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O Cinema de Kathryn Bigelow Assinantes

 
 
Muitas são as cineastas que estão em evidência no meio artístico. Mas poucas são aquelas que se identificam com um movimento fora do eixo de vozes que clama por mais justiças entre homens e mulheres. Diretoras cinematográficas como Mira Nair, Sophia Coppola e Jane Campion estão sempre dispostas a discorrer sobre suas vozes e a importância das mulheres na criação cinematográfica - e elas estão sempre com razão, afinal todos sabemos o quanto o cinema (principalmente o norte-americano) é sexista. Lamentável, mas factual.
 
Kathryn Bigelow, ao contrário da maioria das cineastas, não se apega tanto aos engajados movimentos em prol de igualdade, mas indiretamente seu cinema o faz - e com maestria!
 
Se temos o espírito feminino forjado junto a projetos como ENCONTROS E DESENCONTROS e O PIANO (de Coppola e Campion, respectivamente), com Bigelow temos o cinema tipicamente viril dos homens mais ousados dentro da indústria norte-americana, mas com um olhar ímpar diante do horror inerente ao ser humano - o que faz com que seu cinema seja triplamente mais visceral e fascinante. Qualquer cineasta talentoso faria uma versão sensacional de GUERRA AO TERROR, por exemplo, mas somente o olhar profundamente humano de Bigelow consegue superar todas as expectativas.
 
Para se apreciar o cinema de Kathryn Bigelow, precisamos voltar um pouco no tempo para entendermos sua evolução como artista. No início de sua carreira temos uma tríade muito interessante que é composta por THE LOVELESS, QUANDO CHEGA A ESCURIDÃO e JOGO PERVERSO. Esses são filmes de gênero tradicionais e, ao mesmo tempo, deslocamentos. Os indivíduos retratados beiram a marginalização completa, mas há algo de humano em cada um deles, seja a figura de Willem Dafoe em LOVELESS, seja o mito do vampiro em QUANDO CHEGA… ou a policial em JOGO PERVERSO. Mas o grande destaque dessa sua primeira fase de carreira (vale dizer que ela também esteve casada com James Cameron, o que justifica suas escolhas mais "comerciais") vem com o clássico do cinema de ação CAÇADORES DE EMOÇÃO.
 
 
 
Focado em uma investigação regada a ondas, adrenalinas e conflitos diversos, este filme consolida o olhar mais pungente de Bigelow diante da sociedade americana. Além disso, o sucesso comercial da produção permitiu que a cineasta pudesse se concentrar mais em um olhar pessoal sobre sua própria obra - que culminou com ESTRANHOS PRAZERES e O PESO DA ÁGUA, filmes tão bons quanto CAÇADORES..., mas menos cativantes (por suas complexidades e seus desdobramentos).
 
 
 
 
 
Após o final de relacionamento com Cameron, a cineasta resolveu ir atrás de seus objetivos artísticos. Bigelow, mais preocupada com a situação bélica de seu país, buscou dirigir projetos mais específicos e ambiciosos. O primeiro deles foi K-19: THE WIDOWMAKER. Nada mais fantástico para um admirador de Arte como eu (e muitos outros) a decisão de Bigelow em dirigir um filme cujo subtítulo seja a tradução de "o fazedor de viúvas". Isso já mostra o quanto ela se preocupa com as guerras, o quanto ela pretende se engajar com a figura feminina diante de um ato extremamente masculinizado como a Guerra e como suas obras seguintes irão se aprofundar nessas questões.
 
 
Muitos discordam e clamam que AVATAR é superior, mas eu acho GUERRA AO TERROR um dos melhores filmes deste início de século. Não só pela subversão do espírito americano, mas como o olhar de Bigelow evoluiu. Ela aponta sua câmera (semi-documental, na mão) com propriedade e coragem para a situação dos soldados americanos no Iraque - em especial os esquadrões especializados em desarmes de bombas (tudo a ver com o título original e completamente deturpado na tradução mal realizada para o nosso idioma). Com os dizeres "Pois a Guerra é uma Droga", Bigelow e o roteirista Mark Boal perscrutam, em GUERRA AO TERROR, o espírito humano completamente destroçado pelo horror da Guerra, e criam empatia e pena diante da realidade amarga e objetivos de vida tão díspares de cada um daqueles indivíduos - entre eles, o do "viciado" Sargento William James (Jeremy Renner). Vencedor de seis estatuetas do Oscar - entre eles o de melhor filme do ano (merecido) e melhor direção (mais merecido ainda) - este filme é um primor artístico e um documento de época muito eficiente. Vale dizer também que, ao contrário do que muitos disseram, este não é um filme que louva a ação dos soldados ianques no Iraque, mas condena e lamenta que pessoas tão jovens tenham que se entregar de corpo, mente e alma a um conflito absurdo e completamente desprovido de propósito quanto este.
 
 
E se o olhar "feminino personificado" de Kathryn Bigelow ficou sutil na figura de Evangeline Lilly em GUERRA AO TERROR (relegado a terceiro plano), em A HORA MAIS ESCURA, a obra-prima máxima da cineasta, a mulher - personificada por Jessica Chastain como Maya - volta ao total centro das atenções e ações como uma versão feminina, mas igualmente obcecada, de Ahab - o famigerado capitão do Pequod no clássico MOBY DICK, de Herman Melville. Maya é uma espécie de amálgama de todos os personagens vistos na filmografia de Bigeloow até então. Além de tudo, ela é potencializada ao máximo em todos os sentidos, em força e em fraquezas, o que faz com que esta seja a personagem mais completa e mais fascinante de toda a obra da cineasta.
 
 
 
Condenada a anos de investigações, testemunhos do horror das torturas e a uma burocracia sem fim que suga cada vez mais sua alma, Maya está no comando de um time, mas ao mesmo tempo sozinha e desamparada. Seu olhar por vezes perdido e cansado denota uma total falta de relaxamento. Suas obsessões são apenas capturar sua "baleia branca" na forma de Osama Bin Laden e entregá-la aos seus superiores - qualquer outro objetivo além disso está apagado de sua vida. Como uma mulher tão afogada, tão solitária e tão triste pode ter direito a uma vida depois que seu trabalho está feito? Não é a toa que o choro da personagem em um momento crucial do filme seja tão dolorido para ela e para o espectador. O que resta para ela? E para piorar, nos únicos momentos em que consegue desabafar ou relaxar com alguém, testemunhamos uma interrupção abrupta e selvagem provocada por atentados a bomba.
 
Kathryn Bigelow cria, em A HORA MAIS ESCURA, um panorama do terror nos conflitos mal encabeçados pelos governos norte-americanos (Bush e Obama), além de pintar um painel visceral da destroçada alma de uma mulher solitária e quase masculinizada pelo odioso e amargo mundo em que vive. Uma cineasta que não poupa o espectador de uma experiência intensa, assustadora e desgastante (e de quebra, ainda reinventa o mito de Ahab).
 
O cinema de Kathryn Bigelow merece ser visto!
 
Grande cineasta!
 
 

Sobre o autor:

Ator, dramaturgo e encenador teatral, além de futuro cineasta.

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