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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
18/06/2016 26/02/2016 5 / 5 3 / 5
Distribuidora
Duração do filme
80 minuto(s)

They Look Like People
They Look Like People

Dirigido e roteirizado por Perry Blackshear. Com: MacLeod Andrews, Evan Dumouchel, Margaret Ying Drake, Elena Greenlee, Mick Casale e Julia Guo.

Há muitos anos escrevo sobre minhas experiências com a depressão – uma luta que já se converteu em convívio tenso, delicado, mas relativamente estável. Já discuti o tema em textos no blog, na crítica de As Horas e em posts no Facebook. E todas as vezes em que volto ao assunto, sou parabenizado por minha “coragem”, algo que nunca compreendi. Por que abordar uma doença exigiria “coragem”?


A resposta é simples e triste: porque, mesmo que já estejamos em 2016, as doenças mentais representam um imenso tabu. Um tumor é visível em exames de imagem; uma cardiopatia pode ser detectada por aparelhos; um glaucoma resulta numa pressão intraocular aumentada; uma unha encravada faz sangrar e marca a pele ao redor.

Já uma doença mental destrói sem deixar rastros visíveis em aparelhos de ressonância magnética, raios-X ou exames de sangue. Suas mordidas são sentidas pelo paciente, bem como as dores que as acompanham e as cicatrizes que deixam – e, no entanto, para um mero observador, nada além do relato da vítima serve de comprovação da devastação. Como resultado, discutir a doença torna-se um ato de desafio quando deveria ser apenas um diálogo necessário sobre um mal real. É difícil compreender a dimensão de algo que não vemos e, para alguém que nunca viveu a ameaça de uma patologia psíquica, muitas vezes a solução parece passar apenas pela “força de vontade”. Ora, ninguém se atreveria a acusar alguém com câncer de estar “sendo fraco” ou a sugerir que “bastaria um pouco de esforço para melhorar”, mas se eu ganhasse um comprimido de paroxetina para cada vez que escutei algo similar teria economizado uma fortuna.

They Look Like People é um filme que compreende isso.

Escrito, produzido, fotografado, montado e dirigido pelo estreante Perry Blackshear, este suspense com toques dramáticos (ou seria um drama com toques de suspense?) sabe que para alguém acometido por uma doença mental os sintomas e as dores são tão reais e palpáveis quanto uma hérnia que se projeta no abdômen – e eu ficaria muito surpreso caso descobrisse que o cineasta não tem experiências particulares, suas ou de alguém amado, com a esquizofrenia, a depressão ou a bipolaridade. Sua capacidade de articular o ponto de vista de um paciente é tamanha, aliás, que supera até mesmo o perigoso acúmulo de funções (ele também é o designer de produção) que já derrotou realizadores como Robert Rodriguez (não que este algum dia tenha demonstrado qualquer talento em um projeto que não contasse com a parceria de Tarantino ou Frank Miller).

Com uma trama que serve mais para permitir que Blackshear explore a linguagem ao tentar mergulhar o espectador na mente de seus personagens, o roteiro acompanha Wyatt (Andrews), um homem de cerca de 30 anos de idade que começa a enxergar o mundo à sua volta com uma paranoia crescente ao se convencer de que algum tipo de criatura maligna (demônios? alienígenas?) está infectando os habitantes do planeta e transformando-os em seres igualmente perigosos, numa ameaça similar àquela vista em Os Invasores de Corpos (porcamente refeito há alguns anos). Recém-separado da namorada (que ele desconfia ter sido contaminada), ele se hospeda na casa do amigo de adolescência Christian (Dumouchel), que, por sua vez, tem se dedicado a exercícios de autoajuda para se tornar um indivíduo mais forte, prosperar no emprego e criar coragem para convidar sua bela chefe Mara (Drake) para sair – objetivos que o mantêm cego para a inquietação crescente de Wyatt, que recebe ligações noturnas de um anônimo que o ajuda a se preparar para a guerra que se aproxima.

Obviamente filmado com um orçamento mínimo (não é à toa que os dois atores principais também recebem créditos de produção), They Look Like People não é particularmente notável em seus aspectos visuais: a fotografia muitas vezes falha em manter a coerência da luz dentro de certas cenas, o foco aqui e ali parece ligeiramente incorreto e os enquadramentos ocasionalmente surgem desajeitados sem que isto sugira algum objetivo narrativo particular. Por outro lado, a completa falta de preocupação em respeitar o eixo da câmera é mais do que justificada ao evocar a desorientação vivenciada por Wyatt, ao passo que a montagem se certifica de manter o público tenso através dos cortes inesperados que insistem sadicamente em abandonar cenas quando mais desejamos acompanhá-las até um desfecho que esclareça algo.

No entanto, se há um componente narrativo que merece os maiores créditos pela atmosfera angustiante criada pelo longa, este é o design sonoro de (adivinhem?) Blackshear: absurdamente eficiente ao refletir o tumulto interno de Wyatt, ele combina efeitos sonoros diegéticos e outros de natureza ambígua (ouvimos um sussurro? o estranho “crepitar” aponta a “transformação” de alguém?) que nos mantêm incertos acerca do que ocorre ao redor do rapaz, o que, associado aos elementos de gênero adicionados pelo cineasta, podem apontar para um perigo real sob a aparente esquizofrenia do personagem.

Não que isto interesse de fato: verídico ou resultado de alucinações visuais e auditivas, tudo que ocorre é real para Wyatt, sendo fascinante constatar como mesmo este parece ansioso para receber um diagnóstico que ao menos ofereça uma promessa de tratamento mais eficiente e menos extrema do que os machados e químicos que ele armazena para o caso de uma invasão – e é também perfeito que, no auge de sua sensação de perigo, ele fuja dos mesmos profissionais que antes procurava, já que um dos inconvenientes da paranoia é converter em possível ameaça justamente aqueles que poderiam contribuir para eliminá-la.

Isto, diga-se de passagem, é algo que Christian compreende de forma instintiva – e mesmo que haja algo de autodestrutivo na maneira como busca auxiliar o amigo (afinal, em certo ponto ele menciona ter tentado suicídio no passado), o apoio que oferece demonstra uma sensibilidade que frequentemente falta àqueles que convivem com pacientes com transtornos mentais. (Se é que Wyatt é vitimado por estes, já que o diretor parece ter aprendido uma ou duas lições com Jeff Nichols e seu fantástico O Abrigo.)

Com um clímax tenso, emocionante e que mantém a coerência com tudo que o havia antecipado, They Look Like People é um daqueles filmes que, como Primer e Coherence, parece destinado a se transformar em cult, o que é uma boa notícia por merecer este status, mas também má por sugerir que provavelmente será bem menos visto do que deveria.

18 de Junho de 2016

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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