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Festival de Berlim 2016 - Dia 05 Festivais e Mostras

Ok, vamos direto aos filmes que vi hoje, que tal?

Morte em Sarajevo (Smrt u Sarajevu) é uma reflexão histórica sobre a trajetória de violência recorrente nos Balcãs e o quase hábito da região de mergulhar em sangrentos conflitos internos praticamente a cada nova geração. Rico em suas discussões e em sua abordagem dialética ao analisar os eventos históricos e os pontos de vista dos personagens, este novo trabalho de Danis Tanovic continua a comprovar o talento do diretor responsável por Terra de Ninguém.

O mais instigante, porém, é perceber como as complexas discussões mencionadas acima são desenvolvidas não como discurso direto (embora estes também façam parte da narrativa), mas como alegorias, já que, sendo ambientado em um certo Hotel Europa, o filme acompanha vários personagens que ali se encontram durante as preparações do evento que marcará o centenário do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando pelo estudante Gavrillo Princip – incidente catalisador do início da Primeira Guerra.

Adotando estratégia narrativa similar à de seu ótimo longa anterior, Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho, Tanovic constrói o filme a partir de longas cenas que seguem os personagens pelos corredores do hotel ou testemunham seus embates verbais, saltando do conflito entre patrões e empregados (que envolve a força bruta do crime organizado agindo contra estes últimos) ou uma discussão fascinante entre uma jornalista e um entrevistado que, dividindo o nome com Gavrillo Princip, parece ter nascido para virar uma metáfora/síntese da progressão conflituosa da região.

Dinâmico sem sacrificar a profundidade dos temas que discute, Morte em Sarajevo é uma combinação perfeita de um roteiro organicamente verborrágico e de uma direção que não permite que isto sacrifique sua lógica visual.

Por outro lado, Alone in Berlin é o tipo de filme que não apenas não tem qualquer vergonha em trazer uma cena na qual um casal é separado à força como ainda faz questão de cortar para um plano-detalhe que revela as mãos dos amantes se afastando. E o lamentável é que este projeto dirigido por Vincent Perez reconta uma história real relativamente pouco conhecida (apesar de já ter sido adaptada para a televisão e para o cinema algumas vezes): a do casal Otto e Anna Quangel (Brendan Gleeson e Emma Thompson), que, cidadãos exemplares na Alemanha nazista em 1940, se desiludem com o regime de Hitler depois que perdem o único filho no front de guerra. A partir daí, eles passam a escrever cartões denunciando a crueldade e a hipocrisia do Führer, espalhando-os por toda a cidade e despertando o interesse de um investigador ligado à Gestapo (Daniel Brühl).

É uma história com claro potencial dramático que o péssimo roteiro joga no lixo ao recheá-la de clichês, incidentes absolutamente implausíveis e diálogos pavorosos e expositivos (em certo momento, o casal, junto há décadas, descreve um para o outro como se conheceram). Enquanto isso, Perez parece não ter prestado atenção aos detalhes da trama que se propõe a contar, esforçando-se para criar suspense onde este simplesmente não cabe: depois de escrever seu primeiro cartão, por exemplo, Otto observa tenso a aproximação de oficiais nazistas e o filme sugere que há perigo ali - esquecendo-se de que, até aquele instante, ninguém tinha qualquer motivo para suspeita, já que nada havia sido feito. Para piorar, este tipo de equívoco acontece ao menos umas três vezes apenas no primeiro ato e, assim, quando a situação começa a ficar realmente perigosa, já estamos imunes ao tom de alerta.

Ancorado em uma performance contida, discreta e eficiente de Gleeson, Alone in Berlin traz, em contrapartida, uma Emma Thompson que parece determinada a exibir no rosto todas as emoções de sua personagem – e cada simples caminhar pelas ruas é adornado por sobrancelhas arqueadas, boca retorcida e olhos lacrimejantes. E se Daniel Brühl confere uma bem-vinda ambiguidade ao inspetor Escherich, sua cena final não só é ridícula como uma óbvia invenção de roteiristas excessivamente influenciados pelo que Hollywood tem de pior: a necessidade de evitar que o espectador saia da sala de projeção triste demais.

Não é de se espantar que o longa tenha sido vaiado após sua exibição na Berlinale.

Por falar no festival em si, uma das vantagens que este traz são as origens diversas de seus selecionados, o que me permite, por exemplo, buscar filmes de gênero produzidos fora de Hollywood, já que isto possibilita avaliar como a cultura e a sensibilidade locais agem sobre as convenções para adaptá-las a cada país. Às vezes, o esforço é frustrado (como no saudita Barakah Conhece Barakah, que comentei ontem); às vezes, acaba por compensar outros problemas normalmente associados ao tipo de narrativa explorada.

Born to Dance é um exemplo deste último caso: produzido na Nova Zelândia, o filme combina diversos gêneros em um único roteiro: é uma comédia, um musical, um drama e ainda emprega as estruturas narrativas do tipo “competição entre equipes”, “Davi x Golias” e “garoto humilde tenta viver de sua paixão pela Arte”. É, em outras palavras, um Dirty Dancing encontra Billy Elliot encontra A Escolha Perfeita encontra...

... mas vocês já entenderam onde quero chegar.

Não há como negar, claro, os problemas do projeto: os diálogos são tolíssimos; as relações entre os personagens, esquemáticas; os obstáculos, artificiais; as reviravoltas, previsíveis. Aliás, em vários momentos, Born to Dance parece desafiar o público a descartá-lo como um amontoado de bobagens – e, no entanto, o longa funciona. Isto se deve, em especial, a dois elementos importantes: a energia contagiante construída por uma montagem ágil, mas jamais confusa, e as coreografias fantásticas criadas por Parris Goebel para as competições de dança que movem a história.

Além disso, as pinceladas da cultura maori espalhadas ao longo da trama diluem um pouco o caráter batido que esta teria de outra maneira – justamente o tipo de alquimia que tende a despertar minha curiosidade.

Já a quarta sessão do dia foi a de Rara, coprodução entre Argentina e Chile. Ao vê-lo, lembrei-me de comentar em um texto, há algum tempo, como achava importante perceber que o filme que eu discutia na ocasião trazia personagens gays, mas sem que isso convertesse a trama em uma discussão sobre preconceito: havia homossexuais na trama e pronto, isto não fazia qualquer diferença (como deveria ser no mundo real, diga-se de passagem). Não que obras que exponham a intolerância não sejam fundamentais, mas é um certo alento perceber que já evoluímos ao menos um pouco e podemos ter longas protagonizados por casais gays que discutam eventos não necessariamente ligados à sua orientação sexual. Isto é o que acontece, por exemplo, em Rara, que gira em torno de Sara (Julia Lübbert) uma garota pré-adolescente que vive com a irmã mais nova (Emilia Ossandon), a mãe (Mariana Loyola) e namorada desta (Agustina Muñoz). Sim, pontualmente há uma sugestão de desconforto por parte de um personagem ou outro – e uma cena na qual alguém expressa uma intolerância indisfarçável -, mas, de modo geral, o filme aborda os conflitos naturais da puberdade: paixões intensas, sentimentos de inadequação, frustração com os limites impostos pelos pais e assim por diante.

Estreando como diretora de longas, a cineasta Pepa San Martin demonstra, diga-se de passagem, sensibilidade admirável na condução de suas jovens atrizes, que apresentam uma naturalidade em cena instrumental para o sucesso da obra: Lübbert transforma Sara em uma garota cujas explosões são contrapostas a uma compreensão madura das consequências que trazem, enquanto a pequena Emilia Ossandon concentra todos os momentos mais eficientes de humor da narrativa. Fechando o elenco, Loyola e Muñoz estabelecem suas personagens como mães carinhosas, dedicadas, mas falhas como qualquer outra, construindo também uma forte dinâmica com as crianças e conquistando o público com o amor presente naquela família.

Ao final, porém, Rara parece não saber muito bem o que fazer com suas ótimas personagens, que encantam, mas não dizem exatamente por que suas trajetórias mereceram gerar um filme. O que não o torna ruim, apenas pouco memorável.

Para encerrar o dia, conferi o documentário senegalês A Revolução Não Será Televisionada (The Revolution Won’t Be Televised), de Rama Thiaw. O foco do projeto, num primeiro momento, é o movimento político encabeçado pelo grupo “Y’en a Marre”, criado por alguns rappers do Senegal como forma de protesto contra o então presidente Abdoulaye Wade. A partir daí, o filme acompanha as eleições no país, os comícios nos quais os rappers Thiat e Kilifeu (cabeças do grupo) se apresentavam, entrevistas com a dupla e... uma penca de outras coisas.

Aliás, este é o grande problema da obra: a falta de foco. O objetivo é discutir a carreira dos músicos? A trajetória do “Y’en a Marre”? A natureza corrompida do ex-presidente Wade? A falta de representatividade popular de seu sucessor? Ilustrar a dinâmica da eleição em si, incluindo os comícios? Como se não já bastassem todos estes tópicos, o diretor ainda decide homenagear a escritora Khady Sylla, falecida em 2013, e discutir também a eleição em Burkina-Faso e o legado do revolucionário Thomas Sankara, morto pelo ditador Blaise Compaoré. Ou seja: uma bagunça total.

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Assista também ao vídeo com comentários sobre o quinto dia da Berlinale:

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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