nos lembrar sempre do custo humano de toda aquela especulação ao trazer imagens de pessoas que perderiam seus lares e suas economias na crise que estava por vir.
Contando com um elenco coeso que cria personagens marcantes tanto em suas características físicas quanto emocionais, A Grande Aposta traz Steve Carell em mais uma bela atuação dramática (mesmo com fortes tons cômicos) depois de seu desempenho em Foxcatcher. Eficiente ao retratar aquele que serve como a bússola moral da obra, mostrando-se repugnado diante da ganância e da irresponsabilidade de seus pares, Carell faz um ótimo contraponto ao executivo vivido por Ryan Gosling, que, mesmo demonstrando compreender os abusos de Wall Street, não se preocupa em fingir ser diferente dos colegas – e sua honestidade ao admitir isso acaba tornando-o paradoxalmente simpático aos olhos do espectador. E se Brad Pitt faz praticamente uma ponta glorificada (ele é um dos produtores do projeto, vale apontar), Christian Bale oferece a performance mais marcante do longa ao encarnar Michael Burry, impressionando tanto em sua composição física (movendo predominantemente o olho direito enquanto mantém o esquerdo quase imóvel a fim de sugerir o olho de vidro do Burry verdadeiro) quanto psicológica ao demonstrar os efeitos antissociais da síndrome de Asperger, já que evita encarar seus interlocutores, murmura para si mesmo e sorri em momentos “errados” por ser incapaz de compreender sutilezas nas expressões daqueles que o cercam. (E é igualmente importante constatar como McKay mantém Bale sozinho no quadro em praticamente todas as cenas, acentuando seu isolamento social.)
Sem buscar disfarçar a própria raiva e o sentimento de revolta diante da natureza criminosa do sistema financeiro, A Grande Aposta revela as consequências da falta de regulação do mercado que dez em cada dez liberais discípulos de Milton Friedman e Alan Greenspam encaram como mandamento bíblico e que permite, por exemplo, que funcionários de órgãos “fiscalizadores” (entre aspas mesmo) confraternizem com membros das corporações que supostamente deveriam fiscalizar (ou mesmo que larguem seus empregos para trabalhar para estas empresas, já que não há nenhuma punição para este tipo de atitude). Expondo a perigosa combinação de arrogância e estupidez que definia muitos daqueles colocados em posições-chave no mercado financeiro, o filme ainda denuncia a cumplicidade da mídia – mesmo que apenas por omissão – diante dos descalabros do mercado e também sua disposição para ajudar Wall Street a culpar, pelos resultados de suas próprias ações, justamente aqueles que foram por estas afetados: imigrantes, famílias de classe média e mesmo professores.
E assim, quando vemos alguns indivíduos morando sob uma ponte em um rápido plano no terceiro ato da projeção, somos obrigados a reavaliar toda a dimensão de um sistema completamente corrompido e a indagar quem são de fato os grandes parasitas da sociedade moderna: os miseráveis que os conservadores adoram culpar pelos gastos com programas de auxílio por parte do Estado ou os financistas e especuladores do infame “mercado”, que, em busca de lucros exorbitantes para suas corporações e para si mesmos, não hesitam em assumir posturas criminosas e de natureza sociopata que não só dificilmente são punidas como acabam sendo mesmo recompensadas pelos mesmos que deveriam reprimi-las?
Com isso, A Grande Aposta se solidifica não apenas como um grande filme, mas como um protesto importantíssimo, estabelecendo-se como uma das melhoras obras de 2015 - mesmo enviando o espectador para fora da sala de projeção com um profundo sentimento de revolta, desânimo e desilusão.
14 de Janeiro de 2016