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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
10/08/2017 30/06/2017 4 / 5 5 / 5
Distribuidora
Universal
Duração do filme
93 minuto(s)

O Estranho que Nós Amamos
The Beguiled

Dirigido e roteirizado por Sofia Coppola. Com: Nicole Kidman, Kirsten Dunst, Elle Fanning, Oona Laurence, Angourie Rice, Addison Riecke, Emma Howard e Colin Farrell.

Dirigido por Don Siegel e estrelado por Clint Eastwood e Geraldine Page em 1971, Um Estranho que Nós Amamos era – méritos e deméritos à parte – essencialmente uma fantasia erótica heterossexual com conotações de horror masculino diante da castração e de qualquer figura feminina dominante. Era, portanto, machista, misógino e trazia até mesmo elementos que hoje classificaríamos facilmente como pedófilos – o que não quer dizer que, como Cinema, fosse ruim. (Sim, é possível condenar uma obra por seu conteúdo e aplaudi-la por sua narrativa.) Já esta versão escrita e dirigida por Sofia Coppola a partir do livro de Thomas Cullinan (e não do filme) fica no meio do caminho, eliminando os aspectos problemáticos do original, mas também parte de seu apelo.


Ambientado durante o terceiro ano da Guerra Civil norte-americana, o roteiro enfoca um internato feminino dirigido pela sra. Martha Farnsworth (Kidman) e que, em função do conflito, abriga agora apenas cinco meninas e a professora Edwina Dabney (Dunst). Certo dia, uma das garotas, Amy (Laurence), encontra um soldado ferido e o leva para casa, onde é tratado pela sra. Farnsworth e mantido como hóspede/prisioneiro (ele é um soldado da União em terreno confederado; um inimigo, portanto) até se recuperar o bastante para poder ser entregue aos oficiais do Sul. Aos poucos, no entanto, a professora e suas alunas vão se apegando ao soldado, John McBurney (Farrell), e passam a hesitar com relação à ideia de enviá-lo para a prisão ou mesmo uma possível execução.

Há, como é fácil imaginar, um inevitável erotismo subjacente a toda a narrativa e que é sugerido pelos olhares de curiosidade e desejo nos rostos das personagens mais velhas (entre elas, a vivida por Elle Fanning, Alicia) e também por alterações sutis em seu comportamento, como ao passarem a usar roupas mais bonitas e bijuterias. Por outro lado, se o tesão reprimido da diretora era mais evidente na obra de 71, aqui a composição de Nicole Kidman é consideravelmente mais ambígua: se aqui ou ali ela exibe um leve tremor de excitação, hesita ao banhar o soldado ferido ou se permite um flerte embriagado, na maior parte do tempo ela mantém certa distância do sujeito, raramente assumindo uma postura mais descontraída como aquelas que passam a ser adotadas por Edwina, Alicia, Amy e as demais alunas. Já Kirsten Dunst retrata a professora como uma mulher de modos tristes e sufocados, sendo tocante testemunhar como se ilumina e se enche de esperanças gradualmente diante de John. Enquanto isso, Fanning faz de Alicia uma adolescente que busca seduzir o visitante mais por curiosidade diante da própria sexualidade recém-aflorada do que por desejo ou maldade, ao passo que Farrell torna o soldado bem mais enigmático do que aquele vivido por Eastwood, mantendo o espectador em dúvida quanto à sua sinceridade: estaria ele flertando por paixão genuína, por estratégia ou por malícia?

Visualmente imponente, a fotografia de Philippe Le Sourd cria uma lógica que, refletindo a dinâmica entre os personagens, constantemente contrasta luzes e sombras: aqui, vemos um plano magnífico no qual uma personagem surge deitada em uma cadeira no jardim, entre árvores imensas, e banhada por raios de sol que atravessam brechas entre as folhagens; ali, acompanhamos outra no instante em que caminha pela casa escura e, abrindo uma porta, vê algo que a choca e entristece. Da mesma forma, o design sonoro atua em sintonia com a fotografia para estabelecer suas próprias contraposições – como ao trazer as explosões de bombas à distância sob um belíssimo pôr-do-sol (um conceito explorado desde o primeiro momento da projeção, quando vemos Amy caminhando por uma estrada ladeada por árvores, numa imagem idílica, enquanto ouvimos os estouros ao fundo).

O apuro estético exibido por Le Sourd e Coppola, por sinal, beira o virtuosismo em diversos planos de Um Estranho que Nós Amamos e que constantemente remetem a verdadeiros tableaux vivants nos quais cada elemento é posicionado com extremo cuidado, observando não apenas as relações emocionais sugeridas, mas também a complementação entre cores e tons. Além disso, é divertido testemunhar o instante em que John nota uma linda teia de aranha no jardim, sem se dar contar de que, de certo modo, esta é um símbolo de sua situação – e já que falei do peso semântico das imagens, confesso profunda admiração pelos planos nos quais vemos uma tigela passar de mão em mão e, pouco depois, assumimos o olhar do soldado quando este vê (quase) todas as mulheres do internato sentadas à mesa, imóveis, enquanto o encaram (e que provocam arrepios de terror).

Dito isso, boa parte do subtexto do filme de Siegel é descartada por Coppola, o que diminui de forma dramática o pathos da obra. Assim, se antes uma decisão tomada pela sra. Farnsworth poderia ser interpretada como uma atitude repleta de motivações obscuras, aqui ela soa como uma opção médica natural por mais que o longa tente manter seu resultado alegórico (e o personagem de Farrell chega a citar de forma óbvia a palavra “castração”). Para finalizar, não há como duvidar, nesta versão, da necessidade de autodefesa das mulheres, o que enfraquece outras possibilidades de interpretação mais sofisticadas.

E, apesar de tudo, o trabalho de Coppola é melhor do que o de Siegel em diversos aspectos além dos morais: sua estética é mais refinada, sua secura narrativa resulta num ritmo eficaz e as performances oferecem muito mais nuances. Já o original não envelheceu nada bem.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2017.

26 de Maio de 2017

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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