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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
09/07/2015 25/09/2014 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Duração do filme
98 minuto(s)

Direção

Christian Petzold

Elenco

Nina Hoss , Ronald Zehrfeld , Nina Kunzendorf

Roteiro

Christian Petzold , Harun Farocki

Fotografia

Hans Fromm

Montagem

Bettina Böhler

Design de Produção

Kade Gruber

Figurino

Anette Guther

Phoenix
Phoenix

Dirigido por Christian Petzold. Roteiro de Christian Petzold e Harun Farocki. Com: Nina Hoss, Ronald Zehrfeld, Nina Kunzendorf.

O rosto de Nelly Lenz é um amontoado de sangue e carne deformada. Coberto por bandagens que mal conseguem ocultar o estrago feito às pressas por nazistas em fuga que falharam em matá-la mas não em deixar uma derradeira lembrança de sua crueldade, ele é um símbolo da própria alma dos judeus na Alemanha pós-guerra: embora sobreviventes dos campos de concentração, jamais poderiam ser os mesmos – e não só pelas sequelas físicas, mas também pelas psicológicas, emocionais e, sim, sociais. Afinal, como poderiam se readaptar ao país que, embora tão seu quanto dos gentios, não hesitou em caçá-los e enviá-los para a destruição? Como olhar novamente no rosto de vizinhos e amigos que, levados pela loucura nazista, os entregaram aos asseclas de Hitler para que fossem marcados e abatidos como gado?


E, principalmente, como este povo poderia prosseguir? Deveria confrontar o passado, concentrar-se no presente ou apenas focar-se no futuro?

Interpretada pela excelente Nina Hoss em mais uma parceria com o cineasta Christian Petzold (a quinta), Nelly é mais do que a protagonista de Phoenix – é uma metáfora viva e dolorida de todo este processo de... o quê? Reconstrução? Reconciliação? Resignação? Ajudada pela amiga Lene (Kunzendorf), que vive seu próprio processo de readaptação, Nelly tem o rosto recuperado graças às habilidades de um cirurgião e, sejamos honestos, de um roteiro que precisa de uma plástica inverossímil para desenvolver sua trama – e assim que retorna a Berlim, a moça decide buscar o marido Johnny (Zehrfeld), que possivelmente foi quem a entregou aos nazistas. Ainda assim, o que ela busca não é vingança como num filme ruim que usaria o Holocausto como desculpa para o suspense, mas sim pertencimento como num filme ambicioso que compreende a complexidade da alma humana. No entanto, quando Johnny não a reconhece e, para piorar, propõe que ela se passe por Nelly para que, juntos, possam reivindicar sua herança, a machucada heroína embarca na farsa como forma de manter-se próxima do amado.

Sim, trata-se de uma história com tons claros de melodrama (embora adote uma estética e uma atmosfera noir – um gênero que tampouco fugia do melodramático), mas que funciona por ser sobre algo maior. É revelador, por exemplo, como Nelly é suficientemente parecida consigo mesma para poder se passar como sósia, mas não o bastante para se sentir à vontade com o novo rosto – o que novamente remete à condição judaica na Europa pós-1945, quando tudo parecia ter retornado à normalidade ao mesmo tempo em que todo um povo enxergava o mundo ao seu redor através de lentes agora embaçadas pela tragédia e pela traição. Assim, quando Nelly visita seu velho lar e encontra apenas destroços, vemos ali um símbolo de sua psique – um recurso que Rossellini empregou magnificamente em Alemanha, Ano Zero e que Petzold resgata aqui. Ao enfocar aquelas ruínas, o cineasta constata que algo ali foi quebrado além da possibilidade de restauração – uma mensagem reforçada pelo plano que traz Nelly vendo o próprio reflexo em um espelho partido que a expõe como uma mulher para sempre dividida.

E é isto que torna sua entrega ao marido tão comovente: depois de perder toda a família nos campos de concentração, ela enxerga em Johnny sua única chance de reconstrução, mesmo que isto surja através de um artifício que mais machuca do que cicatriza – e, assim, é mais do que apropriado que ela reencontre o sujeito em um bar cujo nome (o “Phoenix” do título) sugira seu renascimento a partir das cinzas do próprio casamento.

Neste sentido, a performance de Nina Hoss é fundamental para que percebamos a complexidade de uma personagem que, de certa forma, vive o dilema oposto da Judy Barton interpretada por Kim Novak em Um Corpo que Cai: enquanto esta queria se distanciar da identidade que usava ao conhecer o amado, buscando estabelecer diferenças entre suas duas versões, Nelly faz o possível para que Johnny a reconheça como quem era – e não é à toa que Petzold faz uma referência clara ao filme de Hitchcock na cena em que sua protagonista é vista por Johnny pela primeira vez depois de completar sua “caracterização”, quando caminha quase como um fantasma em sua direção. Enquanto isso, Ronald Zehrfeld compõe o sujeito como um homem cujas motivações internas jamais são expostas claramente: ele sente remorso pelo que fez? Ele se força para não reconhecer a esposa, já que há momentos nos quais há uma forte sugestão de que isto parece prestes a acontecer? Ele a ama? Ou mesmo ama o avatar que criou da “falecida” esposa? Ao converter Johnny em um enigma, o ator enriquece a narrativa ao permitir que cada espectador extraia de suas expressões um significado particular que, por sua vez, irá refletir na interpretação da história em si.

Com isso, Phoenix se estabelece como algo mais do que um melodrama, um noir, um estudo de personagem ou um romance, sugerindo que a Fênix renascida não é apenas Nelly ou seu povo, mas todo um país que havia sido consumido pela irracionalidade do ódio.

25 de Julho de 2015

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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