Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
17/03/2016 | 04/03/2016 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Disney | |||
Duração do filme | |||
106 minuto(s) |
Dirigido por Byron Howard, Rich Moore e Jared Bush. Roteiro de Jared Bush e Phil Johnston. Com as vozes de Ginnifer Goodwin, Jason Bateman, Idris Elba, Jenny Slate, Nate Torrence, Bonnie Hunt, Don Lake, Tommy Chong, J.K. Simmons, Octavia Spencer, Alan Tudyk, Shakira e Maurice LaMarche.
Durante o segundo ato de Zootopia, enquanto acompanhava as investigações da coelhinha policial Judy Hopps envolvendo o desaparecimento de uma lontra, comecei a pensar em O.J. Simpson. Estranho, eu sei, mas é que ao acompanhar a discussão desenvolvida pela nova animação da Disney sobre a diferença entre a natureza e o condicionamento pela sociedade, lembrei (provavelmente influenciado por estar assistindo à série sobre o julgamento) do crime bárbaro cometido pelo ex-jogador de futebol americano e mais uma vez me espantei com a facilidade com que o sujeito atirou fora sua própria vida ao destruir de forma cruel outras duas. Pessoas que agem como Simpson comprovam que, por mais que nos consideremos evoluídos e adaptados ao convívio, há, em algum lugar de nossa construção, o impulso de reverter à barbárie, à irracionalidade. E por baixo de sua superfície colorida e alegre, Zootopia toca com sensibilidade na contradição entre o que expomos, o que sentimos, quem somos e o que deixamos escapar.
Estes temas já começam a ser tratados na primeira cena do longa, que traz a pequena Judy encenando um espetáculo no colégio no qual explica como predadores e presas, antes inimigos, aprenderam a dividir os mesmos espaços e se tornaram capazes de criar uma sociedade quase utópica (como deixa claro o nome da metrópole que abriga a ação). A realidade, porém, não é bem assim: por serem tão pequenos, coelhos jamais conseguiram ser aprovados na força policial local – uma barreira que Judy rompe com determinação. No entanto, ao ser relegada à condição de guarda de trânsito quando sonhava em ser detetive, ela acaba descobrindo uma forma de se destacar ao conseguir assumir a investigação sobre o sequestro de uma lontra – uma entre catorze predadores desaparecidos na cidade. Auxiliada (a contragosto) pela raposa Nick, a heroína tem 48 horas para solucionar o caso antes de ser obrigada a se demitir por seu impaciente Chefe Bogo.
Mantendo a boa qualidade de seus projetos desde que John Lasseter se tornou consultor artístico do estúdio, a Disney cria, aqui, mais um de seus universos inventivos que exploram cuidadosamente a premissa básica: neste caso, a de uma cidade construída por e para animais. Assim, o design de produção de David Goetz concebe uma metrópole cujos bairros se apresentam, na verdade, como diferentes habitats, da gelada Tundralândia ao tropical Distrito Florestal. Inserindo vegetação e água até mesmo nas paisagens mais urbanas (numa indicação da harmonia dos bichos com a Natureza), Goetz e sua equipe obviamente se divertem ao imaginar trens que trazem portas de vários tamanhos para passageiros tão diversos; elevadores para hamsters que, claro, se apresentam como tubos coloridos transparentes; carros que refletem a forma de seus ocupantes e estações ferroviárias decoradas com torres que remetem a cipós gigantes.
Enquanto isso, os roteiristas Jared Bush e Phil Johnston, trabalhando a partir de argumento concebido ao lado de outras cinco pessoas (incluindo Jennifer Lee, de Frozen), investem num humor que, repleto de referências (as minhas favoritas, claro, são aquelas envolvendo O Poderoso Chefão e Breaking Bad), consegue também transformar piadas que poderiam soar apenas óbvias em cenas que têm coragem de explorar até o limite suas premissas (resultando no melhor momento do filme: a visita ao departamento de trânsito). Além disso, é interessante notar como o filme é hábil ao criar uma série de gags que se revelam simultaneamente explícitas e sutis ao levar a protagonista a visitar um campo de nudismo – e é fácil entender por que as posições assumidas pelos naturalistas horrorizam a coelha embora pareçam perfeitamente inocentes para o espectador.
E por falar em Judy, é notável como mais uma vez temos uma animação estrelada por uma personagem feminina forte que não vive em função do herói e nem se deixa definir por aspirações românticas – uma preocupação recorrente nos projetos recentes de Lasseter, como comprovam A Princesa e o Sapo, Enrolados, Valente, Detona Ralph, Frozen, Tinker Bell e o Monstro da Terra do Nunca e Divertida Mente. Determinada a superar barreiras sociais (e genéticas), Judy pode até pedir ajuda a Nick, mas jamais permite que este roube seu protagonismo, chegando a salvá-lo em pelo menos duas ocasiões ao longo da projeção. Por outro lado, ela também funciona como um instrumento eficiente para que o filme em si possa discutir não só o sexismo, mas todo tipo de intolerância, já que, sob a aparente harmonia de Zootopia, há uma clara tensão entre as espécies e, principalmente, entre ex-presas e ex-predadores – o que não quer dizer que este ou aquele tipo de animal seja retratado segundo os estereótipos estabelecidos por séculos de fábulas (as raposas, por exemplo, aqui praticam mas também sofrem bullying por serem consideradas “traiçoeiras”).
Em boa parte do tempo, claro, este tema é desenvolvido de forma sutil, permitindo que os adultos captem as nuances com mais facilidade (em certo ponto, por exemplo, Judy explica que “só um coelho pode chamar outro de ‘fofo’”). Da mesma forma, quando um(a) policial faz um discurso autocrítico sobre ter falhado ao tratar uma espécie de maneira preconceituosa, não é necessário muito esforço para contextualizar a fala diante da recorrente violência policial sofrida por minorias – e, neste caso, é igualmente importante reparar como o(a) personagem em questão reconhece ter agido com preconceito mesmo se considerando esclarecido(a), refletindo o racismo institucional infelizmente ainda tão presente no mundo.
Como se não bastasse, Zootopia ainda aborda o modo como o medo é constantemente empregado para provocar uma submissão da sociedade aos interesses dos poderosos, revelando-se surpreendentemente mais político do que poderíamos imaginar diante do tipo de mensagem inofensiva que a Disney costuma apresentar em seus longas. Para completar, o roteiro embala tudo em uma trama policial bem construída em seus mistérios e revelações.
Ainda assim, apesar de todas as virtudes da obra, nada supera as danadas das preguiças. Às vezes, uma piada inspirada é mais memorável do que a mais profunda das mensagens.
21 de Março de 2016