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APOCALYPSE NOW e a invenção do sound design Frame Sonoro

O início de Apocalypse Now é uma sequência que já se tornou clásssica: tela escura, de repente um som estranho, como se fosse um motor em slow-motion. A tela se ilumina e vemos uma imensa floresta. Parte de um helicóptero em primeiro plano cruza da esquerda para a direita. O som que tínhamos ouvido é o motor desse helicóptero, superprocessado, mas que o deixou com uma personalidade única.

E é esse som esquisito que abre um filme que redefiniu toda a maneira de se pensar e utilizar recursos sonoros em Cinema, apontou para novas possibilidades tecnológicas e, de quebra, inventou um termo. Pela primeira vez nos créditos aparece a função "Sound Designer".

Quem teve a honra de ser o primeiro creditado nessa função foi Walter Murch, um nome importantíssimo na história do Cinema. Tendo já trabalhado tanto na função de montador quanto nas de editor de som e mixador, ele também é autor de livros fundamentais para quem quiser aprofundar seus conhecimentos sobre conceitos e técnicas de Cinema. Inclusive, por ter acumulado essas duas funções, ele passou por situações ímpares. Em 1997, por exemplo, ele ganhou o Oscar por Melhor Montagem e também Melhor Som, ambos pelo mesmo filme, O Paciente Inglês, de Anhony Minghella.

Voltando à sequência inicial de Apocalypse Now, logo após a passsagem do helicóptero ouvimos as primeiras notas da guitarra de "The End", da banda californiana The Doors. Seguem-se imagens de explosões na floresta, mais helicópteros e o rosto invertido do protagonista, Capitão Benjamin Willard, interpretado por Martin Sheen, deitado numa cama em um ambiente bagunçado. De repente, numa transição brilhante, o ventilador de teto do quarto de Willard se transforma numa hélice de helicóptero, com o som real do motor. "The End" está sumindo no vácuo e agora estamos neste quarto de hotel barato, bem no centro de Saigon. Todas essas imagens e os sons estavam vindo de dentro da cabeça de Willard, eram sonhos/pesadelos que inundavam sua mente..

Começa a narração de Willard, ele nos contando sobre sua situação. Seus desejos, medos e frustações. Sutilmente começamos a ouvir sons de selva: pássaros, grilos, sapos. Mas espera aí? Não estamos bem no centro de Saigon? Sim, mas Willard está narrando a sua vontade de retornar à selva, aos campos de batalha da Guerra do Vietnã.

Não estamos nem com cinco minutos de filme, mas já fomos apresentados a sua concepção sonora e que vai nos acompanhar em suas mais de três horas de duração (versão Redux).

Em primeiro lugar são os sons dos helicópteros servindo como metáfora de uma "prisão psíquica" para Willard (segundo o próprio diretor Francis Ford Coppola). Ele sempre enfatizou que a Guerra do Vietnã foi "a guerra dos helicópteros". O som dessa máquina era onipresente e por isso ficou marcado fortemente pelos que participaram. Para Coppola, os helicópteros eram o equivalente à cavalaria americana dos antigos filmes de western, eram os seus "cavalos do céu". Outra imagem que o diretor também sempre cita é a dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse.

O investimento da equipe de som de Walter Murch nas captações dos sons dessas máquinas foi alto. Horas e mais horas de gravações de helicópteros com todas as suas possibilidades (motor, rotor, turbinas, internas na cabine, voando, estacionados etc.) E um detalhe interessante é que a Aeronáutica americana não apoiou de forma alguma a produção do filme. Murch e sua equipe fizeram as gravações numa base aérea em Washington, mas omitiram a informação de que era para o projeto de Coppola.

E temos o segundo ponto que acompanha a narrativa sonora de todo o filme e que faz parte de sua concepção: os sons subjetivos, tanto de personagens quanto de situações. Mas vamos aos fatos:

- A primeira vez que temos contato com o Cel. Kurtz (personagem de Marlon Brando) é em uma gravação de áudio apresentada a Willard pelo General Corman. Kurtz falando de uma lesma rastejando sobre uma lâmina afiada, com uma entonação lenta e arrastada já causa estranhamento. Mas o toque de mestre de Murch é acrescentar estática e chiados à gravação. Isso reforça a percepção do público já nesse primeiro contato com o polêmico personagem: "Esse tal de Kurtz não bate bem da bola!"

- Na clássica sequência do ataque dos helicópteros à pequena aldeia vietnamita ao som de "A Cavalgada das Valquírias", Walter Murch costuma dizer que pensa em toda a sequência como uma orquestração: os sons dos helicópteros seriam a seção de cordas, os disparos das armas seriam os sopros, as explosões seriam os tímpanos e a música de Wagner em si representaria as seções de metais e canto. E realmente a quantidade de sons impressiona, mas tudo muito bem (usando o mesmo termo) orquestrado e definido. A mixagem é limpa, coerente e muito bem resolvida. Interessante notar que, no auge da ação, os mixadores optaram por deixar a música de Wagner soar mais nos canais surround, deixando para os canais centrais os sons dos tiros e explosões.

- Na cena do ataque do tigre é interessante notar como o som foi utilizado como elemento para gerar tensão, instantes antes do animal surgir. Só que, nesse caso, com a diminuição dos elementos sonoros e com o reforço das frequências graves. 

- Quando o barco de Willard chega na Ponte Do Lung em meio a um tiroteio é notável o uso da reverberação para criar toda uma ambientação que mistura gritos distantes, tiros, explosões e música diegética. A mixagem abusa dos canais surrounds e consegue, através do que podemos chamar de "caos sonoro", retratar a situação absolutamente surreal vivida por todos aqueles soldados sitiados na ponte. Desde um solo de guitarra ensandecido (tocado num player portátil) misturado a uma epécie de orgão circense até os gritos vindo de todas as direções, explosões e bombas de sinalização, poucas vezes o Cinema retratou de forma tão, digamos, áudiovisual as pertubações promovidas por uma zona de batalha.

- Mas esse caos vai aos poucos sendo desconstruído na famosa cena do soldado Roach, quando todos os sons se concentram a partir do seu (perturbadíssimo) ponto de vista. Tudo o que ele ouve são os gritos (imaginários?) de um soldado inimigo provocando os americanos. Este som cessa quando Roach atira nele com sua espingarda calibre 12. Mais conceitual, impossível! Deveria ser obrigatório mostrar toda essa sequência em sala de aula para estudantes de Cinema.

- O tão aguardado encontro de Willard com o Cel. Kurtz possui alguns elementos sonoros utilizados de forma expressiva, porém sutis: quando Willard conta a Kurtz que a sua missão é terminar com o seu comando porque seus superiores acham que ele enlouqueceu, os mesmos sons da gravação (citada no primeiro tópico) retornam, só que por meio da música. E também um insistente som de cigarra acompanha o desenrolar da conversa em um crescendo, aumentando junto com a tensão.

- A mesma lógica acontece com a cena seguinte, quando o fotógrafo interpretado por Dennis Hopper começa um discurso ensadecido para um engaiolado e atordoado Willard: os sons ambientes (tambores, pássaros, insetos, vozerio) vão aumentando à medida que o discurso vai ficando mais exaltado.

- Numa das cenas adicionais da versão Redux, Willard está dentro de um local escuro que possui pequenas aberturas onde olhos curiosos o observam. O reverb dos sons ambientes é exageradamente metálico. Quando uma porta é aberta e surge a enorme figura do Cel. Kurtz percebemos que Willard encontra-se encarcerado num enorme container de metal - daí a lógica dos sons ouvidos anteriormemte. Mas o interessante é notar como a utilização do efeito sonoro nessa cena consegue, além das informações básicas sobre o espaço físico, criar toda uma sensação irreal e onírica, coerente com o debilitado estado mental e físico vivido naquele momento pelo personagem de Martin Sheen.

DivulgaçãoOutras curiosidades de Apocalypse Now:

- Boa parte da música composta para o filme é inspirada na chamada "música concreta", uma variação de músca eletroacústica e que se utiliza das mais variadas fontes sonoras, além dos instrumentos convencionais. Por exemplo, muitas vezes a própria música simula o som dos motores dos helicópteros.

- Historicamente, Apocalypse Now é um dos primeiros filmes a ter uma distribuição mais abrangente com uma mixagem 5.1. Superman, de Richard Donner, de 1978, teve algumas exibições com o som nesse formato, mas foram experiências bem restritas. Quando Apocalypse foi exibido no Festival de Cannes, em 1979, com uma versão ainda "work in progress", Coppola mandou seu próprio pessoal instalar seis caixas acústicas na sala onde o filme seria exibido. O diretor desde o início encorajou o uso do chamado "som em 3D". Ele queria muito que a plateia fosse envolvida pelos sons dos helicópteros, provocando uma sensação até então inédita numa sala de cinema.

- A versão Redux, lançada em 2001, possui 49 minutos adicionais. Walter Murch e sua equipe tiveram que recriar todos os sons dessas cenas e, em muitos casos, dublar os atores porque o som direto original não foi encontrado ou as fitas estavam em péssimas condições. Isso é notório principalmente na sequência em que o Capitão Willard e seu pessoal encontram a fazenda francesa. Mas o grande desafio da equipe foi recriar os sons dessa cenas novas respeitando a concepção sonora original. E foram muito bem-sucedidos! Esse trabalho é hoje referência quando o assunto é restauração de filmes.

- Por ter sido desde o início uma produção extremamente problemática, não poderia ter sido diferente com a pós de som. A mixagem, por exemplo, durou longos oito meses para ser completada. E mais de 80% dos diálogos tiveram que ser dublados. Tudo isso só encareceu ainda mais um orçamento que já tinha estourado em alguns milhões de dólares.
 
- O filme ganhou o Oscar de Melhor Som (também venceu o de Melhor Fotografia e foi indicado a Melhor Filme, Direção, Roteiro, Montagem, Direção de Arte e Ator Coadjuvante, para Robert Duvall).
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