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ENTREVISTA “Assistir a esse filme é um ato cívico” Brasil em Cena

Em “Joaquim”, Marcelo Gomes chega a seu quinto longa metragem ressaltando uma relação talvez pouco percebida em sua filmografia. “Eu adoro cinema histórico. O primeiro roteiro que eu escrevi foi ‘Madame Satã’, que é um filme histórico. Meu primeiro longa – ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’ – é um filme histórico”, contabiliza o diretor e roteirista pernambucano, que segue fornecendo pistas do que o atrai como realizador nesse tipo de obra.

“Adoro ‘O Evangelho Segundo São Mateus’, de Pasolini, ‘Aguirre, a Cólera dos Deuses’, do Herzog, ‘Iracema’, que não é um filme histórico, mas adoro o espírito dele. Era esse universo que eu queria explorar”, acrescenta o cineasta de 53 anos que teve seu mais recente filme aceito na mostra competitiva do Festival de Berlim deste ano. Participar de festivais internacionais relevantes não é novidade na carreira de Gomes.

“Cinema, Aspirinas e Urubus” estreou na mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes de 2005, onde recebeu o Prêmio do Ministério da Educação da França. Em 2009, apresentou “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, ficção codirigida com Karim Aïnouz, no Festival de Veneza. Em 2012, “Era uma vez eu, Verônica” foi lançado nos festivais de Toronto e San Sebastian e, em 2014, o longa “O Homem das Multidões”, codirigido com Cao Guimarães, selecionado para a sessão Panorama do Festival de Berlim.

“Joaquim” chega aos cinemas brasileiros nesta semana. “No momento certo”, segundo o diretor. “Eu acho que é um ato cívico assistir a esse filme, porque ele ajuda a entender o quão problemático é este momento atual: na tela, os tropeiros defendendo os interesses dos poderosos da época não é, em nada, diferente de uma classe média convencida de que as medidas atuais são um benefício para o povo”, comenta o diretor.

Gomes recebeu o Cinema em Cena para uma entrevista exclusiva em São Paulo, no dia da primeira sessão de pré-estreia de “Joaquim” no Brasil.

Cinema em Cena - Ao se fixar na fase anterior à do revolucionário Tiradentes, seu roteiro cria um personagem que é mais ficção que realidade. Como você chegou ao seu Joaquim?

Marcelo Gomes – Quando eu recebi o convite para fazer esse filme, falei para o produtor espanhol que lançou a ideia que queria ter a liberdade de escolher o recorte da história para retratar. Então, li várias biografias, cada uma narrando o personagem de um jeito. Eu quero fazer cinema sobre coisas que não entendo. Quero aprender com os personagens que eu crio. Não existia nenhum documento histórico sobre esse momento e aí eu tive liberdade completa para “ficcionalizar” esse momento de tomada de consciência do Joaquim. Lógico que eu tomei emprestados vários fatos de história, como o fato de ele ser alferes, de sempre desejar uma promoção, elementos que também estão no filme. Depois disso, eu decidi por esse recorte, que foi o da construção da consciência política dele. Então, li vários livros, como “História da Vida Privada”, “Os desclassificados do ouro”, da Laura de Mello Souza, que são livros que falam de dia a dia, de como essas pessoas comiam, como faziam fogo, como namoravam, como se relacionavam com pessoas de outras culturas e eu falei: é isso que eu quero fazer. Decidi por uma poética do cotidiano, não por um relato histórico, uma novela oficial.

Cinema em Cena - Depois da estreia, em Berlim, alguns veículos (Hollywood Reporter, por exemplo) mostraram estranhamento com o final do filme, que deliberadamente termina onde normalmente começam os registros sobre Tiradentes. Esse tipo de comentário cria alguma dúvida quanto à trajetória do filme no exterior?

Marcelo Gomes - O final do filme deixa as pessoas paralisadas, meio atônitas, como se não entendessem que ali terminou. E o começo do filme, um prólogo completamente machadiano, já fala absolutamente tudo o que vai acontecer! Então, acho que parte da crítica e do público está presa à ideia de que “filme histórico tem que ser assim”, não pode ser de outra forma. Tem que ser linear, com começo, meio e fim, atendo-se aos livros de história. Mas o que me interessa em cinema é fazer filmes que instiguem a imaginação e a memória do espectador. O filme não propõe que o espectador imagine como foram as batalhas, acho que é um dos poucos filmes históricos que não tem uma batalha, que não tem um tiro, mas é de uma violência cruel. O filme não é épico, e acho que isso incomoda algumas pessoas.

Cinema em Cena - A opção por muitas sequências de câmera na mão, prevalência de locações, de sons da natureza e quase nenhuma trilha sonora têm o objetivo de reforçar em “Joaquim” uma atmosfera de brutalidade? Isso faz parte de um objetivo de fazer um filme histórico despido de glamour?

Marcelo Gomes - Todo o filme foi feito em locações. Filmamos em Diamantina e entorno, porque nós queríamos locações que não precisavam ser bonitas, mas tinham que parecer dramáticas e instransponíveis, porque a ideia era de que o Brasil era instransponível. Tínhamos apenas quatro semanas para filmar. Foi um trabalho de dedicação profunda. Tanto o Marcos Pedroso, diretor de arte, quanto o Pierre de Kerchove, diretor de fotografia, entenderam muito a proposta, que era ser um filme histórico, mas muito mais uma crônica que um relato oficial. A intenção era relatar a poética do cotidiano do Brasil colonial. Geralmente, os filmes históricos mostram um passado engessado, com uma câmera engessada, um figurino engomadinho. E o passado era precário. Passávamos horas para fazer os dentes podres dos atores, para dar essa sensação de precariedade. E as locações eram também intransponíveis. Então, a direção de arte tinha que ser precisa nessa precariedade, nos objetos, assim como o figurino, a maquiagem. Então, o passado tinha que estar vivo, porque a ideia principal é que as fraturas sociais do passado estão presentes até hoje.

Cinema em Cena - A obsessão de Joaquim por encontrar ouro no Sertão Proibido foi movida por amor? Se isso faz sentido, esse seria mais um componente desconstrutor do “herói” obstinado em libertar o Brasil que agiria, de fato, movido por uma paixão? A insubmissa Preta/Zua foi concebida como uma personagem feminista?

Marcelo Gomes – A ideia era justamente a desconstrução do herói como alguém escolhido por Deus para salvar o Brasil. Ele tinha que ser um homem comum, e eu acho que isso é o lado revolucionário do filme. O personagem do Júlio sofre frustrações afetivas, profissionais, reencontra esse amor, descobre que esse amor é impossível. E descobre que aquela sociedade vai ser sempre assim, com aquelas mazelas todas, e aí tem um ato revolucionário. Fiquei imaginando: século 18, uma sociedade em que nem ética existia, só crueldade, completamente desumana. Matava índio, escravizava os africanos, chegavam os colonizadores aqui, exploravam tudo, levavam embora e não deixavam nada. Como é que o cara, que é funcionário da coroa, muda de lado? O que levou esse cara a fazer isso? Se alguma coisa levou esse cara a fazer isso é porque ele teve que conviver com quem vivia a pior face do colonialismo, quem mais sofria com o colonialismo – os índios, os mestiços e os africanos e, dentre eles, quem sofria mais era a mulher negra, explorada, estuprada, e é ela que constrói esse elemento nele. Preta é uma personagem feminista. Ali é que está o âmago da revolução.

Cinema em Cena – E é ela que corta os longos cabelos do Joaquim, despojando o personagem de um símbolo visual fortíssimo do Tiradentes.

Marcelo Gomes – Exato! Quando eu estudava História, nos livros dos anos 70, plena ditadura militar, eu olhava aquela imagem de Tiradentes e pensava: “é Jesus Cristo ou Tiradentes?” Por isso, a primeira coisa que eu quis desconstruir foi essa imagem do Tiradentes. “Imagina se o Joaquim tem piolho e tem que cortar o cabelo e quem corta o cabelo dele é a amada”. E ela corta com uma faca, porque na época não tinha tesoura, não tinha espelho. E tem uma raiva, você pensa que ela vai matar ele. O “behind the scenes” dessa cena mostra muito a dedicação desses dois atores, de corpo e alma. Eu cheguei para o Pierre, para a Zuaa e para o Júlio e disse: “Júlio, você só tem um cabelo. Pierre, seja o que acontecer, não para de gravar. Zuaa, aconteça o que acontecer, não para de cortar o cabelo dele. Tem que ser um take único, senão vamos ter que esperar seis meses para ter cabelo de novo!” Não ia ter como colocar uma peruca, o filme é tão próximo da verdade que não poderia ter isso. Então, foi muito tenso. Ela só podia ter um take. Falei: “roda, começa”! Todo mundo paralisado e eu gritando: “Vai, Zuaa, mais raiva, mais raiva”! Teve uma hora que eu vi que ela estava tremendo. Quando acabou a cena, eu gritei “Lindo, maravilhoso!” e ela “Júlio, desculpa!” e abraçou o Júlio e começou a chorar. Ela tinha cortado o ombro dele durante a cena, escorria o sangue e, no lugar em que eu estava, eu não vi isso. Mas ela não parou a cena, nem ele!

Cinema em Cena – Existe um paralelo entre o Brasil Colonial de “Joaquim” e o momento atual do Brasil?

Marcelo Gomes – Acho que os personagens são muito contemporâneos, porque são contraditórios, humanos, têm objetivos muito específicos, pensam neles mesmos, porque estão em um momento salve-se quem puder. A ética da época faz com que Joaquim, mesmo cultivando pensamentos “humanistas”, não ache estranho ter escravos. Mas isso não é muito diferente de agora. A elite brasileira acha normal ter uma pessoa para limpar seu banheiro. Nós ainda precisamos viver um processo de descolonização na nossa cabeça, porque isso está presente até hoje, impregnado. Quando você chega a um edifício, em São Paulo, construído nos anos 70, 220 anos depois desse período, tem dois elevadores, o social e o de serviço, aí você chega na casa e tem duas portas, a social e a de serviço. Um europeu chega aqui e pergunta: o que é isso? É a casa grande e senzala verticalizada. Muda a face, mas no âmago está tudo ali.

Cinema em Cena - A cena de Joaquim sob as águas de uma cachoeira pode remeter à cachoeira de sangue de “O som ao redor”, do Kleber Mendonça Filho. Existe alguma relação ou foi coincidência?

Marcelo Gomes – É uma grande coincidência. Na verdade, eu queria que o Joaquim fosse um homem de ação, não de reflexão. E eu queria que esse filme tivesse a água, porque ela representa o desejo do ouro. Sempre tem muita água, água correndo inclusive. Então, naquele momento de grande depressão dele, ele vai tentar se purificar, e aí vem o desejo da água. E vem, também, Humberto Mauro, mineiro, que dizia: “cinema é cachoeira”. Então, a cachoeira também é uma homenagem a esse cineasta pioneiro.

Cinema em Cena - Na coletiva, em Berlim, você leu um manifesto contra o governo Temer. O protesto da equipe de “Aquarius”, em Cannes, claramente custou a escolha do filme como representante brasileiro ao Oscar. Você teme que isso possa acontecer a “Joaquim”?

Marcelo Gomes – Eu acho que é um ato cívico assistir a esse filme. Independente do ponto de vista, esse filme é importante porque ele reflete sobre o passado, o que você faz com essa reflexão é decisão sua, mas pensar sobre esse passado é um ato cívico. Eu, pessoalmente, acho que esse governo é ilegítimo, resultado de um golpe, é um governo que está reproduzindo o pensamento colonial, uma elite política desmantelando conquistas sociais, educacionais, culturais que passamos décadas, séculos para conseguir. É um retrocesso imenso, fruto da junção da elite política com a elite econômica, desconstruindo tudo o que o povo conquistou e promovendo de novo a exclusão, a injustiça social e aumentando as distorções econômicas que já são imensas. Olhando pelo lado da cultura e do cinema, especificamente: a Ancine (Agência Nacional do Cinema) e a política do audiovisual não é uma conquista de A, B ou C. É uma conquista do povo brasileiro. 150 milhões de pessoas assistiram a filmes e séries brasileiros nos últimos quinze anos. Isso é uma conquista da sociedade civil e ela tem que ser preservada ou melhorada. Então, a nossa preocupação é que, por revanchismo político ou por um pensamento conservador, se acabe com uma inciativa que é uma conquista do povo brasileiro.

Cinema em Cena – Mas explicitar esse golpe em um local como o Oscar não seria um ato político importante?

Marcelo Gomes – Fizemos isso em Berlim, marcamos posição. “Cinema, Aspirinas e Urubus” foi o filme selecionado para o Oscar no ano do seu lançamento e eu pensei: “gente, o que a gente tem a ver com o Oscar?!” Mas o Ministério decidiu, vamos lá, vamos defender o filme. Chegou lá, fui apresentar o filme, as pessoas adoraram e tinha uma assessora de imprensa que chegou para mim e falou: “olha seu filme é maravilhoso, mas não vai ficar entre os cinco, porque não tem um deficiente físico, ou um cachorro, e o alemão não é nazista, então esquece”. (risos) E eu pensei: “muito obrigado, porque era exatamente isso que eu NÃO queria fazer”. O Oscar é um prêmio feito para fomentar a indústria do audiovisual norte-americano e, aos 45 do segundo tempo, eles colocam um filme estrangeiro. Eles estão corretíssimos na política deles. A gente é que tem que fazer uma política para fomentar e dar visibilidade ao audiovisual brasileiro no mundo inteiro.

Sobre o autor:

Alessandra Alves é jornalista com múltiplos interesses. Além do amor pelo cinema, pela música e pela literatura, também atua no jornalismo esportivo e na comunicação corporativa. Paulistana, corintiana, feminista e inimiga de fascistas, assina a coluna "Brasil em Cena", de entrevistas e reportagens sobre o cinema brasileiro contemporâneo.
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