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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
22/09/1988 22/09/1988 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
164 minuto(s)

A Última Tentação de Cristo
The Last Temptation of Christ

Dirigido por Martin Scorsese. Com: Willem Dafoe, Harvey Keitel, Barbara Hershey, Verna Bloom, Irvin Kershner, Victor Argo, Michael Been, Leo Burmester, Andre Gregory, Randy Danson, Harry Dean Stanton, David Bowie e Juliette Caton.

Há uma série de elementos que me incomodam terrivelmente em A Paixão de Cristo, o polêmico longa-metragem dirigido por Mel Gibson, e um deles é sua impressionante falta de propósito: apesar de Gibson declarar que `o Espírito Santo agiu por (ele)` durante a produção, não consigo compreender como alguém poderia extrair qualquer significado espiritual de seu festival de sadismo. Assim, antes de escrever sobre A Paixão de Cristo, decidi rever um outro filme sobre Jesus que gerou imensa controvérsia na época de seu lançamento, em 1988. Meu objetivo era, simplesmente, o de reavivar minhas impressões sobre o trabalho de Martin Scorsese como preparação para a análise que teria de fazer em seguida, mas, ao término dos belíssimos 164 minutos de projeção, concluí que era minha obrigação publicar um artigo sobre o filme e, com isto, incentivar os mais curiosos a assistirem ao inspirador A Última Tentação de Cristo.


Baseado no livro de Nikos Kazantzakis, o longa faz uma releitura dos últimos anos da vida de Cristo: suas pregações, milagres e, é claro, sua morte na cruz. Porém, em vez de seguir fielmente os Evangelhos, Kazantzakis permitiu-se imaginar os conflitos vividos por um indivíduo que, de acordo com os católicos, é simultaneamente Humano e o Filho de Deus. Como conciliar duas `naturezas` tão contraditórias em um único corpo? Como Homem, podemos presumir que Jesus estivesse sujeito às tentações da `carne` (e, de fato, uma das passagens mais famosas da Bíblia traz Cristo sendo tentado por Satanás). Por outro lado, como Ser Divino, sua falibilidade deveria ser neutralizada. Assim, embora acabe seguindo com bastante fidelidade a trajetória de Jesus explicitada nos Evangelhos, o roteiro (escrito por Paul Schrader, colaborador habitual de Scorsese) toma imensas liberdades com relação ao caráter de seus personagens – o que dá origem a uma série de discussões complexas que, infelizmente, acabaram despertando a ira dos fundamentalistas cristãos.

Tomemos, como exemplo, o próprio Cristo: embora tenha consciência de sua própria divindade, o Jesus de Willem Dafoe (na melhor atuação de sua carreira) reluta imensamente em seguir seu destino, chegando ao ponto de construir cruzes para os romanos a fim de levar Deus a odiá-lo. Finalmente, ao perceber que sua crise espiritual era uma afronta não apenas à sua própria natureza, mas também a Deus, Cristo assume sua condição de Messias e logo arrebanha uma infinidade de seguidores. Ainda assim, A Última Tentação de Cristo não ignora a dualidade de seu protagonista – e é justamente a fragilidade do lado humano de Jesus e seu esforço para contorná-la que o tornam tão fascinante.

Ao mesmo tempo, o filme surpreende o espectador com um Judas completamente diferente daquele retratado na Bíblia: aqui, o apóstolo (interpretado brilhantemente por Harvey Keitel) torna-se a figura mais próxima de Jesus, funcionando como seu principal confidente e, ocasionalmente, conselheiro (o que obviamente também irritou os devotos). Ansioso por uma rebelião contra os romanos, Judas frustra-se ao perceber a hesitação do mestre, que somente aos poucos compreende que, afinal de contas, seu objetivo final na Terra é morrer barbaramente a fim de `aproximar Deus e os homens` – e, para viabilizar seu calvário, é Cristo quem convence Judas a `traí-lo` para os romanos.

Porém, o maior motivo da ira dos católicos ainda está por vir: durante a crucificação, Jesus, em meio à dor e ao sofrimento, alucina com uma existência na qual seria apenas um homem comum, que se casaria duas vezes (uma delas com ninguém menos do que Maria Madalena), teria filhos e envelheceria pacificamente – um `desejo` ao qual renega para cumprir sua missão divina.

Ora, particularmente não consigo imaginar mensagem mais bonita sobre o sacrifício final de Cristo, que, ao contrário do que a Bíblia indica, escolheria morrer pela Humanidade, em vez de ser praticamente conduzido a isto por uma decisão superior. É esta cegueira, aliás, que desprezo nos seguidores fanáticos de qualquer religião, que rejeitam qualquer interpretação teológica que não seja aquela que consideram `sagrada` – mesmo que esta interpretação seja claramente identificada como sendo independente dos Evangelhos e, no final, acabe por transmitir uma mensagem semelhante à versão ortodoxa dos `fatos`.

Da mesma forma, é válido observar que Scorsese realizou aquela que permanece como a versão mais intimista da vida de Cristo: ao contrário de épicos como Rei dos Reis ou A Maior História de Todos os Tempos, nos quais Jesus é uma mera desculpa para que os cineastas revisitem as passagens mais famosas da Bíblia, em A Última Tentação de Cristo o espectador recebe permissão de se aproximar do personagem-título, conhecer suas angústias e perceber seus medos e ansiedades. Aliás, é fácil compreender por que Scorsese e Schrader se interessaram por esta história: ambos sempre demonstraram fascinação por personagens amargurados que tentam compreender o propósito de suas existências (observem o Travis Bickle de Taxi Driver, o Allie Fox de A Costa do Mosquito ou o Frank Pierce de Vivendo no Limite e perceberão o padrão).

É claro que aqueles que consideram A Última Tentação de Cristo como uma terrível heresia podem preferir acreditar que estou defendendo o filme de Scorsese por não ser católico (e realmente não sou; na realidade, não sigo religião alguma – embora acredite em Deus). Porém, estas mesmas pessoas talvez julguem interessante saber que, depois de assistir ao filme, rendi-me ao impulso de reler a Bíblia depois de quase 20 anos (a primeira – e única – vez foi na época em que fiz a Primeira Comunhão). Não que eu tenha me rendido ao catolicismo, mas rendi-me, sim, ao fato de que a história de Jesus (seja ele considerado um homem comum ou o Filho de Deus) é uma das mais belas da literatura universal.

E não posso acreditar que um cristão possa condenar seriamente qualquer filme que estimule a leitura da Bíblia...

6 de Março de 2004

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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