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86: Por que cancelei a Netflix e Acredito que Você Também Deveria Fazê-lo - Parte I Conversa de Cinéfilo

POR QUE CANCELEI A NETFLIX E ACREDITO QUE VOCÊ TAMBËM DEVERIA FAZÊ-LO – PARTE I

O primeiro filme que vi na Netflix foi Scarface, em 30 de março de 2012. Desde então, mantive minha assinatura sem interrupções – e sempre em seu plano mais caro, já que frequentemente todos em casa estávamos assistindo aos títulos da plataforma simultaneamente.

E agora, seis anos depois, cancelei o serviço.

Quem me acompanha nas redes (no Twitter, no Instagram ou no Facebook) deve ter visto que falei sobre minha decisão por considerar o lançamento da série O Mecanismo, de José Padilha, como uma tremenda irresponsabilidade em tempos como os nossos, condenando suas graves mentiras (como atribuir a Lula a famosa conversa entre Romero Jucá e Sérgio Machado, sobre “estancar a sangria”) e suas manipulações narrativas desde o primeiro episódio para demonizar a esquerda. Além disso, ao ver a eterna candidata Marina Silva usando a morte de Marielle Franco para divulgar um trabalho que ela sabia ser crítico à esquerda, fui tomado, confesso, por uma raiva que por alguns momentos diminuiu consideravelmente minha racionalidade.

(Aqui devo abrir parênteses para esclarecer algo: nunca escrevi sobre política no Cinema em Cena – a não ser ao discutir os temas de filmes que exigiam isto. O objetivo deste texto tampouco é falar do assunto, que reservo para minhas redes sociais particulares. Dito isso, aqui e ali serei obrigado a tocar em algumas questões que julgo relevantes – mas não se preocupem: como faço há 20 anos, não transformarei o site em espaço para discutir questões alheias ao Cinema.)

No entanto, mesmo passada a raiva, minha decisão de cancelar a Netflix se manteve. Porque não foi tomada simplesmente por meu choque e por minha repulsa diante do que foi feito em O Mecanismo; esta foi apenas a gota d’água para fazer algo sobre o qual eu já vinha refletindo há tempos. A Netflix é muito eficaz em suas propagandas e em se pintar como uma corporação cool que ama o audiovisual e a ética; infelizmente, assim como ocorreu com o Facebook, que seguia o mesmo caminho ao afirmar querer apenas aproximar as pessoas e se revelou uma plataforma de intolerância que passava os dados confidenciais de seus usuários para outras empresas, o serviço de streaming aos poucos foi permitindo que víssemos outras facetas que tornavam difícil comprar seu discurso bonitinho.

Basicamente, minhas ressalvas à Netflix envolvem três áreas: Cinema, ética corporativa e política. Algumas são certamente preciosismo e, por si só, jamais me levariam a abandonar a plataforma; somadas a todos os outros itens, porém, acabam tornando o quadro ainda mais feio. Aliás, as razões por trás de minha decisão são tantas que serei obrigado a dividir este artigo em duas partes – e a segunda, que publicarei em dois ou três dias, não apenas revelará questões muito mais graves como incluirá também algumas alternativas à Netflix, já que reconheço a importância de termos boas opções de streaming.

 

AS RAZÕES COMO CINÉFILO

Depois de discursar várias vezes sobre como a Netflix mudaria o Cinema e investiria em conteúdo de qualidade, o CEO da corporação, Reed Hastings, imediatamente anunciou o primeiro contrato para a produção de filmes originais: seis longas a serem produzidos e protagonizados por Adam Sandler. Quando isto ocorreu, o primeiro sinal vermelho cinéfilo se acendeu em minha mente, sugerindo que qualidade não era exatamente uma preocupação da plataforma. (Algo que se confirmaria mais tarde e que discutirei a seguir.) Algum tempo depois, quando a filial brasileira anunciou seu primeiro investimento, percebi que a coisa seria ainda pior por aqui, já que seria um projeto estrelado por ninguém menos do que Felipe Neto, o vlogueiro que chamou Dilma de “terrorista” (e me obrigou a publicar um vídeo-resposta) e espalhava ignorância entre seus milhões de seguidores.

Em contrapartida, havia a esperança de que, com o tempo, a Netflix encontrasse bons parceiros, o que se confirmou nos EUA com o contrato assinado com os irmãos Duplass e, no Brasil, com...

Enfim.

O fato é que, para o modelo de negócios da empresa, o que importa não é a qualidade do produto, mas a quantidade. A estatística mais importante para a plataforma diz respeito ao número total de horas de exibição de seus títulos – e manter o espectador logado diante da tela é fundamental. Não é à toa que uma das primeiras novidades implementadas nas séries foi o salto automático para o episódio seguinte assim que o anterior encerrava, estimulando (aliás, mais do que isso: praticamente consolidando o conceito moderno) o binge-watching. Mas até aí tudo bem; estimular não é obrigar, cabendo a cada um ter a disciplina necessária para interromper a sessão quando necessário. Não, o problema com a versão binge-watching da Netflix é que, para produzir algo que renda horas e horas de visualização, suas séries vêm sendo alongadas mais e mais, criando narrativas frouxas que poderiam ser fortalecidas por uma montagem mais disciplinada.

Em artigo recente publicado no Decider, por exemplo, a segunda temporada de Jessica Jones é utilizada como ponto de partida para uma discussão importante sobre como, para atingir aproximadamente 13 horas de duração, os roteiros são esticados ao máximo, destruindo qualquer possibilidade de uma estrutura narrativa coesa: “Não deveríamos ter que esperar sete horas para descobrir quem é o vilão’, argumenta o crítico de tevê Brett White. Algo similar, diga-se de passagem, é apontado pelo ótimo crítico Matt Singer em um artigo para o Screencrush: “Cada vez mais, quando alguém me recomenda uma série da Netflix, basicamente a mesma observação é feita: ‘Você tem que insistir na série. Os primeiros seis episódios são muito lentos. Mas se você continuar vendo, fica boa’”. O curioso é que, demonstrando uma incapacidade imensa de aceitar críticas, os executivos da plataforma partem para o ataque diante de qualquer análise que julguem negativa: “Os críticos estão muito distantes do gosto popular”, bradou o CEO Reed Hastings em resposta às críticas a Bright, produção original da corporação. No entanto, a nota dos usuários do IMDB para o filme atingiu uma média de 6,4, que não é muito alta na equação empregada pelo site, sendo quase a mesma de bombas como Esquadrão Suicida (6,1), Power Rangers (6,0), A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell (6,4) e (nem acredito nisso) Os Especialistas (6,5!). Para justificar sua certeza sobre o sucesso do filme, Hastings apontou ainda para sua audiência – sendo que só podemos confiar em sua palavra sobre isso, já que a empresa não disponibiliza quaisquer números que embasem a afirmativa.

O mais triste e preocupante, porém, é constatar como a preocupação da Netflix com quantidade vem trazendo consequências graves para o alcance dos filmes que disponibiliza na plataforma. “(A Netflix) não é uma distribuidora; é um cemitério com horas ilimitadas de visitação”, pontuou outro crítico norte-americano de renome, David Erlich, em artigo para o IndieWire. Criticando a maneira como filmes aplaudidos em festivais são comprados pela empresa apenas para serem lançados sem fanfarra “no meio da noite como se fossem um novo episódio de Fuller House”, Erlich usa como exemplos os elogiados A Mala e os Errantes e Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo, que inclusive venceu o Grande Prêmio do Júri em Sundance mas foi tratado com descaso ao ser despejado no site. “Este serviço de streaming é um mar de conteúdo volátil que gosta de se medir em termos de dimensão, não de profundidade”.

Há, ainda, o fato de que a Netflix com certa frequência altera a razão de aspecto dos filmes que compra, o que representa um profundo desrespeito tanto para com o espectador quanto para seus realizadores – o que levou, por exemplo, o premiado cineasta canadense Xavier Dolan a protestar publicamente contra o tratamento que seu longa Mommy recebeu: “Vocês (da Netflix) destruíram a capacidade emocional (de uma sequência-chave), desconsiderando o sentimento narrativo crucial de opressão social. (...) Quem deu a vocês o direito de revisar minhas escolhas? (...) Vocês não dirigiram, escreveram ou produziram este filme. Então há alguém além de mim que poderia conceder a vocês a liberdade que tomaram com meu trabalho? Não.”

Do mesmo modo, a corporação vem exercendo efeitos deletérios tanto sobre filmes clássicos quanto sobre a comédia stand-up. Sobre os clássicos, falarei no próximo artigo; quanto ao stand-up, ao comprar e produzir especiais de humor com o objetivo de lançar um por semana, a empresa vem destruindo aos poucos o formato em si, intercalando alguns poucos comediantes brilhantes com dúzias de profissionais medíocres que, em sua maioria, não sabem estruturar uma piada, e fracassam ainda mais ao trabalharem em um show inteiro. Em um artigo para a Vulture, o autor propôs uma pergunta:“O que define um especial? Qualidade? (...) Claro, a Netflix lançou um de Jerry Seinfeld esta semana, mas, na passada, lançou o de Jeff Dunham. (...) Não, o que define um especial da Netflix é o dinheiro. O que atrai a curiosidade das pessoas é quanto cada artista recebeu.” E qual o problema com isso? Simples: antes, os comediantes usavam os especiais como forma de divulgar seus trabalhos, preocupando-se em apresentar seu melhor material para que a exposição alavancasse a venda de ingressos para seus shows ao vivo; agora, porém, o que importa é fechar um contrato rapidamente para receber uma bolada enquanto a corporação tem condições de oferecê-la (no próximo artigo, abordarei como o modelo de negócios da Netflix vem sendo visto com preocupação pelos investidores). E como há um novo especial a cada semana, a chance de algum novo talento ser notado vem se tornando ínfima. Não é à toa que, como lembrado pela Vulture, o ótimo humorista Michael Che abriu seu primeiro especial para a plataforma dizendo “Especiais não são mais especiais”. Como se não bastasse, como a empresa não libera os números de audiência nem para os realizadores, os artistas ficam em desvantagem na hora de negociar ou renegociar seus contratos, já que os executivos podem teoricamente desvalorizar o alcance do especial anterior para levar os comediantes a diminuírem suas exigências (o que moveu a comediante Mo’Nique, que inclusive venceu um Oscar por sua atuação em Preciosa, a pedir que seus fãs boicotassem a Netflix pela maneira como foi tratada durante as negociações).

Um pedido que endosso sem hesitação – por razões que continuarei a explicar em breve.

Um grande abraço e bons filmes!

26 de Março de 2018

(Se você curtiu este texto, é importante que saiba que o site precisa de seu apoio para continuar a existir e a produzir conteúdo de forma independente. Para que tenham uma ideia, este artigo que você acabou de ler provocou ataques de DDoS por várias horas, tirando o site do ar ao enviar milhares de "robôs" para sobrecarregá-lo simultaneamente, o que aumenta também - e absurdamente - o gasto com o servidor, que temos que pagar mesmo assim. (Aparentemente, muitos não entendem a diferença entre "censura" e "boicote".) Para saber como ajudar, basta clicar aqui - só precisamos de alguns minutinhos para explicar. E obrigado desde já pelo clique!)

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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