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Festival de Berlim 2018 - Dia #08 Festivais e Mostras

Dia 08

30) ELDORADO (IDEM)

Para lidar com o grande número de refugiados que passaram a fugir para a Europa como consequência dos conflitos na Síria, os líderes da União Europeia decidiram, entre outras coisas, que um imigrante só poderia pedir asilo político no país que o recebesse inicialmente – uma regra que, por motivos óbvios, exclui todas as nações sem orla marítima e aqueles mais afastados dos pontos de migração mais comuns. Aliás, não é à toa que, nos últimos dois ou três anos, tantos filmes sobre o assunto tenham sido feitos usando a Itália como palco principal (Mar de Fogo, Lampedusa no Inverno), já que este é o país que, por pura questão geográfica, tem centralizado grande parte das migrações.

Isto é algo que o diretor suíço Markus Imhoof conhece bem e por experiência própria, já que, durante a Segunda Guerra, sua família adotou uma jovem refugiada judia, Giovanna, com quem o cineasta estabeleceu uma forte ligação fraternal – e uma de suas lembranças mais comoventes é a do primeiro jantar da menina em sua casa, quando, após tomar a sopa que servia de entrada, agradeceu pela refeição sem imaginar que haveria mais comida. A partir daí, Imhoof faz vários paralelos entre a situação dos judeus naquela guerra (e como a Europa reagiu ao problema) e a dos sírios (e afegãos, albaneses, nigerianos, etc) nos dias hoje, apontando as discrepâncias no tratamento oferecido a cada um deles.

Não que ele pinte um retrato impiedoso dos europeus: acompanhando o processo de resgate de refugiados no mar, o suíço revela o carinho das equipes primordialmente italianas que tentam acalmar aquelas pessoas depois de jornadas normalmente pavorosas, mas, infelizmente, o cuidado acaba aí. Enviados para centros que deveriam funcionar como residência temporária, os imigrantes passam meses e meses vivendo em péssimas condições – e muitos, depois de serem liberados (ou de fugirem), acabam sendo usados para trabalho escrevo ou prostituição – e o número de sírios explorados pelos agricultores italianos é grande o suficiente para exercer grande impacto na economia local.

Do mesmo modo, Eldorado revela como os imigrantes tentam evitar ao máximo fornecer suas impressões digitais quando estão sendo cadastrados depois do resgate, já que isto os obrigaria a permanecer num país que não é seu objetivo final (muitos já têm parentes refugiados em outros lugares). Enquanto isso, algumas vilas suíças chegam a pagar pequenas fortunas pelo direito de não abrigarem estes estrangeiros, numa postura radicalmente diferente daquela vista na Segunda Guerra (e Imhoof se indaga se isto teria a ver com a cor da pele dos refugiados contemporâneos).

E se o “Eldorado” do título tem sentido duplo, referindo-se a um ideal de vida, mas também à cor do cobertor de alumínio com o qual os imigrantes são aquecidos quando resgatados, a realidade que espera por aqueles homens, mulheres e crianças nada tem de desejável – e o mais irônico é que, como o filme demonstra em certo momento, as nações ricas parecem fazer questão de tornar a vida das mais pobres ainda mais difíceis, contribuindo para a onda migratória (depois de oferecer uma quantia para um imigrante sob a condição de que este retorne para seu país, o governo suíço subsidia a exportação de leite para o país do sujeito, praticamente eliminando a pequena fazenda de produção de leite que ele montara com o dinheiro).

Belo exercício de empatia, Eldorado não traz, contudo, novidade alguma sobre as questões que aborda, já tendo sido antecipado por documentários bem mais informativos e mais ambiciosos. E isto o prejudica consideravelmente.

 

 

31) MUSEO (IDEM)

Em dezembro de 1985, dois estudantes de veterinária invadiram o Museu Nacional de Antropologia do México na madrugada do Natal e roubaram cerca de 140 artefatos pré-colombianos. Não faziam parte de uma quadrilha, não contaram com o apoio estratégico de nenhum funcionário da instituição e nem eram criminosos experientes; apenas observaram a rotina dos seguranças durante alguns meses e realizaram a ação em menos de uma hora. O problema: ao ser descoberto, o roubo revoltou o país, já que os objetos representavam parte importante de sua História – e, por isso, ninguém se mostrou disposto a comprar os artefatos, que permaneceram no armário de um dos assaltantes por quatro anos até serem encontrados pela polícia graças a uma denúncia.

Museo, produção mexicana dirigida e co-escrita por Alonso Ruizpalacios (ao lado de Manuel Alcalá), é uma adaptação desta história real para as telas (ou, como o próprio filme anuncia logo no início, é “uma réplica da original”), mantendo a identidade dos ladrões e algumas de suas dificuldades pós-roubo, mas alterando consideravelmente o desfecho de sua jornada. Aqui, os jovens são vividos por Gael García Bernal e Leonardo Ortizgris, que, rebatizados como Juan e Benjamin, enfrentam problemas familiares que, de certo modo, catalisam a ideia do ambicioso e arriscado furto. Juan (Bernal), por exemplo, abandonou a faculdade e sente jamais conseguir agradar o pai (o sempre ótimo Alfredo Castro), ao passo que Ben vê o próprio pai definhando em função do câncer.

Bem-humorado, Museu transforma a notória baixa estatura de seu protagonista em piadas recorrentes (que, por sua vez, contribuem para sua baixa autoestima e a vontade de realizar algo grandioso), sendo especialmente divertido no primeiro ato, quando Juan, para conseguir se desfazer do compromisso de se vestir como Papai Noel, revela aos sobrinhos onde seus presentes de Natal estão escondidos. Isto, claro, também ilustra a natureza egoísta do rapaz – e, ao longo da projeção, testemunhamos várias ocasiões nas quais o sujeito ignora as necessidades do melhor amigo ou se mostra agressivo quando este o questiona – e se não tomamos antipatia pelo protagonista, isto se deve ao carisma de Bernal, que o imbui de vulnerabilidades emocionais comoventes (é interessante observar como ele parece sempre se tornar mais infantilizado e inseguro ao interagir com o pai). Enquanto isso, Ortizgris compõe Ben como alguém que parece ter deficiências cognitivas claras, já que sua admiração – melhor: devoção – por Juan é excessiva a ponto de gerar incômodo no espectador.

Infelizmente, depois do roubo em si, Museu parece perder de vez o foco, introduzindo uma série de personagens enquanto Juan tenta se livrar dos artefatos, o que torna a narrativa um pouco repetitiva. Além disso, o desfecho (que obviamente não vou revelar) soa artificial tanto com relação às atitudes do protagonista quanto com as de seu pai, buscando amarrar os elementos emocionais e psicológicos do longa de forma implausível.

E que ainda assim o trabalho de Ruizpalacios e Alcalá tenha vencido o Urso de Prata de Melhor Roteiro no Festival de Berlim é algo que só comprova como a mostra competitiva deste ano se mostrou frágil.

 

32) TOUCH ME NOT (NU MA ATINGE-MA)

Touch Me Not é uma espécie de Borat do autoconhecimento sexual. Com isso, o que quero dizer é que o filme propositalmente dilui as fronteiras entre o documentário e a ficção, promovendo encontros entre personagens ficcionais e pessoas reais com o objetivo de discutir sexualidade, autoimagem e intimidade. Para fazer isso, o filme usa como centro Laura (a atriz Laura Benson), que não consegue permitir que ninguém a toque – algo que o longa sugere sutilmente ter a ver com abusos sexuais na infância sofridos nas mãos do pai.

Iniciando com planos-detalhe que exploram a pele, os pelos e os poros da protagonista, Touch Me Not deixa claro, assim, que será uma obra que investigará de perto a intimidade das pessoas que se colocarem diante da câmera – e, graças ao sistema “Interrotron” criado pelo documentarista Errol Morris, a diretora romena Adina Pintilie pode conversar com seus entrevistados mantendo contato visual ininterrupto mesmo que estes pareçam estar olhando diretamente para a câmera, o que aumenta a ilusão de proximidade entre o espectador e os personagens.

Sem jamais deixar claro o que faz parte do roteiro, o que é improvisado e o que é real (embora seja possível fazer algumas suposições), o filme enfoca também os vários encontros entre Laura e os profissionais que esta contrata para ajudá-la a superar seu bloqueio: a transgênero Hannah Hofmann, que ensina a protagonista a explorar o próprio corpo e a se mostrar mais à vontade diante de expressões de sexualidade, e o terapeuta Seani Love, que usa técnicas particulares que visam deixá-la confortável com o toque, mesmo que isto envolva também socos e empurrões. Estas sessões são retratadas pela diretora de maneira mais convencional, mantendo a quarta parede intacta, mesmo que anteriormente os personagens (ou “personagens”) já houvessem reconhecido a presença da câmera.

No entanto, o centro narrativo de Touch Me Not reside nos encontros promovidos entre indivíduos que sofrem algum tipo de deficiência física ou mental e que aprendem a buscar beleza uns nos outros e em si mesmos – e entre os participantes deste grupo se encontram Tomás (Tomás Lemarquis) e Christian (Christian Bayerlein): o primeiro, vitimado por uma espécie de alopecia completa, já que não possui um único pelo no corpo; e o segundo, por um caso severo de atrofia muscular espinhal. Aos poucos, Pintilie demonstra como aqueles indivíduos não se deixam limitar por suas doenças, criando sequências nas quais o espectador é levado a observá-los de perto e longamente, subvertendo, no processo, as noções preconceituosas que poderíamos desenvolver a partir de uma contemplação superficial.

Neste aspecto, o filme é tão corajoso quanto seus “personagens”, que se desnudam física e emocionalmente para o público, convidando nosso olhar e nossa avaliação, o que é admirável; por outro lado, aqueles indivíduos jamais se tornam algo mais do que seus físicos e sua sexualidade, estabelecendo uma limitação que compromete nosso envolvimento. Quem são aquelas pessoas? Como chegaram até ali? Como se viam antes? Como lidam com o próprio desejo e com o preconceito alheio?

O fato de quero saber mais sobre aqueles homens e mulheres é certamente reflexo dos acertos de Touch Me Not, que não nos deixa indiferentes a eles. Em contrapartida, que jamais recompense nosso investimento em seus personagens é um problema difícil de contornar, mesmo que a jornada psicológica da protagonista seja tão instigante.

24 de Fevereiro de 2018

(Dias anteriores: #01#02#03#04#05#06, #07.)

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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