Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
02/02/2007 | 01/01/1970 | 4 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
121 minuto(s) |
O Diabo é um sedutor. Ele sabe que, para evitar que percebamos seus chifres e seu cheiro de enxofre, é preciso desviar nossa atenção com sua fala. No interessante documentário Eu Fui Secretária de Hitler, a entrevistada Traudl Junge nos espanta ao afirmar que só tomou conhecimento do Holocausto depois do fim da Guerra – e não é difícil compreender como algo assim pode ser possível: ofuscada pelo mais do que estabelecido magnetismo do Führer, ela tornou-se cega para tudo aquilo que pudesse macular a visão idealizada que construíra de seu líder. Fenômeno parecido é retratado em O Último Rei da Escócia, quando acompanhamos o jovem Nicholas Garrigan (McAvoy) enquanto este é cooptado pelo ditador Idi Amin, auto-declarado presidente da Uganda depois do golpe contra o governo igualmente totalitarista de Milton Obote.
Médico recém-formado, Nicholas viajara para o país africano com o objetivo triplo de conhecer novos lugares, se divertir e praticar a medicina de forma mais socializada. Encantado com a alegria de um povo que vive sorrindo apesar das condições miseráveis em que se encontra, o rapaz acaba sendo convidado para ser o médico particular do recém “empossado” general Amin (Whitaker), cuja ascensão ao poder é celebrada pela população esperançosa ao ouvir as promessas de novas escolas, estradas e hospitais. Seduzido pela ostentação e pelos constantes elogios feitos pelo presidente, Nicholas acredita também que poderá ajudar Uganda ao trabalhar em um novo sistema de saúde – mas logo começa a perceber a paranóia crescente do general, que parece ter certeza de que seus inimigos pretendem matá-lo.
Baseado em livro de Giles Foden (que não li), o roteiro é assinado por Jeremy Brock e por Peter Morgan, responsável também por A Rainha – que, curiosamente, divide com este O Último Rei da Escócia o interesse em dramatizar incidentes e conversas ocorridos nos bastidores do poder. Aqui, porém, o foco reside na rápida degeneração do governo “popular” de Amin, que, num espaço de apenas oito anos, converteu-se de líder ovacionado pela população a monstro genocida. Tentando encontrar uma explicação para tamanha transformação, o roteiro enfoca os atentados sofridos pelo general, que teriam dado início a um ciclo de violência cada vez mais intenso – mas, neste processo, o filme busca ignorar o fato de que Amin já era um homem de natureza traiçoeira e criminosa antes mesmo de assumir o poder, tendo derrubado seu antigo superior Obote por julgar que este o prenderia por crimes que haviam cometido
Encarnando o médico Nicholas Garrigan com um brilhantismo que merecia ter sido mais reconhecido nas várias premiações da temporada 2007 (incluindo o Oscar), James McAvoy (o fauno de As Crônicas de Nárnia) começa O Último Rei da Escócia como um jovem alegre e despreocupado que logo se deixa encantar pelo general (“Ele está fazendo um ótimo trabalho!”, ele afirma pouco depois de conhecê-lo e sem ter a menor condição de emitir tal julgamento). Talvez tentado pela proximidade do poder ou pela oportunidade altruística de participar do novo começo de uma nação tão sofrida, Nicholas se mostra hipnotizado pela chance de compartilhar a intimidade de um “grande homem” (quanto mais jovens somos, mais facilmente nos inclinamos a acreditar na bondade e na abnegação de nossos ídolos; o romantismo é algo inerente à juventude). Além disso, como escocês ressentido com a dominação inglesa, Nicholas se identifica com a “luta” de Amin, sem perceber que, aos poucos, está se tornando o porta-voz branco do governo do general – o que talvez tenha sido a intenção deste desde o princípio.
É fascinante, aliás, perceber como Nicholas parece fechar os olhos quase intencionalmente para todos os sinais de que há algo de profundamente errado no país, demonstrando, em sua postura confortável de ignorar os problemas, uma covardia revoltante. Esta tridimensionalidade do personagem também se reflete em seu encantamento com a própria “coragem” ao desafiar Amin com sua franqueza – uma coragem que imediatamente se desfaz quando o general finalmente demonstra não ter qualquer interesse em ouvir opiniões que o contradigam. Assim, é lamentável que o filme julgue necessário incluir uma subtrama romântica envolvendo Nicholas e uma das esposas do ditador a fim de estabelecer uma razão para que o médico (e o espectador) se rebele – além de implausível (seria preciso ser insano para mexer com a esposa do general), o romance se entrega a clichês que enfraquecem o personagem e o próprio longa.
Por sorte, O Último Rei da Escócia conta também com uma performance absolutamente magnética de Forest Whitaker: exalando um carisma mais do que apropriado ao personagem, o ator busca seduzir não apenas Nicholas, mas também o espectador: sorridente e sempre afirmando suas boas intenções, Amin não hesita em declarar que não queria ser presidente e que é apenas um indivíduo comum, alguém do povo. Aos poucos, contudo, Whitaker dá pequenos indícios da personalidade explosiva do general e, ao ouvir uma informação desagradável fornecida por Nicholas, podemos perceber suas narinas se dilatando e sua respiração cada vez mais ofegante, embora ele consiga se controlar para evitar demonstrações mais visíveis de sua raiva. Com isso, permanecemos tão no escuro quanto o médico: sabemos que há algo reprovável na conduta de Amin, mas nada que nos prepare para o choque de realidade provocado quando a máscara do ditador finalmente cai e descobrimos toda a extensão de sua barbárie – e é então que Whitaker se transforma em um monstro repulsivo bem diante de nossos olhos.
Depois de demonstrar imensa segurança ao conduzir a reencenação do drama vivido por dois alpinistas no documentário Desafio Vertical, o cineasta Kevin Macdonald volta a exibir seu talento ao criar um filme nervoso, inquieto, e ao mover sua câmera com curiosidade sempre que enfoca Idi Amin, como se procurasse investigar seus gestos e olhares em busca de uma explicação para a atração que o general exerce sobre todos (e, no processo, Macdonald ressalta ainda mais o status de “mito” do personagem). Da mesma maneira, o diretor acerta ao criar uma rima visual entre o hospital miserável visto no início da projeção e os corredores superlotados e mergulhados na escuridão de hospitais inicialmente luxuosos que surgem mais adiante, à medida que o caos toma conta de Uganda (aliás, O Último Rei da Escócia foi o primeiro longa a ser rodado na capital do país, Kampala, em mais de 50 anos, o que confere ainda mais verossimilhança ao projeto). Finalmente, a fotografia eficiente de Anthony Dod Mantle - o favorito de Lars von Trier e Thomas Vinterberg - acompanha com inteligência o desenvolvimento da narrativa: inicialmente, o filme é envolvido por cores intensas e quentes, entregando-se gradualmente a tons mais frios (neste ponto, mesmo as cenas externas, sob céu aberto, são fotografadas sem calor).
Quando o rosto do verdadeiro general Idi Amin surge após o violento desfecho da história, é com uma espécie de choque que constatamos a aparência comum de um homem capaz de tantas atrocidades – e talvez isto explique por que monstros como ele, Hitler e Pinochet puderam promover massacres tão prolongados antes de serem finalmente derrubados: se o romantismo é prerrogativa dos jovens, a dificuldade em acreditar na podridão absoluta de um ser humano parece ser comum a todas as idades.
03 de Fevereiro de 2007
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