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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
21/06/2018 08/06/2018 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Diamond Films
Duração do filme
127 minuto(s)

Hereditário
Hereditary

Dirigido e roteirizado por Ari Aster. Com: Toni Collette, Gabriel Byrne, Alex Wolff, Milly Shapiro, Mallory Bechtel, David Stanley e Ann Dowd.

A morte é o terror final, definitivo. Por piores que sejam, vilões como Freddy Krueger, Jason Voorhees e Jigsaw são meros executores de uma sentença que recebemos ao nascer e cuja aplicação aprendemos a temer desde que nos tornamos conscientes de sua existência – uma sentença, aliás, que destrói não apenas o condenado, mas todos que o amam. Do mesmo modo, não é acaso que outro terror recorrente da humanidade seja o da perda da identidade e/ou de nossa percepção racional do mundo, já que a loucura é prima da morte, eliminando quem somos enquanto ainda vivemos (algo que atua como centro temático de obras como O Iluminado, Ilha do Medo e, claro, O Bebê de Rosemary).


Pois Hereditário é um filme que não apenas reconhece estes horrores como os combina em uma narrativa que usa a estrutura do gênero para potencializar seus efeitos. Lançado pela mesma A24 responsável por longas carregados de uma atmosfera pesada e sufocante como A Bruxa, O Homem Duplicado, Sob a Pele, Ao Cair da Noite e Sombras da Vida, esta estreia na direção de longas do norte-americano Ari Aster já tem início com o velório da mãe da protagonista, Annie (Collette), com a qual esta mantinha uma relação distante e problemática. “Eu deveria estar mais triste?”, ela chega a perguntar ao marido, o psicólogo Steve (Byrne), antes de retornar para casa a fim de continuar a trabalhar nos dioramas em miniatura que concebe como recriações de momentos marcantes de sua vida. Preocupada com a reação da filha caçula, Charlie (Shapiro), que era a favorita da avó, Annie subitamente se vê obrigada também a lidar com as alterações emocionais e psicológicas experimentadas pelo filho mais velho, Peter (Wolff), depois que mais uma tragédia se abate sobre a família.

E é aí que a primeira camada sugerida pelo título do filme se apresenta, já que, ao longo das décadas, toda a família da mulher exibiu distúrbios psiquiátricos graves: a mãe apresentava sinais de transtorno dissociativo e demência, o pai sofria de depressão psicótica e o irmão enfrentava a esquizofrenia antes de se matar ainda na adolescência. Assim, por mais reais que as experiências vividas por Annie e os filhos soem, há sempre a suspeita subjacente de que estas tenham natureza fisiológica, não sobrenatural. Ao mesmo tempo, o mergulho da personagem na depressão, por mais inevitável que seja, não deixa de sugerir um componente genético, uma pré-disposição à doença que é ativada por suas perdas – e ouvi-la chorando compulsivamente enquanto suplica “Eu só preciso morrer!” é algo que denota a dimensão de sua angústia. Neste sentido, Hereditário é um drama familiar eficiente como Entre Quatro Paredes ou Precisamos Falar Sobre o Kevin (também lançado pela A24, diga-se de passagem), retratando a devastação emocional de pessoas que parecem ligadas mais pela dor do que pelo amor.

Este tom carregado, desolador, é ressaltado pela ótima fotografia de Pawel Pogorzelski, que cerca a família Leigh de escuridão, ao passo que o design sonoro emprega o silêncio como forma de reforçar sua solidão ou o puro choque, como no instante em que vemos um personagem dentro de um carro, paralisado, enquanto ouvimos apenas o ruído do pisca-alerta (e quando a música de Colin Stetson surge na trilha, vamos rapidamente do silêncio à apreensão, já que as cordas dissonantes que preenchem o ambiente parecem sempre sugerir um perigo à espreita). A eficiência visual da narrativa pode ser constatada também na composição cuidadosa dos quadros, que acentuam a tensão ao valorizarem a profundidade e a bilateralidade – como, por exemplo, ao vermos Peter no canto esquerdo, diante da janela de seu quarto, enquanto ao fundo e à direita, no jardim, vemos a casinha na árvore projetando uma intensa luz (vermelha, claro) pela claraboia.

Cabe reconhecer, aliás, como a tensão em Hereditário é construída cena a cena, plano a plano, graças a opções estéticas como estas mencionadas e outras como aquela adotada quando vemos um caixão sendo baixado na cova e a câmera afunda com este, enterrando consigo o espectador e despertando uma sensação de claustrofobia e a percepção de que estamos sendo levados a uma jornada pavorosa. Neste aspecto, gosto também de como Aster utiliza vitrais para distorcer a imagem de certos indivíduos e de como aos poucos ressalta os reflexos dos personagens em espelhos e outras superfícies (comentei a obsessão de cineastas por reflexos em meu texto sobre Cisne Negro).

Da mesma maneira, o design de produção idealizado por Grace Yun (que eu já havia mencionado ao escrever sobre Cães Selvagens) é talvez o maior destaque da produção, já que, além de criar espaços que expressam muito sobre seus ocupantes ao mesmo tempo em que sugerem um desconforto constante, é fundamental ainda ao ajudar o diretor a estabelecer um dos temas principais do longa: a impotência da família Leigh diante de forças infinitamente maiores. Para isso, Yun e sua equipe concebem o interior da casa – palco principal da trama – como ambientes que parecem um pouco maiores do que o ideal em relação aos personagens, o que, associado às lentes grandes angulares e aos ângulos altos, constantemente criam a impressão de que aquelas pessoas estão em uma das miniaturas de Annie. (Já em outros momentos, como ao vermos o exterior da casa à noite, o filme nem tenta despistar o uso de maquete.)

Com isso, Hereditário cria diversas outras camadas de interpretação: por um lado, planta na mente do público, desde o plano inicial que situa a ação dentro de um dos dioramas, a sugestão de que estamos assistindo aos eventos a partir do ponto de vista de Annie, com direito a toda sua subjetividade psicológica e emocional; por outro, insinua como a família Leigh, refletindo as miniaturas de Annie, é manipulada por algo externo, invisível a ela e que determina seu destino.

Aliás, já que abordei a subjetividade da protagonista (e sugiro que só leia o restante deste texto quem já tiver visto o filme), é interessante observar a contraposição entre o problemático histórico psiquiátrico de Annie e a calma inabalável de seu marido Steve – justamente um profissional de saúde mental. Vivido por Gabriel Byrne como a âncora emocional da família, o sujeito é importante também como ponto de referência para o espectador, que pode tentar se guiar por suas reações para avaliar a veracidade do que sua esposa afirma testemunhar. Demonstrando paciência e carinho para com Annie e os filhos, Steve aos poucos vai perdendo seu controle sobre o que o cerca – algo sugerido pelo fato de parar de pedir que todos tirem os sapatos ao entrar em casa – e, assim, quando finalmente se entrega a um choro solitário, percebemos a carga que vinha suportando há tempos. Além disso, é curioso notar como sua saída da história marca uma mudança completa do ritmo da narrativa, que entra em um modo “frenesi” à medida que Annie e Peter perdem o que ainda os amarrava ao “real”.

As performances oferecidas pelo elenco, por sinal, são formidáveis: a jovem Milly Shapiro, como Charlie, confere humanidade e peso a uma personagem que tinha tudo para ser um mero clichê de terror (e seu estalar de língua será difícil de esquecer), ao passo que Alex Wolff, como Peter, retrata a transição do rapaz com habilidade, partindo do ar adolescente e interessado apenas em garotas até chegar ao desespero completo, passando ainda pelo remorso, pela mágoa, pela resignação e pelo choque que o conduzem ao seu terrível destino (e seus gritos infantilizados de “Mommy!” tornam seu pânico não só mais impactante, mas também comovente). Além disso, não há como ignorar a participação da sempre excelente Ann Dowd, que, assim como em The Leftovers, é capaz de lançar um olhar de ternura e piedade aos seus interlocutores sem jamais deixar de projetar frieza e mesmo uma sutil sugestão de ameaça.

No entanto, o centro de Hereditário encontra-se indiscutivelmente em Toni Collette, que, mais uma vez envolvida em uma trama com tons sobrenaturais, interpreta uma mulher complexa cujos esforços para demonstrar carinho aos filhos parecem vir sempre com um subtexto de rancor e ressentimento – e só o fato de precisar se esforçar já seria sintomático o bastante. Parecendo manter-se em negação quanto aos antecedentes de sua família (notem como, ao falar da mãe, conclui dizendo “Esta foi a vida dela”, sem perceber que também foi a sua própria), Annie aparentar estar sempre prestes a perder o controle, usando seus dioramas como forma de projetar seus temores em algo menor que possa administrar melhor. Assim, quando deixa escapar uma confissão cruel, é fascinante testemunhar como faz um gesto rápido e inconsciente que parece ter a intenção de agarrar as palavras no ar e enfiá-las novamente na boca (um detalhe que ilustra o talento da atriz e seu olhar atento ao comportamento humano). Da mesma forma, Collette dá uma autêntica aula de interpretação através da modulação cuidadosa de seus gestos, expressões faciais e inflexões de voz, indo de um desconforto quase imperceptível ao descontrole completo, dos pequenos tiques a contorcionismos faciais que se encaixariam sem problema algum num trabalho de Murnau. Para completar, apenas a cena do jantar já seria o suficiente para garantir indicações a uma dúzia de prêmios, sendo notável sua trajetória emocional naqueles poucos minutos de projeção.

Contando com um desfecho que leva o filme a perder um pouco do peso que havia acumulado ao oferecer uma resposta quase definitiva ao que vínhamos testemunhando – quando a ambiguidade era tão rica -, Hereditário ainda assim é um trabalho superior que, ao seu próprio modo, combina as dores e angústias p(m)aternas de Inverno de Sangue em Veneza e o tom conspiratório e sufocante de O Bebê de Rosemary para criar uma obra memorável que, ainda que não descarte o fantástico, demonstra bem como nossos maiores terrores são, em última análise, essencialmente humanos.

22 de Junho de 2018

(Sabe o que também seria um terror? O fim do Cinema em Cena, que se mantém de forma independente e precisa de seu apoio para continuar a existir. Para saber como fazer isso, basta clicar aqui - só precisamos de alguns minutinhos para explicar. E obrigado desde já pelo clique!)

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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