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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
01/01/1970 01/01/1970 4 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
92 minuto(s)

Música Serve pra Isso
Música Serve pra Isso

Dirigido por Sandro Serpa e Bel Bechara.

Eu devia ter cerca de 12 anos de idade quando vi Os Mulheres Negras na televisão pela primeira vez. Lembro-me claramente do estranhamento diante do nome da banda e o contraste que este representava com os dois homens brancos e curiosamente vestidos que a compunham – mas também tenho uma recordação viva de achar divertidíssimo o que via e intrigante o que ouvia, o que me motivou a acompanhar os músicos André Abujamra e Maurício Pereira durante os anos seguintes e lamentar seu rompimento em 1991. No entanto, foi somente ao assistir a este documentário, mais de duas décadas depois e beneficiado pela clareza que a idade traz, que consegui finalmente compreender a reação de minha versão pré-adolescente: por trás do experimentalismo musical e das composições repletas de referências, havia dois artistas não só inteligentes, mas que encaravam sua Arte com uma alegria incontida que conferia uma atmosfera lúdica ao que faziam. Assim, podia ser até possível não gostar dOs Mulheres Negras, mas ignorá-los estava fora de questão.

Dirigido pelo casal Sandro Serpa e Bel Bechara (que, em nome da ética, devo identificar como amigos pessoais), Música Serve pra Isso se estrutura a partir de entrevistas com uma série de personalidades para recontar a breve trajetória da banda, começando em 1984, quando Abujamra e Pereira se conheceram em uma aula de percussão, até a separação precoce sete anos depois. Iniciando o filme com uma breve investigação sobre o significado do nome “Os Mulheres Negras” (há várias versões para a escolha), os cineastas buscam traçar as (várias) influências por trás de suas canções e esclarecer a lógica de suas divertidas apresentações, que combinavam elementos teatrais e cômicos em performances que apostavam tanto no improviso que chegavam a conter músicas compostas momentos antes do show (como “Martim”).

Donos de personalidades contrastantes, mas perfeitamente complementares do ponto de vista artístico, André Abujamra e Maurício Pereira são também os grandes astros do filme: enquanto o primeiro diverte com seu jeito despachado de se comunicar (ao relembrar decisões do início da carreira, ele é direto: “A gente só se fodeu”), o segundo, um pouco mais formal em seus modos, exibe a visão abrangente que esperaríamos do Mulheres Negras (ao falar sobre gêneros e músicos encarados por muitos como medíocres, ele afirma: “Tudo é música”). Juntos, relembram o começo pouco promissor e o dia no qual o acaso levou Pena Schmidt, produtor da Warner, a entrar na biblioteca na qual iriam se apresentar para um grupo de crianças – e mesmo com apenas seis pessoas na plateia, os dois sairiam dali representados por uma das maiores gravadoras do país.

Não que o conceito da banda tenha se transformado em um sucesso colossal – e repleto de imagens de arquivo que trazem trechos dos shows ocorridos na década de 80, Música Serve pra Isso deixa claro que a postura dos músicos no palco trazia um frescor que talvez faltasse aos (ótimos) discos. Iluminados de forma evocativa, os espetáculos ganhavam vida através da presença cênica de Abujamra e Pereira, que podiam tocar juntos a mesma guitarra enquanto, com a mão livre, roubavam o chapéu um do outro - e que conseguiam divertir com coreografias minimalistas que envolviam breves gestos, um pé erguido aqui e ali ou uma reviravolta com timing perfeito em movimentos que se tornavam ainda mais engraçados em função da aparente e inabalável seriedade da dupla.

Analisando as origens e as interpretações de canções específicas, Serpa e Bechara são hábeis ao demonstrar como Os Mulheres Negras incutiam significados complexos em músicas aparentemente nonsense, inspirando-se, por exemplo, em uma trágica foto ou na própria efemeridade da vida ao comporem. Além disso, é fascinante descobrir como o gosto eclético de Abujamra e Pereira resultava em trabalhos que traziam referências tão distantes quanto Tonico & Tinoco e os Beatles (o que levaria, por exemplo, a uma versão de Yellow Submarine tão particular que chamá-la de “versão” é alargar a definição da palavra).

Despertando o riso ao inventar conceitos humorísticos em sua superfície, mas seríssimos em sua base (como o “tecno-pobre” e o “brega científico”), a banda conquistava especialmente por investigar os limites de sua sonoridade, chegando a empregar uma letra ininteligível e improvisada em espanhol, na canção “Feridas”, apenas por julgar (acertadamente) que aquela língua contribuiria para a atmosfera da música. E se houver alguma dúvida sobre a personalidade única construída pelOs Mulheres Negras ao longo de seus sete anos de vida (eles voltaram a tocar juntos recentemente), basta se perguntar quantos músicos foram capazes de se transformar em personagens de quadrinhos para concluir a natureza ímpar da banda.

Generosos e apaixonados pelo que fazem, Abujamra e Pereira finalmente demonstram seu amor pela Arte que abraçaram ao discutirem o significado da composição que dá título ao documentário e que defende a pluralidade de funções mesmo para a “menor” das canções – enquanto, no processo, o próprio filme permite que visitemos o processo de criação e, de certa forma, as mentes encantadoras destes dois belos artistas.  

O que acaba criando uma pequena rima temática ao demonstrar que, entre inúmeras outras coisas, Cinema serve pra isso.

12 de Maio de 2013

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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